Os olhares da cidade de Barão de Cocais, em Minas Gerais, estão todos voltados para a Barragem Sul Superior, que corre risco de ruptura como resultado da deformação de um talude (terreno inclinado) a 1,5 km dali.
A Vale, responsável pela instalação - no perímetro da Mina de Gongo Soco, desativada desde 2016 -, e órgãos como a Defesa Civil intensificaram a presença na pequena cidade e seu entorno na semana passada, quando a própria empresa notificou o poder público sobre o risco de deformação do talude.
Mas, desde fevereiro, quando o nível de alerta em Sul Superior subiu, famílias já foram evacuadas das áreas mais próximas e estão vivendo em hotéis ou imóveis alugados pela empresa; simulações foram realizadas com a população, e placas com rotas de fuga, instaladas.
Esta preparação mostra sinais de melhora na atuação da empresa na prevenção e contenção de riscos, na comparação com tragédias anteriores? Não para Andressa Lanchotti, promotora no Ministério Público de Minas (MP-MG) e coordenadora do Centro de Apoio das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente (Caoma).
"É crítica e inaceitável esta situação de insegurança, deste tamanho, para a sociedade, que hoje vive com o temor de um rompimento iminente. A empresa tem que ser responsável por toda a sua atividade, e não vejo nenhuma melhora da companhia nesse sentido. Hoje temos quatro barragens da Vale em Minas Gerais em nível 3 de emergência - que indica ruptura ou iminência de ruptura", aponta.
"A companhia ainda precisa rever completamente a sua estruturação, seu gerenciamento de barragens".
Lanchotti acompanha de perto a atuação da Vale e de rompimentos decorrentes de sua atividade desde 2016, quando assumiu a coordenação da força-tarefa responsável pelo caso Samarco - em que o rompimento de uma barragem (da qual a Vale era uma das controladoras) no município de Mariana em 2015 deixou 19 mortos e danos ainda incomensuráveis para a população e o meio ambiente. No início deste ano, outra barragem, da Vale, rompeu e deixou mais de 240 mortos - tragédia a partir da qual foi criada a força-tarefa do caso Brumadinho, também coordenada pela promotora.
A promotora concluiu doutorado na Universidade de Castilla-La Mancha, na Espanha, na área de direito ambiental e tem mestrado em engenharia ambiental.
Na gestão da situação atual em Cocais, Lanchotti, que fica baseada em Belo Horizonte, aponta que a Vale tem fornecido informações desencontradas aos órgãos públicos; estudos subdimensionados de riscos de ruptura; e assistência deficiente à população - por conta disso, por exemplo, o MP-MG entrou com uma ação contra a empresa pela evacuação "abrupta e assustadora, durante a madrugada" feita em fevereiro, que deslocou cerca de 500 pessoas de suas casas nos distritos de Piteiras, Socorro, Tabuleiro e Vila do Gongo.
"A empresa entrou com uma ação no plantão do último fim de semana pedindo autorização para fazer obras de contenção. Esse planejamento não foi discutido com órgãos de Estado", aponta a promotora.
O próprio escritório da promotoria em Cocais precisou ser deslocado, pois estava na mancha de inundação prevista em caso de ruptura.
Em nota enviada à reportagem (confira a íntegra no final da matéria), porém, a Vale garante ter adotado "todas as medidas preventivas (...) desde 8 de fevereiro" e que "adota tecnologias com seguindo os parâmetros mais modernos de segurança e monitoramento disponíveis hoje no mercado e de referência internacional".
"A empresa reitera que tem compartilhado todas as informações disponíveis com as autoridades competentes", acrescentou a empresa.
Documentos revelados
Lanchotti destaca que as falhas da empresa no caso de Cocais vêm de antes do agravamento da crise em fevereiro.
"Nos autos, a Vale sempre negou a existência de outras barragens em risco (depois do caso Samarco). Mas, depois do rompimento em Brumadinho, fizemos requisições de documentos e recebemos em 31 de janeiro um estudo da própria Vale com o ranqueamento de risco das barragens. Esse documento, de outubro de 2018, dizia que havia 10 barragens em estágio de atenção - duas delas que tinham acabado de romper, B1 e B4".
"Para nós foi uma surpresa, porque a Vale sempre negou a existência de outras barragens em risco".
Nesta lista, não estava incluída a Barragem Sul Superior - provavelmente porque o estudo de ranqueamento ainda era parcial.
"Em fevereiro, fomos surpreendidos com mais duas barragens que tiveram seu nível de emergência elevado, entre elas a Sul Superior", lembra a promotora.
Naquele mês, cumprindo exigências da Agência Nacional de Mineração (ANM), as empresas Vale e ArcelorMittal Mineração notificaram o acionamento do nível 2 de emergência (anterior ao nível de maior risco, o 3) em suas barragens em Cocais e Itatiaiuçu, respectivamente. Em março, Sul Superior chegaria ao nível 3.
O acionamento em fevereiro veio depois de que empresas terceirizadas inspecionaram as barragens e não atestaram a Condição de Estabilidade delas - uma declaração (DCE) que deve ser emitida periodicamente segundo normas da ANM, mesmo para instalações inativas.
