Kiss, 1 ano depois: famílias se revoltam com 'jogo de empurra' de políticos

Membros da associação de familiares de vítimas da Boate Kiss se dizem desamparados por instituições públicas e atacam o prefeito de Santa Maria

23 jan 2014 - 10h58
(atualizado às 14h57)
<p>No auge da revolta pela morte do filho, o militar da reserva Sérgio da Silva diz ter sugerido 'botar fogo na prefeitura e na Câmara Municipal de Santa Maria'</p>
No auge da revolta pela morte do filho, o militar da reserva Sérgio da Silva diz ter sugerido 'botar fogo na prefeitura e na Câmara Municipal de Santa Maria'
Foto: Reprodução

Um ano após o incêndio na Boate Kiss, a dor das famílias que perderam seus filhos, irmãos, primos e sobrinhos na tragédia, aos poucos, dá lugar à revolta. Membros da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) se dizem desamparados pelas instituições públicas, não poupando críticas ao prefeito de Santa Maria (RS), Cezar Schirmer (PMDB), aos vereadores e nem mesmo ao Ministério Público.

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"Nós, cidadãos, que pagamos por toda essa estrutura de governo para proteger a gente, somos tão carentes disso. Chega no final, é como se você tivesse aquele pai para te proteger e ele não te protege. Então eu, como cidadão, e várias famílias que sofreram isso, nós sentimos a incompetência dos governos: munícipio, Estado e governo federal. É um sentimento de abandono, como se fosse aquele filho abandonado, você não tem para quem gritar, para quem reclamar", queixa-se Sérgio da Silva, integrante do conselho diretor da AVTSM e pai do jovem Augusto Sérgio, que morreu no incêndio, aos 20 anos.

Militar da reserva, Sérgio se mudou na década de 80 do Rio de Janeiro para Santa Maria, onde se casou e teve dois filhos. Oriundo de uma família pobre, de sete irmãos, diz ter aprendido com o pai a sentir orgulho da pátria, característica que reforçou quando entrou para o Exército. A morte do filho primogênito no ano passado, porém, acabou por abalar essa confiança depositada nas instituições do País. "Quando eu passei para a área militar, fortaleceu mais aquele amor à pátria, de valorizar as entidades, aquela coisa toda. Só que é uma utopia. Chega no final, você vê que parece que nada funciona. Neste momento, o meu sentimento é esse", diz, desolado. "Nós estamos sofrendo um momento no País de uma descrença total nas autoridades. O cidadão de bem está sendo destruído, ninguém está tomando uma posição."

A principal queixa de Sérgio é referente ao "jogo de empurra" entre as diferentes esferas do poder, que se eximem de responsabilidade pela tragédia. Segundo o militar, os empresários Mauro Hoffman e Kiko Spohr, proprietários da Boate Kiss, "têm a maior parcela de culpa", mas não podem responder sozinhos pela morte dos 242 jovens. "Pensa bem: você é empresário, a sua função é ganhar dinheiro. Agora, o cidadão paga quem para se proteger? Paga o município, paga o Estado, paga o governo federal. Por que existe o município para fiscalizar? Não precisava ter ele lá, se fosse só depender do empresário. Nós mesmos íamos lá resolver as coisas. A gente tem essas entidades para isso. Aí de repente essas entidades (falam) 'eu não vi, ninguém sabe', um joga para o outro. (...) Eu espero que eles (empresários) sejam condenados mesmo. E que essas outras entidades tomem vergonha na cara e assumam a posição delas", critica o militar.

A posição do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) de não responsabilizar o prefeito na denúncia encaminhada à Justiça provocou indignação entre os familiares das vítimas. "Eu não estou dizendo que o prefeito é o culpado. Não estou falando da figura dele, estou falando da entidade prefeitura. O promotor, ao invés de pegar, ver o que aconteceu e passar para frente, chamar o advogado dele para se defender, o promotor (...) está fazendo papel de juiz. Ele não é juiz nem é defensor público, ele é promotor. E a função dele é acusar, não é defender. Então, é difícil você estar ali como pai, querendo o apoio dele, e ele começar a defender o réu", lamenta Sérgio.

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"O Ministério Público não faz o que tem que ser feito. Eles tinham que erguer a cabeça e achar brechas para defender os pais, para defender nós, essa sociedade que está sofrendo com essa administração", acusa Marília Torres, 28 anos, que perdeu a prima Flávia na tragédia.

Segundo Marília, reina em Santa Maria um sentimento de impunidade, em que a sociedade estaria "de olhos vendados" para a realidade. "Vendem uma imagem que não existe, que não é a que a gente está vivendo. Ninguém supera uma tragédia que mata 242 jovens. Uma cidade que mata os seus jovens e simplesmente se cala durante um ano, isso para mim é um absurdo, é revoltante... eu perco o sono com isso. E não sei como podem as pessoas aceitar isso de uma forma passiva", dispara.

