O Ministério Público de São Paulo denunciou 53 policiais militares supostamente envolvidos com um esquema de proteção a traficantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), na zona sul da cidade. A denúncia de 537 páginas detalha como os agentes negociavam com os criminosos para obterem propina em troca da liberação de suspeitos, devolução de droga apreendida e informações sobre a atividade de patrulhamento na região dos locais de interesse dos traficantes.
Para delinear a atuação da organização criminosa, como classificado pelo Ministério Público, os investigadores usaram interceptações telefônicas para monitorar a atuação dos suspeitos. As gravações mostraram, segundo o promotor Cláudio Henrique Bastos Giannini, que a conduta não era isolada, "mas abrangia diversos integrantes da corporação, todos lotados no 22º Batalhão". Todos os suspeitos estão presos desde dezembro.
Leia a seguir alguns dos trechos usado pelo promotor para acusar os policiais. O Estado não conseguiu identificar no processo os advogados responsáveis pela defesa dos agentes. Em nota, a Secretaria da Segurança Pública disse não compactuar com "desvios de conduta de seus policiais e apura com rigor todas as ocorrências por meio da Corregedoria das instituições".
"A denúncia do Ministério Público corrobora o trabalho de investigação realizado pela Corregedoria da Polícia Militar, iniciado em fevereiro de 2018. Os 53 policiais militares permanecem presos e devem responder processo administrativo disciplinar e, dependendo do resultado, as punições podem variar desde sanções administrativas até demissão."
'O chefe vai querer tudo junto'
Narra o MP que no dia 8 de junho de 2018, às 19h43, o cabo André Willian Barbosa, o Bolado, ligou para o traficante Julio Cesar de Oliveira Silva, o Revolta, informando que havia detido um suspeito e exigiu R$ 1,5 mil para que sua equipe o liberasse.
Revolta: Alô
Bolado: Caralho, os meninos estão certos, estamos com o Bonequinho aqui na mão, mano.
Revolta: Os cara são foda, Bolado, os cara são foda.
Bolado: Tá foda, vai ser um por plantão, mano. Nós vamos começar a trabalhar na folga também, mano.
Revolta: Eu tô ligado, tem que trocar uma ideia da melhor forma, você tá ligado, mano.
Bolado: Eu falei, né, um e meio (R$ 1,5 mil) e depois entrávamos no bolo.
Revolta: Eu tô ligado, passei essas ideias para os caras, mas não veio nenhum retorno.
Bolado: Ah, então tranquilo, só estou avisando que nós saímos cedo, nós conseguimos voltar ainda.
Revolta: Eu tô ligado, tio, o bagulho é...eu não queria que estivesse acontecendo essas fitas aí, mano.
Bolado: Então, é, tá deselegante mesmo, mas demorou então.
Revolta: Então suave.
Bolado: Falou.
No dia 12 de junho, às 18h52 e às 19h26, Bolado entra novamente em contato com Revolta e informa que o "chefe", referindo-se ao sargento Audelanio Soares Ferreira, o Pastor ou Veinho, quer o pagamento inicial de R$ 1,5 mil e posteriormente R$ 1,2 mil. Bolado indaga Revolta se ele iria efetuar o pagamento de uma vez só ou de forma parcelada, uma vez que o chefe não quer ficar dando a cara no ponto de tráfico de drogas.
Revolta: Deixa eu falar para você, a caminhada é a seguinte, mano. E para nós resolvermos as ideias lá?
Bolado: Então, o chefe quer um e meio, mano.
Revolta: Então, um e meio e na próxima um e dois.
Bolado: É, então, foi o que ele falou.
Revolta: Então, eu mandar agora esse um e meio, tio, entendeu?
Bolado: Tá, eu vou falar.
Revolta: Porque a caminhada é o seguinte, tá ligado, Bolado, eu tô procurando resolver da melhor forma, eu to embaçando na dos brow aqui em cima, era um e dois, tá ligado? Aí em cima do desacerto que deu que não foi conversada as ideia, fechou em um e meio, tá ligado? Mas a caminhada é o seguinte. Eu vou mandar esse um e meio aí para nós continuarmos as ideias da hora, tio, porque fica chato essas ideias aí.
Bolado: Vai pagar tudo de uma vez só, né?
Revolta: Então, a caminhada é a seguinte, eu não vou mentir para você Bolado, eu espero que seja assim até o dia vinte, mas a caminhada é o seguinte, se você me ligar na data, eu levo o seu onde que for, tio, entendeu?
