A tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), causou a morte de 241 pessoas, mas muita gente conseguiu se salvar. Pelo menos 623 saíram com vida do incêndio na casa noturna, em 27 de janeiro, conforme levantamento da Polícia Civil. Passados três meses da tragédia, os sobreviventes tentam retomar suas vidas, depois de passar por um trauma sem precedentes.
A tragédia da Boate Kiss em números
Veja como a inalação de fumaça pode levar à morte
Veja relatos de sobreviventes e familiares após incêndio no RS
Veja a lista com os nomes das vítimas do incêndio da Boate Kiss
Mesmo quem conseguiu escapar da boate não ficou ileso. Alguns carregam feridas pelo corpo, outros têm de fazer tratamento médico. Mas muitos também ficaram com marcas que não podem ser vistas. Podem ter saído sem ferimentos ou problemas respiratórios, mas carregam consigo uma tristeza que não se vai. Pelo menos 130 pessoas ainda tiveram que passar por internações em hospitais antes de poder voltar para casa.
Restam ainda quatro jovens internadas, todas mulheres. A torcida é para que as altas venham logo, e para que as meninas possam voltar ao convívio da família e dos amigos, e aos seus verdadeiros lares.
Três meses depois, a tragédia ainda faz parte da memória, e ainda fará por muito tempo, dessas pessoas que conseguiram sair com vida de um inferno. Elas nasceram de novo.
Pela perda dos amigos, apoio psicológico
Na última terça-feira, a estudante de Administração Suzielle Dalla Corte Réquia, 25 anos, fez uma visita à sede da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Ela foi até lá para se informar sobre atendimento psicológico, pois ainda se sente abalada pelo incêndio na Boate Kiss.
Suzielle já tinha se consultado com psicólogas, mas deu um tempo, porque era difícil ficar relembrando a tragédia. “Chega uma hora em que a gente não quer falar mais sobre isso. Mas a psicóloga disse que temos que encarar o medo. É isso que vou fazer”, diz a estudante do Centro Universitário Franciscano (Unifra).
A jovem santa-mariense enfrentou duras perdas. “Morreram 14 conhecidos, e três amigos muito próximos”, destaca.
No dia da tragédia, Suzielle estava perto da saída da boate, e demorou para perceber o incêndio. “Ninguém tinha gritado. Em questão de segundos, veio a fumaça, e já não dava para enxergar mais nada”, relembra.
No tumulto para sair, Suzielle não conseguia enxergar quase nada. Tanto que, sem querer, pisou em duas pessoas ao tentar ir para a rua. A estudante ainda conseguiu passar por um guarda-corpo, mas parou em um segundo obstáculo, tendo que pular sobre ele.
O fato de ter saído da boate sem problemas físicos não fez com que Suzielle ficasse menos abalada. Depois da tragédia, ela até já saiu à noite, mas apenas em locais abertos. A estudante ainda tem medo de algumas situações. Dia desses, foi a um restaurante com a mãe. Ao entrar, ficou reparando em tudo: se tinha extintores, onde estavam as saídas. “Me senti mal e só falei: ‘mãe, vamos embora’”, revela Suzielle.
Da primeira balada juntas, uma não voltou
Apesar de frequentarem uma a casa da outra e da amizade formada no curso técnico em Radiologia, a auxiliar de escritório Michele Pereira, 35 anos, e a amiga Leandra Fernandes Toniolo, 23, nunca conseguiam sair juntas à noite. No dia 26 de janeiro, porém, as agendas combinaram e foram à Kiss.
Michele estava do lado de um dos bares da boate e foi uma das primeiras a sair da casa noturna, não sem antes passar por um segurança que barrava a porta e cortar o joelho ao passar por cima de um guarda-corpo. Leandra tinha ido ao banheiro. Ela não conseguiu sair da Kiss com vida e deixou uma filha de 1 ano e 7 meses.
A auxiliar de escritório chegou à rua dos Andradas e viu um cenário de guerra: havia pessoas caídas no chão e muito desespero. “Parecia um filme de terror. Logo que saí, foi questão de segundo e deu um apagão na Kiss. As pessoas gritavam dizendo que a boate ia explodir”, relembra Michele, que ficou com a carteira da identidade e o celular da amiga.
As duas tinham chegado à boate por volta das 23h do sábado, por orientação de Elissandro Spohr, o Kiko, um dos donos da Kiss. Michele conhecia o empresário e pediu os ingressos. Ele orientou que chegassem cedo, pois a casa deveria lotar.