O monitoramento externo e independente é, aliás, uma necessidade primordial para a segurança das barragens, segundo aponta Lanchotti. Para ela, porém, a configuração atual nesse quesito ainda é insatisfatória - e ainda tende a um "automonitoramento", conforme aponta.
"Os dois últimos rompimentos de barragens que aconteceram tinham DCEs emitidas, tanto em Mariana quanto Brumadinho. No caso da B1 (em Brumadinho), a empresa responsável pela última avaliação tinha pelo menos outros seis contratos em andamento com a Vale. Ou seja, o sistema permite que uma empresa que emite a declaração de estabilidade seja contratada também para outras atividades. Entendemos que é completamente equivocado, você não consegue garantir a independência da empresa auditora", afirma.
"Como a mineração é uma atividade de risco, é preciso um controle efetivo do Estado. Essa é a crítica de relegar tudo ao autocontrole das empresas".
Em nota, a Vale afirma que "ao contratar empresas de auditoria de renome internacional, a Vale esperava que estas empresas tivessem responsabilidade técnica, independência e autonomia na prestação de seus serviços".
Para a promotora, como está hoje, a legislação ainda abre espaço para o "automonitoramento", mas ela menciona projetos em andamento no legislativo que podem aprimorar isso, tanto a nível local quanto nacional.
"A ANM fiscaliza (a operação), mas o Estado (de MG, por exemplo) tem um controle muito grande do processo ao fazer o licenciamento".
A agência, diz a promotora, também precisa de muito mais recursos humanos e materiais para alavancar a fiscalização.
Mas o fato de duas empresas não terem emitido a DCE para as barragens em Cocais e Itatiaiuçu em fevereiro não é um sinal de maior independência do sistema? Lanchotti se mantém cética.
"É um sinal de que as prisões, a possibilidade de responsabilização ficou mais real. Mas ainda assim questionamos o próprio sistema, tanto que ingressamos com mais de 20 ações buscando auditorias em barragens verdadeiramente independentes".
'Tecnologia obsoleta'
Outro ponto fundamental - e crítico - no cenário atual da insegurança das barragens no país é a técnica conhecida como "alteamento a montante".
"É um método que utiliza o próprio rejeito na construção. Todas as barragens envolvem riscos, mas os especialistas são uníssonos em dizer que essa modalidade é obsoleta e a de maior risco. Mas tem custo operacional mais baixo e maior lucro", explica.
As barragens que romperam em Mariana e Brumadinho, e a que agora corre risco em Barão de Cocais são do tipo alteamento.
Ao menos em Minas, porém, este método deverá definitivamente ficar para trás depois que a assembleia legislativa do Estado aprovou, em fevereiro, um conjunto de leis relativas fruto do projeto "Mar de lama nunca mais", proposto pelo próprio MP-MG. Entre as regras aprovadas, referentes ao licenciamento e à fiscalização de barragens, está a proibição de construções a montante.
Perguntada sobre um diagnóstico em relação à segurança de barragens de outras empresas de mineração além da Vale, Lanchotti diz ser "temerário" avaliar companhia por companhia.
"Mas o setor como um todo ainda tem muito a melhorar", diz.
Leia a seguir a nota da Vale na íntegra:
A Vale reforça que adotou todas as medidas preventivas em Barão de Cocais, desde o dia 08 de fevereiro, com o objetivo de assegurar a segurança dos moradores da região. Além da retirada preventiva dos moradores da Zona de Autossalvamento, a Vale apoiou as autoridades na realização de simulados e na preparação das comunidades para todos os possíveis cenários, com equipes de prontidão permanentemente. A cava da mina Gongo Soco vem sendo monitorada 24 horas por dia, de forma remota, com o uso de radar e estação robótica, além de sobrevoos com drone. Esses equipamentos são capazes de detectar movimentações milimétricas da estrutura. O vídeo-monitoramento é feito em tempo real pela sala de controle em Gongo Soco e no Centro de Monitoramento Geotécnico (CMG) - quatro equipamentos estão localizados na sala de controle da mina e outros dois no CMG.
A Vale adota tecnologias com seguindo os parâmetros mais modernos de segurança e monitoramento disponíveis hoje no mercado e de referência internacional. A empresa já possui um sistema estruturado de gestão de barragens e investe continuamente na melhoria de seus processos, buscando sempre as melhores técnicas operacionais e tecnologias. Entre 2015 e 2018, investimentos em gestão de barragens cresceram 160%. Só em 2019, a previsão é que sejam investidos R$ 256 milhões - mais informações estão disponíveis em http://brumadinho.vale.com/Vale-informa-que-o-investimento-em-gestao-de-barragens-cresce-180-entre-2015-e-2019.html.
A empresa reitera que tem compartilhado todas as informações disponíveis com as autoridades competentes.
Sobre a questão das declarações de estabilidade, ao contratar empresas de auditoria de renome internacional, a Vale esperava que estas empresas tivessem responsabilidade técnica, independência e autonomia na prestação de seus serviços, pois cabe ao auditor o papel de realizar um processo sistemático, documentado e independente para obter todas as evidências possíveis e avaliá-las objetivamente, privilegiando a segurança acima de tudo.
Veja também: