Santa Maria levará 5 anos para se recuperar da tragédia na Kiss

Tempo para recuperação é baseado na experiência da Cruz Vermelha em guerras e catástrofes naturais

22 jan 2014 - 08h12
(atualizado em 26/1/2014 às 17h12)
Profissionais da prefeitura aprenderam com a experiência de guerra para lidar com os traumas da tragédia
Profissionais da prefeitura aprenderam com a experiência de guerra para lidar com os traumas da tragédia
Foto: Daniel Favero / Terra

A experiência da Cruz Vermelha e dos Médicos Sem Fronteiras, baseadas em guerras africanas e catástrofes naturais apontam que Santa Maria levará ao menos cinco anos para se recuperar da tragédia que matou 242 pessoas na Boate Kiss, na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. É o que relatam os funcionários da prefeitura que atuaram na linha de frente após o incêndio.

Após um trauma dessa magnitude, desenha-se uma pirâmide para avaliar os impactos psicológicos do que aconteceu. Na base, estima-se que entre 60 e 70% da população seja afetada de alguma forma pelo que aconteceu, mas consegue superar os efeitos psicológicos com ajuda de familiares e amigos. No meio, entre 20% e 30% precisam de algum tipo de atenção psicológica, mesmo que seja apenas uma conversa. E na ponta, entre 1% e 4% desenvolvem distúrbios, às vezes já pré-existentes, mas não desencadeados, que precisam de tratamento psiquiátrico e medicamentos.

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“Ao analisar, a maior parte dessas pessoas (expostas ao que aconteceu em Santa Maria), nós vamos identificar que a grande maioria delas conseguiu, não resolver os problemas, mas encontrar um lugar para essa vivência, que não impede que ela continue a viver. Não se trata de esquecer, de negar, mas de encontrar um lugar na nossa história onde isso faça sentido ou permita que isso siga adiante”, afirma o psicanalista que atualmente coordena o atendimento psicossocial em Santa Maria, Volnei Dassoler.

As orientações da Cruz Vermelha e dos Médicos Sem Fronteiras já previam as fases do trauma pós-desastre nas duas primeiras semanas, primeiro e segundo mês, e agora após um ano da tragédia. “O acompanhamento psicossocial é de pelo menos cinco anos, com base na experiência em desastres naturais, não é como o que aconteceu aqui”, explica a enfermeira da prefeitura Adriana Krum, que coordenou os atendimentos nos dias seguintes ao que aconteceu em Santa Maria.

Passar pela experiência de ter uma cidade arrasada pela perda violenta e repentina de tantos jovens não foi fácil até mesmo para quem não tinha relação direta com os mortos. Dassoler diz que militares, policiais, agentes funerários, jornalista e até um coveiro precisaram de auxílio no período que sucedeu a tragédia.

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“Teve o caso de um coveiro que acompanhou o enterro de 50, 60 pessoas. Ele sofreu muito, e até hoje ele está em tratamento... ele nos procurou dizendo que não ia sobreviver à aquilo, que era demais”, conta Dassoler. 

Atualmente a cidade está dividida entre os que querem transformar 2014 no ano da “superação” e entre aqueles que buscam a justiça e mudanças que possam evitar que aquilo se repita.

Adesivo na porta do gabinete de professor da Universidade Federal de Santa Maria, que perdeu aproximadamente 100 alunos
Foto: Daniel Favero / Terra

Entretanto, para aqueles que querem lembrar, a palavra “superação” não necessariamente significa uma coisa boa. “Se fala muito na palavra superação, que nós temos que superar. É uma das palavras que nós temos que ter muito cuidado ao usar porque pode ter efeito, ou ser escutada de maneira diferente. Se falar em superação, como virar a página, esquecer, você está forçando a que essa situação não encontre lugar na sua vida, e é justamente com isso que os familiares ficam muito revoltados, porque entendem que superação significa esquecer”, explica Dassoler.

Na Universidade Federal de Santa Maria, onde estudavam quase 100 das vítimas do incêndio da Kiss, o recomeço foi muito difícil. Muitos estudantes ainda estavam na cidade em janeiro por conta da greve que havia ocorrido no decorrer de 2012. Mas o trauma em turmas, como o segundo semestre de Agronomia, que perderam 10 alunos, foi muito duro na cabeça de alguns alunos, que sequer voltaram para a universidade, conforme relata o professor do Departamento de Biologia Sylvio Bidel, que perdeu 31 alunos na tragédia.

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“(Os alunos) que estavam na boate e sobreviveram, com esses tivemos mais dificuldades de trabalhar, porque estavam muito afetados, muita revolta.... tenho aluno que trabalha no meu laboratório, que foi um dos últimos a sair de dentro da boate. Ele ficou muito abalado, foi para São Borja, retornou, foi feito tratamento psicológico por longo tempo, porque ele dizia:  ‘professor eu devo ter matado muita gente’, porque ele saia abrindo espaço com as mãos”, relata. Os professores também tiveram dificuldades de voltar, e Sylvio foi uma dessas pessoas.

“Para mim foi muito difícil enfrentar, eu fui um dos professores que tive dificuldade de retomar o semestre. Naquele momento o mais importante era realmente dar aconchego e carinho para essas meninos que estavam abalados do que propriamente continuar com o conteúdo programático de uma disciplina do curso. Naquele momento foi mais importante passar uma mensagem e mostrar para eles que nos também estávamos sentindo esse drama e que todos nós precisamos dar as mãos para prosseguir”, lembra. 

Incêndio na Boate Kiss

Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

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Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Equipe do Terra lembra a tragédia de Santa Maria
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Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.

No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos

Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

 

Fonte: Terra
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