Bolado: Então, mas é o que eu tô falando, o chefe vai querer tudo junto, mano, para não ficar dando a cara aí. Ele não quer ficar dando a cara, mano.
Revolta: Não, já era, eu vou procurar resolver da melhor forma, pega esse um e meio aí que hoje eu ainda te dou esse retorno, entendeu?
Bolado: Mas já está na mão aí, já?
'Vai entrar na sintonia ou não?'
No dia 27 de abril de 2018, o sargento Glauco Pradella Teixeira da Cunha, conhecido como Talibã, contata Mathias. Diz a acusação que é possível perceber que o militar já realizou ligações para outros traficantes para exigir quantias em dinheiro a fim de não coibir a prática de tráfico de drogas na região, fato que demonstra habitualidade criminosa dos policiais.
Mathias tenta argumentar que já paga os policiais militares da Força Tática. O MP vê aí a configuração de um esquema criminoso, no qual atuam vários policiais militares do 22º Batalhão.
Mathias: Alô?
Sargento Pradella: Alô. E aí, tio, vai entrar na sintonia ou não?
Mathias: Mas e aí senhor, desde a hora que você está perguntando se vai entrar na sintonia o senhor falou quanto que o senhor queria? Para eu passar para os amigos pelo menos…
Sgt. Pradella: Já, troquei ideia com uma par de cara, o cara falou para mim que era o responsa daí de cima.
Mathias: Não trocou nada, comigo você não trocou, quem tá fechando na geral sou eu, não é os caras, não.
Sgt. Pradella: O cara falou para mim que era do abacateiro também, que era da mesma responsa, eu troquei ideia na semana passada que era para me ligar, ficou de me ligar e não liga.
Mathias: Eu vou te passar outro número, esse número aqui você não fica ligando, entendeu? Eu sou o Mathias, senhor, já não sei se eu falei com você alguma vez aí, entendeu?
Sgt. Pradella: Então, eu nunca falei com você não.
Mathias: Então, se você nunca falou comigo, você está falando agora, eu que pago os caras da Força Tática do plantão de hoje, no suvaco tudo, sou eu que pago, entendeu, senhor? Mas aí vocês precisam passar quanto que vocês querem, que aí já vai incluir o abacateiro e a outra em cima, tem três nossa aí, uma do lado da outra.
Sgt. Pradella: Eu tô ligado.
Em nova ligação, aproximadamente às 22h45, o sargento Pradella exige a quantia de R$ 1,5 mil por ponto de venda de droga em que não haveria o enfrentamento ao tráfico por sua equipe policial, o que totalizaria R$ 4.5 mil. Na mesma conversa, o militar cita a detenção de um civil, inicialmente identificado por Guilherme, que seria cunhado de Mathias, e pergunta se não teria como adiantar algum valor para que o civil fosse solto, pois "os caras vão querer".
Mathias: Alô
Sargento Pradella: Então
Mathias: Ô senhor
Sgt. Pradella: E aí?
Mathias: Qual era o valor que vocês estavam pedindo para não encostar em nenhuma das três lojas?
Sgt. Pradella: Em nenhuma, é um e meio cada uma, entendeu?
Mathias: Dá o quê, quatro e meio, né?
Sgt. Pradella: Isso
Mathias: Então vou trocar uns papo lá e vou passar para os irmão lá que vocês querem quatro e meio e vou trocar um papo lá para ver se eles fazem a liberação, daí nós começamos a conversar, tá bom?
Sgt. Pradella: Certo.
Mathias: É o Mathias, senhor, pode perguntar para os outros aí, que trabalham nas mesmas barcas suas que eles me conhecer, entendeu?
Sgt. Pradella: Entendi, e deixa eu te falar, e esse moleque aqui, o que você quer fazer?
Mathias: É o Guilherme?
Sgt. Pradella: É.
Mathias: É o meu cunhado, senhor.
Sgt. Pradella: Então, o que você quer fazer?
Mathias: Ele tá o com o senhor ainda aí?
Sgt. Pradella: Tá, po, nós estamos aqui no bagulho, ele tá lá dentro, entendeu?
Mathias: Não, vê esse moleque aí, vai, é meu cunhado, a irmã dele ligou aqui agora e falou que era o irmão dela e que era para eu ver o que eu fazia, só que eu nem falei que ele trabalha para mim na loja, entendeu, senhor?
Sgt. Pradella: O que dá para fazer com esse moleque aqui, que nós já conversamos aqui e veremos o que dá para fazer para liberar já, entendeu?
