A liminar que permitiu a soltura de André do Rap preocupa especialistas em segurança pública e promotores, que temem a abertura de precedente para outros milhares de casos. A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, depois suspensa pelo ministro Luiz Fux, também é criticada por mostrar desconexão entre a Segurança Pública e a Justiça, que não teria considerado as características excepcionais do preso, uma das principais liderança do Primeiro Comando da Capital (PCC), segundo eles. O caso motivou cisão dentro da Corte e fez com que parlamentares falassem em revisar a legislação.
Para o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Presidente Prudente, responsável por algumas das maiores investigações sobre o PCC, Mello se ateve a um aspecto "meramente formal" e não se preocupou com a "periculosidade" de André. Ele considera que a decisão pode abrir brechas para entendimentos semelhantes para outros presos, inclusive lideranças de facções, como o próprio Marcola.
Segundo o ministro, a base para a decisão foi em trecho do artigo 316 do Código de Processo Penal, incluído em 2019 após a aprovação do pacote anticrime aprovado no Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro. Esse novo item limita a prisão temporária a 90 dias, com a necessidade de análise de um juiz após esse prazo para renovar a custódia.
"Não tenho dúvida que, sim, todos vão querer mover habeas corpus e tentar ter a sorte de cair nas mãos do ministro Marco Aurélio. É impossível avaliar a casa 90 dias (para verificar se há necessidade de manutenção da detenção, um dos argumentos apresentados pelo ministro)", argumenta. "É uma decisão que nos causa extrema preocupação. São milhares de casos só no Estado de São Paulo que poderiam se enquadrar na mesma situação."
O promotor relata ter chegado a pedir prisão preventiva de André do Rap na sexta-feira, 9, por outro crime a que responde na comarca de São Vicente, após saber da liminar proferida pelo ministro, mas foi negada pelo juiz com base no fundamento apresentado por Mello.
"Já era previsível que ele não iria aguardar no Guarujá e Santos pela condenação em terceiro grau (é condenado em segunda instância) de jurisdição para poder ser preso", justifica. "A palavra que resume toda essa situação é indignação."
O promotor destaca que André tem fortes conexões internacionais e é um nome forte na facção. "Estamos tratando de um pessoa de altíssima periculosidade, que esteve foragida por mais de 5 anos. Só por esse motivo, há de se prever que poderia empreender fuga", defende. "Responsável por todo o tráfico (de cocaína) internacional do PCC a partir do Porto de Santos. É um preso de altíssimo poder aquisitivo, com muitos bens oriundos do tráfico internacional de entorpecentes."
Ele cita, como exemplo, os dois helicópteros que estavam disponíveis no local em que o traficante foi preso, em 2019, em Angra dos Reis, um deles avaliado em R$ 7 milhões. No local também havia um iate, cujo valor é estimado em R$ 6 milhões. "Ele tentou subornar policiais durante a prisão."
Segunda Gakiya, a situação causa frustração na Polícia e no Ministério Público, que, estavam em um momento de ações importantes contra o PCC, como o isolamento de Marcola e outras 21 lideranças, novas prisões e grandes apreensões. Ao saber da liminar que determina a soltura, o secretário da Administração Penitenciária, Nivaldo Restivo, disse a um interlocutor: "Inacreditável. Que País é esse?"
A Policia Civil e a Polícia Federal monitoraram André do Rap depois que ele deixou a penitenciária 2 de Presidente Venceslau no sábado pela manhã. Os agentes constaram que ele se dirigiu para Maringá (PR) em vez de ir para o Guarujá (SP), onde dizia ser sua residência. Os agentes acreditam que de Maringá ele tenha apanhado uma aeronave para seguir até o Paraguai, onde assumiria a chefia da facção.
É no Paraguai e na Bolívia que o PCC mantém contatos com doleiros para a lavagem de dinheiro e controle o tráfico para o Brasil e para a Europa e a África, onde a facção mantém contatos com a 'Ndragheta', principal organização mafiosa da Itália.
"Outros foragidos estão há anos entre o Paraguai e a Bolívia e também têm procurado o continente africano para se esconder. É difícil prender esses indivíduos novamente, tem que contar com a colaboração de polícias de países vizinhos, o que na Bolívia é muito difícil."
Já o promotor Marcio Christino, também do Gaeco e um dos principais investigadores do PCC no País, lembra que o desaparecimento do traficante também ocorre em um contexto em que ele poderia ser preso em pouco tempo por outros casos a que responde criminalmente. "Isso vai afetar inúmeros outros processos. A expectativa é que a decisão final deve ser tida pela turma ou o plenário do STF (em vez de exclusiva de um único ministro)."
De acordo com ele, a força-tarefa de recaptura de André terá uma vantagem em relação às investigações anteriores contra o traficante: ele se tornou mais conhecido e pode chamar a atenção para quem estiver ao seu redor.
A liminar também é criticada por Rafael Alcadipani, professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para ele, a decisão passa a mensagem de que "o crime compensa, basta ter bons advogados" e demonstra uma injustiça "brutal". "O Brasil criou nova forma: o foragido por decisão judicial", critica.
"Esse caso escancara a bagunça do sistema de Justiça tribunal do Brasil, em que a opinião individual de um ministro se sobrepõe", comenta. "Uma situação como essa expõe o Brasil a uma situação vexaminosa."
Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima aponta que a liminar demonstrou as desigualdades da Justiça. "De um lado, prisões superlotadas com cerca de um terço de presos provisórios no País. De outro, situações como essa, que desconsideram os riscos envolvidos e o impacto para a segurança pública", lamenta.
"Milhares de jovens negros presos pobres aguardando julgamento e isso não move o sistema de justiça. Agora, alguém com capacidade de impetrar um HC (habeas corpus) no STF consegue sair livre. São dois pesos e duas medidas, que desconsideram riscos e violência", critica.
"Não conseguimos melhorar a eficiência em punir adequadamente quem precisa ser punido e lotamos o sistema prisional com casos que podiam ser objetivo de outras medidas. Daí ficamos indignados, corretamente, com casos como o de agora. A gente vai enxugando gelo e naturalizando a injustiça."
Para Lima, esse tipo de decisão pode dar escopo para uso político. "A principal consequência é a desmotivação das forças policiais e, ainda, a abertura que o episódio dá para explorações políticas da segurança. As polícias sentem-se ofendidas por verem um caso como o do André, e isso é um prato cheio para políticos surfarem na indignação sem, contudo, mudar tal realidade."