STF mantém absolvição de homem que tentou matar a ex-mulher e alegou 'legítima defesa da honra'

Maioria dos ministros entendeu que decisão de júri popular é soberana e não pode ser modificada. Ataque contra vítima aconteceu em 2016, em Minas Gerais. Professora diz que decisão é 'lamentável e absurda'

29 set 2020 - 22h09
(atualizado às 22h10)

A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve nesta terça-feira, 29, a absolvição de um homem que tentou matar a ex-mulher a facadas diante de suspeitas de traição conjugal por parte da companheira. No júri ocorrido em 2017, a defesa sustentou que o ataque estava amparado na "legítima defesa da honra", argumento que ganhou apoio unânime dos jurados na oportunidade. Os ministros do STF entenderam que a decisão pelo tribunal do júri é soberana e não pode ser modificada.

O ministro Marco Aurélio Mello foi o relator da ação no STF
O ministro Marco Aurélio Mello foi o relator da ação no STF
Foto: Reprodução/STF / Estadão

A votação terminou 3 a 2 a favor da manutenção da absolvição, com votos a favor do relator Marco Aurélio Mello e dos ministros Dias Toffoli e Rosa Weber. Votaram contra os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tinham entendido que a absolvição contrariava as provas reunidas no processo e deliberaram pela realização de um novo júri, o que agora, com a decisão do STF, não deverá ocorrer.

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No Brasil, crimes intencionais contra a vida, como assassinatos e tentativas de assassinato, são julgados por um corpo de jurados formado por cidadãos comuns. Eles ouvem os argumentos formulados pela acusação e pela defesa e votam para decidir pela absolvição ou condenação dos réus. O STF vem ratificando nos últimos anos o entendimento de que a decisão de júris populares, como são conhecidos, não pode ser alterada.

Em 2017, um tribunal do júri foi formado em uma cidade do interior de Minas Gerais para julgar um homem, que, em maio de 2016, atacou a facadas a ex-companheira de quem havia se separado na semana anterior. O homem fugiu após o ataque, mas foi preso em seguida.

À polícia e à Justiça, ele confessou a agressão sob a justificativa de que desconfiava que a mulher estaria tendo um caso com um outro homem. "Bateu um trem doido" foi como ele descreveu o momento, relatando que "foi pegando na sua cabeça" a desconfiança contra a vítima até o dia em que a atacou nas imediações de uma igreja, desferindo golpes com uma faca de serra que feriu a mulher nas costas e na cabeça.

"Desferi três facadas na minha ex, pois vi várias conversas amorosas no celular dela, sou trabalhador e não posso aceitar de forma alguma uma situação humilhante dessas", disse o homem ao policial que o prendeu após as agressões, segundo consta do depoimento do agente à Justiça. O agressor permaneceu detido até a data do julgamento.

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No julgamento, sua defesa apostou no argumento da "legítima defesa da honra". "Ela era a mulher dele e estava fazendo sacanagem com ele. Não tinha necessidade de (ele) fazer isso. Mas fez, o que é que vai fazer? Mas ela fez um curativo no hospital e foi embora para casa. É uma história entre marido e mulher", disse nesta terça-feira ao Estadão o advogado do então réu, José Ramos Guedes, que atuou no júri. "Aleguei legítima defesa da honra. O sujeito confia na pessoa e ela sai para fazer uma coisa...Ele ficou aborrecido, se sentiu desonrado", completou o advogado.

O argumento sustentado por Guedes ganhou apoio unânime entre os jurados. O réu foi absolvido e solto após o julgamento. O Ministério Público apresentou recurso ao TJ de Minas, pedindo a anulação do júri, no que foi atendido. A Corte mineira cassou a decisão dos jurados e determinou novo julgamento. "É certo que os julgamentos pelo júri estão garantidos constitucionalmente, sendo seus veredictos soberanos, o que, contudo, não autoriza que sejam arbitrários e sem suporte no contexto dos autos", escreveu o desembargador Corrêa Camargo.

