Depois de ser notificado extrajudicialmente pela Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), que pediu a retirada de circulação do livro Kiss: uma Porta para o Céu, o padre Lauro Trevisan, autor da obra, divulgou uma nota dizendo que já retirou da publicação os trechos que causaram indignação. “Longe de mim criar polêmicas ou machucar quem quer que seja. Afinal, somos todos irmãos”, escreveu o religioso no final de um texto divulgado no sábado.
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A primeira edição do livro se esgotou. Ainda pode haver obras circulando pelo País, mas a Editora da Mente não tem esse controle. Em Santa Maria (RS), no sábado, não havia mais exemplares na Livraria da Mente, que também é de propriedade do padre. Um exemplar custava R$ 20. Neste domingo, por telefone, Lauro Trevisan garantiu que a segunda edição do livro, que já está na gráfica, não terá os trechos contestados pelos familiares das vítimas.
Na sexta-feira, a associação fez um pedido formal ao padre Lauro Trevisan, por meio de uma notificação extrajudicial protocolada no Tabelionato de Protestos (Ofício dos Registros Especiais), em Santa Maria. O padre recebeu o aviso no final da tarde de sexta-feira, na sede da Editora da Mente, na Rua Tuiuti, no Centro de Santa Maria, onde também reside.
Por meio de seu presidente, Adherbal Alves Ferreira, a associação manifestou “total repúdio” a alguns trechos do livro Kiss: uma Porta para o Céu. As partes destacadas negativamente pela AVTSM são duas. Na página 5, o seguinte trecho: “No auge da balada celestial, o Pai perguntou se alguém queria voltar. Dois ou três disseram que sim e foram encontrados vivos no caminhão frigorífico que transportava os corpos ao Ginásio de Esportes.” Na página 11, a parte que desagradou aos familiares da vítima compreendia “[...] num imenso gesto heroico de solidariedade, a salvar os que agonizavam em meio à fumaça funérea?!”.
De acordo com a associação, esses trechos causaram imensa indignação entre os familiares das vítimas da tragédia, levantando ainda “sérias dúvidas a respeito da veracidade dos fatos narrados, em especial no primeiro trecho”. Na notificação entregue ao padre, a entidade ainda destaca que não existe registros de que algum sobrevivente foi retirado do caminhão frigorífico. Isso levaria a crer que a pessoa foi retirada viva da boate e transportada como morta ao Centro Desportivo Municipal de Santa Maria.
Na notificação, a associação pede que o autor do livro esclareça os trechos destacados por ela e que aponte eventuais culpados que teriam sido responsáveis por levar sobreviventes em meio a pessoas mortas no caminhão para o CDM. A entidade ainda solicita a “imediata retirada de circulação do livro”.
Em nota divulgada no sábado, o padre Lauro Trevisan que a única intenção do livro é “ajudar a confortar os que sofrem, a reanimar Santa Maria e a oferecer lições à humanidade para tornar o mundo melhor”. Ele destaca que o livro não é documentário nem reportagem, mas uma mensagem de “conteúdo psicológico-espiritual”.
Padre Lauro ainda ressalta que, da página 1 à página 6 do livro, escreveu uma alegoria. “É claro que não entrevistei Deus nem que houve pessoas vivas no caminhão frigorífico. Fiquem tranquilos quanto a isso. Trata-se de alegoria. Eu sempre expliquei que o livro não é documentário nem reportagem, mas um voo às dimensões transcendentais da vida. Para o bem das pessoas que não entenderam a alegoria e tomaram como realidade ofensiva, informo que já retirei o texto do livro.”, escreve o religioso na nota.
Em relação ao outro trecho polêmico, na página 11, Lauro Trevisan escreve: “O que há de errado neste texto? Não aconteceu? Vou explicar o que significa agonizar, segundo o dicionário Houaiss, de onde retirei o termo. 'Agonizar: estar prestes a morrer'. Todos os que morrem estiveram prestes a morrer”.
Caso Isabella também teve livro polêmico de autor de Santa Maria
Em 2009, outro autor de Santa Maria se envolveu em uma polêmica. A Justiça vetou a distribuição e a venda do livro "Caso Isabella - Verdade Nova", do médico Paulo Papandreu. A decisão saiu após a mãe de Isabella Nardoni, Ana Carolina de Oliveira, entrar com uma ação no Fórum de Santana, em São Paulo, por danos morais.
Incêndio na Boate Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 241 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.
Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.
Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.
Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.
Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.
A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.
No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A intenção é oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.