"Quem matou foi a cidade, foi uma administração omissa", acusa Marília Torres, que perdeu a prima na Boate Kiss
Foto: Reprodução

Esquecimento forçado

Segundo Marília, alguns grupos dominantes de Santa Maria tentam incutir na sociedade a ideia de que é necessário esquecer o incêndio na Boate Kiss para que a cidade possa prosperar. "As coisas que a gente escuta, que tem que superar, que tem que esquecer. De ouvir que a gente não deixa Santa Maria crescer, enquanto tem um vazio na tua vida 24 horas por dia, porque quem matou, quem tirou algo de ti foi a cidade, foi uma administração omissa", afirma a jovem, que, após a morte da prima, ajudou a criar a ONG Para Sempre Cinderelas.

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Para Sérgio da Silva, foi a atuação constante das associações de familiares das vítimas que evitaram que o assunto caísse no esquecimento. "Santa Maria, no início, estava afetada, e de repente, alguns meios de comunicação tentaram apagar esse acontecimento, como se tivessem morrido um ou dois... Se não fôssemos nós, os pais, a associação, esse acontecimento já tinha apagado."

"Como tu vais viver em uma sociedade que também se cala? Eu tenho o dever, não só como prima de uma das vítimas, mas como cidadã, de ir lutar por justiça. Como que eu vou me calar sabendo que mataram a minha prima, mataram as amigas dela, como mataram tantos jovens? Santa Maria continua matando os seus jovens, é só abrir um jornal. E nada acontece", diz Marília, que fez duros ataques ao prefeito Cezar Schirmer. "Eu falei para ele: 'o senhor falhou como ser humano, como prefeito, como tudo'. Ele falhou totalmente, ele simplesmente virou as costas, lavou as mãos e disse: 'eu não tenho nada a ver com isso'."

Impunidade

Para os familiares das vítimas da Kiss, a luta agora é para não deixar que a responsabilidade pelo incêndio recaia somente sobre os proprietários da boate e os músicos da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no palco onde o fogo teve início. "Eu acredito que eles vão punir quatro pessoas, se muito, que vão ser os rapazes da banda e os donos da boate. E só. Aí tu perguntas: isso é justiça? Isso vai ser um 'cala a boca' pra nós. Como a gente vai dormir sossegado sabendo que o sistema continua da mesma forma? Eles continuam se protegendo", afirma Marília.

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"Está difícil de ser feita essa justiça. O Brasil tem essa carência de justiça, não é só nesse caso da Kiss que a gente vê injustiça. Mas aqui em Santa Maria, se essa justiça não for feita, nós vamos abraçar todas as injustiças desse País. Enquanto nós tivermos nesse País promotor tomando uísque com o prefeito, com as entidades que controlam o município, o Estado e o governo federal tiverem essa influência um com o outro, vai ser difícil punir alguém", resigna-se Sérgio. "Você viu alguma autoridade dessas aí que o filho morreu lá? E todos eles iam lá também. Mas algum morreu? Vê se tem o filho de algum juiz lá. Vê se tem a filha do prefeito lá. Vê se do promotor tem alguém. Essas pessoas que são pagas para proteger o cidadão, vê se elas estão. Mas, na hora do uísque, na hora da conversa fiada, eles estão. Na hora de se proteger, eles se protegem", diz o militar.

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Do luto à luta

Nos primeiros quatro meses após a tragédia, Sérgio sofreu muito com a morte do filho. Foi só depois de receber apoio psicológico e espiritual que o militar conseguiu reencontrar o equilíbrio. "Foi um terror, eu andava enlouquecido, eu não dormia. No início eu dei até ideia de botar fogo nessa cidade, porque se a gente tivesse botado fogo na prefeitura e na Câmara de Vereadores, a nossa situação agora seria outra. Porque era a hora de fazer isso. A gente acabava com essa história dessa cambada jogar um pro outro. Mas já passou a hora, agora tem que ser tudo certinho, bonitinho. Correndo atrás na política", diz.

Lutar pela punição dos responsáveis pela tragédia - seja direta ou indiretamente - é, na opinião de Sérgio da Silva, "honrar pela memória" de seu filho. "Eu tenho que aproveitar esse sofrimento, transformar ele em força, para que isso não aconteça com outro pai, com outra mãe que venha a sofrer essa situação toda", diz.

Se depender do empenho de Marília e de tantos outros familiares em luto, a memória daqueles que morreram na Boate Kiss jamais será apagada. "A gente não teve apoio do Executivo, do Legislativo e muito menos dos promotores do poder público de Santa Maria. A minha revolta é essa. É a impunidade que se instalou na nossa cidade, e essa imagem medíocre que vendem, que Santa Maria tem que voltar e que este é o ano da superação. Não. Eu afirmo que este é o ano da justiça. E dia 27 está aí, pra quem quiser ver o que nós vamos fazer em Santa Maria", prometeu a jovem.

Incêndio na Boate Kiss

Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.

No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos

Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

Fonte: Terra
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