Mathias: Eu vou fazer uma lá, para trocar um papo lá, para vocês estarem recebendo o dinheiro de vocês, entendeu, senhor?
(...)
Mathias: Tá bom, olha só, eu vou trocar uns papos com os amigos lá e vou falar que eu entrei na linha com vocês e vocês estão pedindo quatro e meio para não embaçar em nenhuma das quatro lojas, aí vamos ver o que eles vão me mandar de retorno, o senhor tem o meu número, o senhor pode ir ligando para mim que nós vamos trocando um papo.
Sgt. Pradella: Tá, e do moleque aqui, não dá para mandar alguma coisa? Eu já converso com os caras aqui porque os caras vão querer, o delegado aqui vai querer também.
Mathias: Não, eu tô ligado, aí o senhor vê o que dá para o senhor fazer para dar uma aliviada aí, o moleque é menor, vai sair.
'Qual que é a fita, senhora?'
No dia 25 de junho, o traficante Revolta conversa com a policial militar Graciele da Silva Santos e eles citam o policial Tiago Lucas Alves, conhecido como Paraná. REvolta fala que já pagou Paraná, que foi buscar a quantia em dinheiro com uma moto particular, e afirma que Graciele deveria se entender com ele.
Revolta: Alô
Graciele: Ô, Revolta, ô caralho, tá tirando, caralho?
Revolta: Qual que é a fita, senhora?
Graciele: O, filho, já foi conversado essa porra, já.
Revolta: Oxe, qual que é a fita, a caminhada é a seguinte, a senhora iria pegar o do Paraná, não é?
Graciele: Meu e do Paraná, só foi pego o do Paraná.
Revolta: O do Paraná eu já mandei, se a senhora tá andando com ele a senhora tem que cobrar dele.
Graciele: Ele falou que era com você, filho
Revolta: (...)
Graciele: Quê?
Revolta: É o seu e o dele, vocês não estão andando juntos? É três perna para cada um.
Graciele: Mas ele tá de licença, caralho.
Revolta: Como? Mas ele veio de moto, ele veio de moto e pegou, veio com a moto vermelha dele e pegou, entendeu? Pode ligar para ele e perguntar.
'Tá todo mundo em busca do ouro'
No dia 13 de abril de 2018, por volta das 21h59min, os soldados Moacir Eduardo de Miranda, o Alemão 2, e Adriano Alcântara de Oliveira exigem pagamento de R$ 2 mil do traficante Galo para liberar Erick Alves de Oliveira, abordado com celular produto de roubo.
Galo: Alô?
Alemão 2: Fala, meu truta, pode falar rapidinho, mano?
Galo: Pode
Alemão 2: Deixa eu falar, você conhece o Erik?
Galo: Erik?
Alemão 2: Erik, o Moringa?
Galo: Conheço não, mano. Da onde?
Alemão 2: Ele falou que te conhece.
Galo: Ele tá com você aí?
Alemão 2: Tá.
Galo: Pegou você com alguma fita aí?
Alemão 2: Não, peraí mano, deixa eu falar agora. É o seguinte. A gente abordou ele, tinha um celularzinho. O celular está constando produto.
Galo: Nossa.
Alemão 2: Não, mas nem questão era isso, entendeu? Era merreca, para ajudar ele.
Galo: Entendeu, mas você tá com ele onde?
Alemão 2: Não, a gente veio trazer ele aqui pro 98 (DP, Jardim Miriam), entendeu?
Galo: O menino é gente boa, pô. Mas teve que levar para o 98?
Alemão 2: Não, não, só para tirar de lá, entendeu? Porque a gente pegou o bagulho na cintura dele, tá ligado, e eu falei: 'mano, que patifaria é esta aí?'
Galo: Mas se quiser voltar com ele pra lá, eu encosto, mano, para nós trocar umas ideia, mano, lá no prédio.
Alemão 2: Então, o bagulho foi para dois cruzeiros, entendeu? A gente vai fazer um papelzinho aqui, só para tirar, porque a gente saiu de lá, entendeu?
Galo: Certo
Alemão 2: Só uma averiguaçãozinha, e depois que sai daqui a gente encosta aí. Nós jamais vai querer prejudicar ele em nada, se tiver que adiantar, nós arruma um jeitinho para adiantar e todo mundo se adianta, tá todo mundo em busca do ouro, certo? Do tesouro, entendeu?
Galo: O menino é gente boa, desalgema ele aí, pô.