Na madrugada do dia 27 de janeiro, depois que conseguiu sair da boate, Michele ficou um bom tempo na frente da Kiss, na expectativa pela saída da amiga. Esse momento não ocorreu. Ainda pela manhã, ela foi até a casa de Leandra avisar o pai dela, Ildo Toniolo.
Michele passou por observação no Pronto-Atendimento Municipal no domingo. No dia seguinte, devido a uma tosse constante, voltou a buscar atendimento, no Hospital de Caridade. Até hoje sente falta de ar.
A auxiliar também está recebendo acompanhamento psicológico. Desde a tragédia, não saiu mais à noite. “Fico com medo de acontecer alguma coisa, sei lá. As cenas de pessoas ensanguentadas no chão, desmaiadas, vêm à minha cabeça”, contou.
Casal se salvou junto
O casal de namorados Juliano Almeida da Silva, 23 anos, e Ana Carolina da Costa, 18, estavam num grupo de quatro pessoas na madrugada trágica na Boate Kiss. A jovem desmaiou perto da porta de saída, ainda dentro da casa, e foi retirada por um desconhecido. Juliano conseguiu sair acordado, mas apagou ainda em frente à Kiss. Paula Simone Melo Prates, prima de Ana Carolina, e Daniel Knabbem da Rosa, amigo do rapaz, não conseguiram se salvar.
O casal estava na área VIP, no fundo da boate, e teve que atravessar toda a casa noturna para conseguir sair. Eles e a prima de Ana Carolina se deram as mãos e foram em direção à porta, mas já não era possível ver mais nada. Juliano tentou trancar a respiração por causa da fumaça, mas não conseguiu por muito tempo. No tumulto, o trio acabou se separando.
Ana Carolina e Juliano foram transferidos ainda no domingo para Porto Alegre. Ela ficou 10 dias internada (cinco na UTI) na Santa Casa, com queimaduras. Ele, 39 dias no Hospital Cristo Redentor, com problemas respiratórios além das queimaduras.
Depois de ter alta e voltar a Santa Maria, a jovem ainda retornou para Porto Alegre, onde acompanhou o namorado por 25 dias. O casal namora há três anos. “Foi uma fase bem difícil”, lembrou Ana Carolina.
Os familiares dos dois acompanharam a luta de outros jovens nos hospitais. Ana estava internada na mesma época de Pedro Almeida, 20 anos, a 238ª vítima do incêndio. Juliano foi o último sobrevivente a deixar o Cristo Redentor. Cinco dias antes, Pedro Falcão Pinheiro, 25 anos, morreu no hospital: a 240ª vítima da tragédia.
Na tragédia, Ana Carolina perdeu colegas do curso de Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), e trancou o curso. Ela diz que já era uma decisão anterior à tragédia. Juliano voltou a trabalhar como corretor de imóveis há três semanas, com marcas de queimaduras no braço esquerdo e no rosto. Nos dedos da mão esquerda, precisou fazer enxertos. Ele ainda faz consultas regulares com especialistas e, antes de voltar a trabalhar, passou duas semanas em casa, pois se “sentia meio fraco das pernas”.
“A gente repensa várias coisas na vida depois de passar por uma situação dessas. Dá valor a coisas que não reparava antes”, disse Juliano. Os dois não saíram mais após a tragédia. O máximo foi uma pizzaria, e eles conseguiram não se deter a reparar itens de segurança. “Acho que a cabeça não afetou tanto, porque a gente desmaiou”, concluiu Juliano.
Salva por freezer quer ser soldado
Uma das sobreviventes da tragédia que mais apareceu nos noticiários foi a estudante de Enfermagem Ingrid Preigschadt Goldani, 21 anos. Ela ganhou notoriedade pela história de como se salvou - funcionária da boate, colocou a cabeça dentro do freezer para poder tomar ar antes de seguir em direção à saída em meio à fumaça - e pela foto divulgada pela mãe, a decoradora Eliete Goldani, logo que abriu os olhos na UTI do Hospital Conceição, em Porto Alegre. Ingrid fez um coração com as mãos, pois ainda não conseguia falar.
Depois de três meses, Ingrid já retomou parte das atividades. Desde 24 de fevereiro, voltou a frequentar as aulas na UFSM. A jovem não tinha intenção de retornar tão cedo, pois perdeu um colega muito próximo. “Eu estava com um sentimento de voltar e encontrar o lugar vazio na sala de aula. Mas outros colegas me deram muito apoio, me incentivaram”, revelou.
Ingrid diz que sempre foi muito sentimental e “gosta de dar carinho para as pessoas”. Mas, depois da tragédia, “destravou”, e está ainda mais afetiva. “Passar por uma situação dessas traz mais responsabilidade, te obriga a assumir algumas coisas”, acrescentou.