"Quanto à hipótese de legítima defesa da honra, sabe-se que a moderna jurisprudência, acompanhando a evolução dos comportamentos sociais, vem rejeitando de maneira praticamente unânime, a tese da excludente para aquele que tenta ceifar a vida de outro em face da infidelidade conjugal ou mero ciúme", sustentou o magistrado. Em 2019, a decisão foi do TJ de Minas mantida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) até ser julgada nesta terça-feira pelo STF.

Relator no STF lembrou da soberania dos vereditos prevista na Constituição

Para defender o seu voto a favor da manutenção da absolvição do réu, o relator Marco Aurélio Mello argumentou com base na Constituição Federal. "Temos que a lei maior assegura a soberania dos vereditos. O que é julgamento pelo Tribunal do Júri? É o julgamento por iguais, é o julgamento por leigos, a partir dessa previsão constitucional", disse.

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O ministro Dias Toffoli fez ponderações sobre a instituição do júri, mas defendeu a soberania das decisões dos cidadãos. "O júri é uma instituição anacrônica, deveria ser extinto. Temos que, enquanto isso não ocorrer, respeitar a soberania do júri, seja para absolver, seja para condenar e prender de imediato", disse.

A ministra Rosa Weber também ressaltou que o caso é muito "delicado", mas que decidiria o seu voto entendendo que "há prevalência da norma constitucional" e que "em se tratando de sentença, a decisão absolutória no Tribunal do Júri dada no quesito genérico de absolvição, não há como conhecer, com o maior respeito, o recurso ministerial".

Já para o ministro Alexandre de Moraes, que votou contra a manutenção da absolvição, é constitucionalmente possível a realização de um novo julgamento pelo próprio Tribunal do Júri, dentro do sistema acusatório, e não se deve tornar o corpo de jurados em um poder "incontrastável, ilimitado, sem qualquer possibilidade de revisão".

O ministro Barroso, por sua vez, votou destacando que não gostaria de viver num país em que os homens pudessem matar as mulheres por ciúmes e saírem impunes. "Se chancelarmos a absolvição de um feminicídio grave como esse pode parecer que estamos passando a mensagem de que um homem, se sentir traído, pode esfaquear a sua mulher tentando matá-la em legítima defesa da honra ou seja lá em que tese se possa definir. Não parece que no século 21 essa seja uma tese que possa se sustentar", argumentou.

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'Legítima defesa da honra' não existe no ordenamento jurídico, mas já foi muito utilizada

A professora doutora da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo, Silvia Pimentel, explicou que a linguagem "legítima defesa da honra" não existe no ordenamento jurídico brasileiro, mas que é muito usada, inclusive pelo Poder Judiciário, para absolver agressores de mulheres.

"Não está dentro do ordenamento jurídico brasileiro, mas foi utilizada muitas vezes aqui em nosso País. Há muitas decisões que se valeram desta pseudo excludente de criminalidade. Isto é, esta figura linguística de retórica foi construída numa sociedade patriarcal a partir de um instituto da legítima defesa, este sim presente no ordenamento jurídico brasileiro", disse.

Para a professora, a decisão do STF é "lamentável, não razoável e mesmo absurda". "Isto porque se prevalecer este entendimento as decisões do Tribunal do Júri seriam irrecorríveis no Brasil", afirmou.

O professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Cláudio Langroiva, explica que só há uma hipótese para se anular uma decisão tomada pelo Tribunal do Júri. "Isso ocorre nos casos em que a decisão é manifestamente contrária a provas dos autos. Mas não se pode mudar a decisão do júri, de absolvição para condenação, mas sim ordenar um novo julgamento", disse.

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Ele explica que a instituição do júri é constitucionalmente prevista para dar a única oportunidade dos próprios membros da sociedade decidirem sobre a condenação ou absolvição de uma pessoa. Em outros países, o mecanismo é usado para casos de diferentes naturezas, enquanto no Brasil está restrito a crimes dolosos contra a vida.

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