A Sexta-Feira Santa é feriado para a maioria das pessoas, mas para três promotores criminais que estão em Santa Maria (RS) foi dia de trabalho normal, e eles não contarão com uma folga nem no sábado nem no domingo. O motivo são 52 volumes com 13 mil páginas, que integram o inquérito que investigou a tragédia da boate Kiss. Além deles, há mais 11 volumes de procedimentos relativos a prisões e mandados de busca e apreensão relacionados ao caso. O Ministério Público (MP) corre contra o tempo para analisar essa papelada e oferecer as denúncias à Justiça.
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Na conclusão do inquérito da Polícia Civil, foram indiciadas criminalmente 16 pessoas. Agora, o Ministério Público tem três alternativas, que não são excludentes entre si: pode pedir mais investigações à Polícia Civil; pode pedir para que o inquérito seja arquivado ou que alguns indiciados tenham seus nomes arquivados; e fazer a denúncia para que o processo criminal se inicie. Nesse último caso, o MP ainda pode apontar a responsabilização de pessoas que não tenham sido citadas nas conclusões da Polícia Civil ou não oferecer denúncia de alguém que tenha sido indiciado.
Na tarefa de analisar o inquérito, estão três promotores: Joel Oliveira Dutra e Maurício Trevisan, de Santa Maria, e o coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do MP, David Medina, de Porto Alegre. Nesta sexta-feira, eles contavam com o reforço de dois estagiários de direito e um servidor administrativo do MP. Após a conclusão da análise, os documentos serão remetidos ao juiz Ulysses Louzada, da 1ª Vara Criminal de Santa Maria. Durante a semana, mais estagiários se juntam à força-tarefa, que contou nos primeiros dias com a colaboração de servidores do MP da capital.
Como há indiciados presos preventivamente, o MP tem prazo de cinco dias úteis para decidir se vai ou não denunciar à Justiça os nomes apontados pela polícia. O prazo começou a contar na última segunda-feira, dia 25 de março, e se encerraria nesta segunda-feira, 1º de abril. Mas a complexidade do caso e o grande número de documentos vão empurrar a conclusão para mais adiante, mas provavelmente isso deve ocorrer antes de sexta-feira, dia 5 de abril.
"Não há previsão legal para se pedir a prorrogação desse prazo de cinco dias. Mas nós vamos concluir o trabalho o mais perto possível da conclusão do prazo", avisa o promotor Maurício Trevisan.
Os promotores Joel Dutra e Maurício Trevisan estão dedicados exclusivamente ao caso Kiss. Para que os demais processos criminais em Santa Maria não parassem, a promotora Waleska Agostini entrou em cena e abraçou todos os procedimentos relativos aos crimes, para que os colegas pudessem dar atenção total à denúncia sobre a tragédia na boate.
Jornada de 12 horas diárias
O ritmo de trabalho dos três promotores que se dedicam ao caso Kiss é intenso: são cerca de 12 horas de jornada por dia, do início da manhã até a noite, com intervalo somente para o almoço. Além das dezenas de volumes do inquérito, sobre a mesa de trabalho há chocolates e bolachas para enganar a fome sem forçar uma parada maior.
À medida que os promotores avançam na leitura do material da Polícia Civil, teses vão sendo escritas no computador. "A gente já tem mais ou menos uma ideia do que vai ser escrito. No final, essas teses vão ser colididas, para decidirmos o que vai para a Justiça", explica o promotor Maurício Trevisan, que vai assinar a denúncia com o colega Joel Dutra.
Há uma brincadeira corrente no MP de Santa Maria, encarada com bom humor pelos promotores que estão com o caso Kiss. "Os colegas entram aqui na sala e brincam: 'vocês estão só com um inquérito e não terminaram ainda?'", confidencia o promotor Joel Dutra. A resposta - não a essa brincadeira, mas para a sociedade - será dada nos próximos dias, com direito a uma entrevista coletiva para apresentação dos resultados.
Pedido para que processo corra em Porto Alegre não será analisado agora
Além de indiciar 16 pessoas criminalmente, a Polícia Civil fez outros apontamentos que não estão sendo analisados agora pelos promotores de Santa Maria, seja porque não é a hora ainda, seja porque não é competência dele fazer isso.
A Polícia Civil remeteu cópias do inquérito para que a conduta de outras 12 pessoas seja examinada na Justiça Militar e no Tribunal de Justiça. Entre eles estão o tenente-coronel Moisés da Silva Fuchs, ex-comandante dos bombeiros de Santa Maria, e o prefeito Cezar Schirmer, ambos apontados por indícios de prática de improbidade administrativa e até homicídio culposo.
O prefeito possui foro privilegiado. Se houver indícios de responsabilidade criminal de Schirmer, já que foi apontado pela Polícia Civil com indícios de que tenha praticado homicídio culposo (sem intenção), ele será processado na 4ª Câmara Criminal, do Tribunal de Justiça, em Porto Alegre.
Se a denúncia for oferecida, ela ficará a cargo da Procuradoria de Prefeitos do MP, em Porto Alegre. Pode ser que os procuradores entendam que não houve crime por parte de Schirmer. Nesse caso, há a possibilidade de o processo nem ser aberto na 4ª Câmara do TJ.
Por isso, não será analisado ainda o pedido do advogado Jader, que defende Elissandro Spohr, para que o caso seja levado na íntegra ao Tribunal de Justiça de Porto Alegre. O pedido foi encaminhado para vistas do MP pelo juiz da 1ª Vara Criminal, Ulysses Fonseca Louzada. Como os promotores estão com dedicação exclusiva para o exame do inquérito, o parecer não sai antes da denúncia do MP. "Até porque nem sabemos se haverá denúncia contra o prefeito. Poderia acontecer de o processo ir para a 4ª Câmara do TJ e depois ter que voltar", argumenta o promotor Joel Oliveira Dutra.
O foro privilegiado do prefeito não se enquadra no apontamento de improbidade administrativa feito na conclusão do inquérito. Por isso, nessa esfera, Schirmer deve ser julgado em Santa Maria. Como improbidade administrativa não é crime, os promotores Maurício Trevisan e Ivanise Jann de Jesus irão apurar o caso na esfera civil. Eles irão averiguar se houve essa conduta por parte dos apontados, podendo abrir uma ação civil pública que, em primeira instancia, corre em Santa Maria.
Sobre os nove bombeiros apontados com responsabilidades no inquérito da Polícia Civil, o caso deles só deve ser analisado pelo MP após a conclusão do inquérito policial militar (IPM). Todo o conteúdo da investigação feita em Santa Maria foi encaminhado para o coronel Flávio da Silva Lopes, que preside o IPM sobre o incêndio na boate Kiss. Lopes deve concluir o trabalho até o final de abril. O IPM foi aberto para investigar possíveis irregularidades na fiscalização e na concessão de alvarás pelo Corpo de Bombeiros e também verificar se o procedimento adotado pelos bombeiros durante o resgate às vítimas da tragédia colocou em risco a vida de civis que ajudaram no salvamento. Esse inquérito foi aberto em 29 de janeiro.
Incêndio na Boate Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 241 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.
Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.
Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.
Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.
Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.
A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio. No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A intenção é oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.