Delegado: 'há provas materiais de irregularidades no licenciamento da Kiss'

Marcelo Arigony espera concluir até o final de fevereiro dois novos inquéritos com indícios de fraude nas licenças da Boate Kiss

26 jan 2014 - 20h30
(atualizado às 22h45)
Delegado espera concluir até o final de fevereiro outros dois inquéritos que investigam a tragédia na Boate Kiss
Delegado espera concluir até o final de fevereiro outros dois inquéritos que investigam a tragédia na Boate Kiss
Foto: Daniel Favero / Terra

O delegado regional de Santa Maria (RS), Marcelo Arigony, afirmou neste domingo que a Polícia Civil espera concluir, até o final de fevereiro, outros dois inquéritos que investigam a tragédia na Boate Kiss. Apesar de evitar adiantar as conclusões dos inquéritos, Arigony afirmou que há elementos suficientes para comprovar irregularidades na concessão de licenças para o funcionamento da casa noturna.

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"Há provas materiais de que houve irregularidades nessa questão das licenças do funcionamento da boate", disse Arigony, antes de participar de painel no Congresso Internacional Novos Caminhos – A vida em Transformação, que marca o primeiro aniversário da tragédia que provocou a morte de 242 pessoas em 27 de janeiro de 2013.

De acordo com o delegado, os inquéritos em andamento tratam de "fatos periféricos", mas relacionados "ao fato principal". "Embora os inquéritos não estejam concluídos, nós temos, sim, já evidenciadas alguma irregularidades, e isso vai ser tudo colocado nas conclusões finais do inquérito policial, e encaminhado novamente ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, para que eles, e também os advogados das partes, tomem as medidas que acharem de direito", afirmou.

Bastante saudado pelos familiares presentes ao evento, Arigony se disse satisfeito com as conclusões do inquérito e evitou comentar a atuação do Ministério Público, que não viu provas suficientes para denunciar o prefeito Cezar Schirmer (PMDB) e funcionários da administração municipal. "Nós conseguimos dar as respostas que a comunidade esperava, e apontar todas aquelas circunstâncias que nós entendíamos que havia alguma vinculação ao fato. Nós temos a sensação que o nosso dever foi cumprido, e não nos cabe criticar ou fazer análise do que as outras instituições estão fazendo", declarou o delegado.

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MP nega interferência política

Presente ao mesmo painel, o subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do Ministério Público, Marcelo Lemos Dornelles, rechaçou as acusações dos familiares de vítimas da Boate Kiss de que houve interferência política nas denúncias apresentadas à Justiça. "Não houve nenhuma interferência política, nem vai haver. Isso é absolutamente absurdo. As pessoas precisam entender que as responsabilidades jurídicas e políticas são diferentes. Se há a possibilidade de uma responsabilidade política, e isso nós não discutimos, mas juridicamente não se trouxe nenhum fato concreto que pudesse, de alguma forma, ser posto diretamente como uma participação efetiva do prefeito", argumentou.

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Sobre os dois inquéritos que devem ser concluídos pela Polícia Civil no mês que vem, Dornelles admitiu rever a denúncia caso haja fatos novos. "Não é porque tivemos uma posição anterior (que) vamos levá-la até o fim. Isso é uma infantilidade. As posições que nós tivemos foram sobre os autos, provas e documentos que tivemos até então. Há a notícia de que a Polícia Civil vai trazer dois novos inquéritos policiais, e nós vamos avaliá-los, com muita tranquilidade, com muita transparência, como se fez até agora. E, se por acaso, nesses dois inquéritos tiverem fatos novos, nós vamos avançar sem prejuízo de nenhuma posição anterior", disse.

Apesar de afirmar que entende a insatisfação da famílias das vítimas - fruto, segundo ele, de "uma falsa expectativa de uma gama enorme de responsabilizações que depois não se confirmaram" - , Dornelles garantiu que o Ministério Público não se deixará ser influenciado pelo clamor popular. "Se as pessoas não conseguem enxergar e aceitar isso, nós não temos mais o que fazer, a não ser seguir esclarecendo. Nós não vamos criar fatos nem acusações por vingança nem por pressão. Nós temos que fazer aquilo que é", concluiu.

Prefeitura e MP se omitiram, dizem advogados de associação

Na opinião dos advogados da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), a prefeitura e o Ministério Público estavam cientes de que a Boate Kiss estava irregular desde a sua inauguração, e poderiam ter ordenado o fechamento do estabelecimento antes da tragédia. “Como é que uma boate funciona quatro anos em Santa Maria sem nunca ter todos os documentos?”, questionou o advogado Luiz Fernando Smaniotto.

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Luiz Fernando Smaniotto diz que Boate Kiss nunca esteve regularizada
Foto: Marcelo Miranda Becker / Terra

Segundo Smaniotto, a boate nunca apresentou os documentos necessários para o seu funcionamento. Além disso, ela estaria localizada em uma zona de recuperação histórica de Santa Maria, o que demandaria uma autorização prévia do Escritório da Cidade, autarquia municipal vinculada ao gabinete do prefeito. “Qualquer intervenção na zona 2 do município precisa de aprovação prévia do conselho do Escritório da Cidade”, argumentou o advogado Jonas Stecca, que também representa a associação.

Por fim, os advogados dizem haver indícios claros de que houve fraude nas assinaturas colhidas entre vizinhos do empreendimento, necessárias para a aprovação do funcionamento de uma casa noturna. “Naquele local, deveria obrigatoriamente ter sido feita uma consulta popular para ver se queriam os vizinhos abrir uma boate ou não. Isso não houve ou foi fraudado. Tudo isso aí o município sabia e o MP sabia, e eles se omitiram de suas funções.”

Incêndio na Boate Kiss

Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

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Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.

No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos

Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

Fonte: Terra
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