Um dia após sofrer forte pressão dos familiares de vítimas da Boate Kiss, o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB), determinou nesta sexta-feira a suspensão da ordem de despejo da vigília mantida pelo Movimento do Luto à Luta no centro da cidade, em homenagem aos 242 mortos na tragédia.
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A notificação, entregue na tarde de quinta-feira a Flávio José da Silva, cuja filha morreu na tragédia, estipulava um prazo de 72 horas para que o grupo removesse a tenda armada na praça Saldanha Marinho, no centro de Santa Maria. A justificativa era permitir “a livre circulação” de pedestres no local. Caso o prazo fosse desrespeitado, os familiares estariam sujeitos “às penalidades previstas” na legislação municipal.
A medida teve grande repercussão entre moradores e nas redes sociais, e os familiares prometiam resistir à ordem de despejo. Nesta sexta-feira, diante da pressão, o prefeito determinou a suspensão da medida.
“O prefeito destacou que a questão em si merece uma atenção especial e excepcional pela relevância e ineditismo do fato que sustenta essa forma de manifestação”, afirmou a prefeitura, justificando o recuo na ação. Segundo a prefeitura, Schirmer reconheceu que a decisão de desmontar a tenda dos familiares “tinha mérito”, mas que o caráter “excepcional” da tragédia na Boate Kiss demandaria uma exceção.
Instalada há quase um ano no local, a tenda se tornou ponto de encontro entre os familiares das vítimas e de coleta de doações. Em abril do ano passado, o presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Adherbal Ferreira, havia encaminhado à prefeitura um ofício solicitando a instalação da barraca na praça. Porém, segundo argumenta a prefeitura, em janeiro deste ano, o local teria passado a ser de responsabilidade do Movimento do Luto à Luta, sem que os órgãos municipais fossem oficialmente comunicados.
“A prefeitura não foi comunicada oficialmente sobre essa mudança de responsabilidade, o que também pode ter motivado essa necessidade de regularização”, disse um assessor do prefeito.
Incêndio na Boate Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.
Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.
Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.
Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.
Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.
A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.
No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.
Indiciamentos
Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.
O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.
Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.
Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.
Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.