Na madrugada da tragédia, Ingrid estava servindo bebidas na pista da Kiss, mas, pouco antes do incêndio começar, trocou com uma colega e foi atender na área VIP, ao lado do palco onde a banda Gurizada Fandangueira tocava. O movimento diminuiu por causa do show, que a estudante também assistia. De repente, veio o fogo. Integrantes da banda jogavam água para o teto e tentavam apagar as chamas com um extintor, que não funcionou.
Ingrid só percebeu a gravidade da situação quando um cortina de fumaça preta tomou conta da boate. “Meu celular caiu no chão e me abaixei para pegá-lo. Quando me levantei, a fumaça já veio. Respirei duas vezes e tonteei. A fumaça era quente, tinha gosto. Quando acordei na UTI, ainda sentia aquele gosto”, relembrou.
Ela quase caiu, ao tentar se equilibrar, pôs uma das mãos sobre um freezer. No instinto, colocou a cabeça lá dentro para tomar ar. Em questão de segundos, Ingrid avisou as colegas que estavam nos caixas do andar de baixo sobre o incêndio, colocou a camiseta sobre a boca, fechou os olhos, pulou o balcão do bar e foi em direção à saída, tateando as paredes.
Em determinado momento, lembra que encostou no braço de um rapaz, que a guiou por algum tempo. Já perto da porta, teve que arrastar os pés, para não pisar nas pessoas empilhadas no local. Ainda assim, tropeçou em alguém e caiu. Foi o momento de maior desespero, segundo ela, porque pessoas começaram a cair por cima.
Foi quando Ingrid recebeu a ajuda decisiva para salvar sua vida. Um rapaz desconhecido a puxou. Ela recorda que havia muitas pessoas caídas e a tarefa foi difícil, ele chegou a fazer menção de desistir, e Ingrid apelou: “Eu disse pra ele ‘me puxa pelo amor de Deus, senão eu não vou conseguir sair daqui’. No quarto puxão, ele conseguiu me tirar”. “Eu agradeço toda noite, independentemente de quem for, tanto pela minha vida quanto pela dele”, diz a estudante, que, depois de sair, ainda teve forças para se atirar na frente de veículos que passavam em frente à Kiss e pedir para que os motoristas levassem feridos para os hospitais. Naquele mesmo dia, Ingrid foi atendida no Hospital da Unimed e terminou o domingo entubada no Hospital Universitário de Santa Maria, acordando apenas em Porto Alegre.
Internada no Hospital Conceição, foi o primeiro caso diagnosticado de pneumonia química. A situação dela foi exposta pelo ministro Alexandre Padilha, que deu carona para a mãe da estudante no avião em que estava, da Base Aérea de Santa Maria até Porto Alegre. Com as vias repiratórias e orais queimadas, Ingrid ficou 10 dias internada no Conceição, dois na UTI. Quando acordou, foi motivo para um choro intenso de alegria da mãe.
“Eu não conseguia falar e fiz um coração. Era a única maneira de dizer que eu amava muito ela e que estava muito feliz”, explicou. Eliete pediu para a filha repetir a cena e postou a foto para os amigos no Facebook. Foram mais de 3 mil compartilhamentos e 10 mil curtidas, e a imagem se tornou um símbolo de esperança para aqueles que tinham passado pela tragédia.
De volta a Santa Maria, Ingrid já foi a uma boate, no final de março. “Nas primeiras horas, é bem complicado. Entrei, fiquei do lado da porta e procurei os extintores e as saídas de emergência. Não aguento qualquer tipo de fumaça, nem o gelo seco das boates. Nunca mais vai ser a mesma coisa, até porque faltam algumas companhias do teu lado”, avaliou, referindo-se aos amigos que perdeu.
Com exames e consultas médicas agendados, Ingrid tenta retomar a rotina de aulas e estágio, mas ainda sofre com as consequências físicas da tragédia, pois está com a capacidade respiratória reduzida. “Ando duas quadras e já começo a ofegar, os batimentos cardíacos ficam acelerados.” O trabalho em boate é algo que não está nos planos da estudante, que antes trabalhava se divertindo, disse.
Agora, Ingrid pretende fazer prova física para o concurso de soldado da Brigada Militar. Ainda não sabe se será possível, pois precisa fazer exercícios para adquirir condicionamento, e não está liberada para isso. “Eu já estava com planos traçados no início do ano e acontece isso, você tem que adiar”, disse Ingrid, sem pensar em desistir.
Incêndio na Boate Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 241 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.
Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.
Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.
Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.
Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.
A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.
No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.
Indiciamentos
Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.
O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.
Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.
Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissando - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.
Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.