CNV: famílias de desaparecidos esperam que seja só o início

Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) trouxe alento apenas parcial a parentes que ainda não sabem onde estão os restos mortais de seus entes queridos

11 dez 2014 - 08h41
(atualizado às 09h13)
Segundo a Comissão Nacional da Verdade, 210 pessoas mortas na ditadura seguem desaparecidas
Segundo a Comissão Nacional da Verdade, 210 pessoas mortas na ditadura seguem desaparecidas
Foto: Agência Brasil

Sem trazer respostas sobre o paradeiro de pessoas desaparecidas durante a ditadura militar, o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), apresentado nesta quarta-feira, trouxe alento apenas parcial a parentes que ainda não sabem onde estão os restos mortais de seus entes queridos.

Instalada em 2012, a CNV conseguiu identificar apenas três desaparecidos – entre elas o de Epaminondas Gomes de Oliveira, morto em 1971 em um hospital do Exército –, cujos restos mortais estavam enterrados em Brasília. Os outros corpos são de Paulo Torres Gonçalves e Joel Vasconcelos Santos.

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"O relatório foi um divisor de águas, por concluir (uma etapa) e para abrir novas investigações. Ele fecha um ciclo para abrir um novo", diz à BBC Brasil Tessa Moura Lacerda, filha do militante Gildo Macedo Lacerda, preso, torturado e morto em 1973 no DOI-CODI de Recife, onde foi enterrado como indigente. Seus restos mortais nunca foram identificados.

"Mas eu também preciso fechar um ciclo. Eu preciso dar um enterro digno ao meu pai. Devo isso a ele. Nesse sentido, há certa frustração (com a CNV)."

O jurista Pedro Dallari, coordenador da comissão, admitiu que o baixo número de desaparecidos localizados é "a maior frustração" do órgão.

"O sentimento comum é de que o trabalho da Comissão não deveria ser encerrado, deveria ser um ponto de partida", diz à BBC Brasil Thais Barreto, assessora da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo e sobrinha de José e Otoniel Campos Barreto, ambos mortos em 1971 na Bahia na operação militar Pajussara, que matou também Carlos Lamarca, um dos líderes da oposição armada.

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Os corpos dos Campos Barreto nunca foram encontrados.

Sua família fez um ofício à CNV e à comissão estadual paulista pedindo "empenho" para localizar e trasladar os corpos, que acredita estarem no Cemitério do Campo Santo, em Salvador, sem identificação.

"Sabemos das dificuldades, e a entrega dos mortos e desaparecidos (a suas famílias) depende de mais tempo e da continuidade dos trabalhos", agrega Thais.

Vítimas

O relatório da CNV conseguiu confirmar que houve 434 vítimas mortais do regime militar, sendo que 210 continuam desaparecidas. Dezenas delas são da Guerrilha do Araguaia, movimento de oposição à ditadura que tentou formar um grupo armado na selva Amazônica no início da década de 1970.

Epaminondas Gomes de Oliveira foi o único desaparecido identificado pela CNV
Foto: IML DF

Em entrevistas recentes, Pedro Dallari disse que muitos corpos foram incinerados ou atirados em mares e rios, impossibilitando sua localização. Mas ele citou também a falta de colaboração de parte das Forças Armadas resistente em abrir seus arquivos (os quais poderiam indicar locais onde militantes foram enterrados).

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Fontes do governo alegam que o Exército faz parte desde 2009 de um grupo – o Grupo de Trabalho Araguaia – criado para tentar localizar ossadas da guerrilha. Vinte e sete restos mortais, que se acreditam ser de militantes assassinados, estão sob investigação.

Muitos desses restos mortais estariam extremamente danificados pelo tempo e pelas condições do local, o que dificulta sua identificação.

Na entrevista coletiva de apresentação do relatório da CNV, Dallari disse que foram criadas condições para que se mantenha uma "estrutura permanente" de análise forense - em referência ao centro de antropologia forense da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que tem como um de seus objetivos ajudar na identificação de restos mortais de militantes assassinados e enterrados com nomes falsos ou em valas comuns.

Ao mesmo tempo, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, ligada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, diz que seus trabalhos de identificação de corpos "já aconteciam independentemente da CNV e continuarão". Resultados parciais da análise de ossadas no cemitério de Perus (em São Paulo, onde foi encontrada uma vala clandestina) serão divulgados nesta sexta-feira.

Memórias doloridas

Para Wadih Damous, presidente da CEV-Rio (a Comissão Estadual da Verdade no Estado fluminense), a CNV permitiu "avanços na identificação da autorias de alguns casos (de crimes), mas na localização dos restos mortais não se avançou nada".

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Familiares dizem que relatório trouxe à tona memórias doloridas, mas mostra que histórias "não foram esquecidas"
Foto: Agência Brasil

Criméia Almeida, esposa de André Grabois – desaparecido em uma emboscada na região do Araguaia, em 14 de outubro de 1973, aos 27 anos -, diz esperar que as denúncias e responsabilidades levantadas pela CNV tenham continuidade em investigações e depoimentos no Ministério Público.

"Dois pontos são fundamentais: a localização e o esclarecimento dos destinos dos corpos e a responsabilização penal por isso. Nesse aspecto a relatoria tem muito a contribuir", diz Crimeia à BBC Brasil.

Ela diz que, ao mesmo tempo em que a Comissão fez reviver memórias doloridas, mostra que as histórias das famílias "não foram esquecidas".

"A ferida não vai fechar. Para as vítimas, esses crimes não prescrevem nunca. Mas terei certo conforto quando eu vir as punições dos responsáveis."

A família do militante e ex-presidente da União Nacional dos Estudantes Honestino Guimarães, desaparecido em 1973 aos 26 anos, também espera que a busca por respostas continue.

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Seu caso foi considerado "único" por não haver nenhum rastro sobre seu paradeiro. Em outubro passado, a família lançou uma campanha para resgatar a memória de Honestino e buscar pistas sobre o caso.

Sua ex-mulher, Isaura Botelho, disse à BBC Brasil que também espera que o Ministério Público dê continuidade aos trabalhos da CNV, bem como os grupos estaduais que têm investigado localmente abusos cometidos na ditadura.

"Estamos na mesma situação, mas com alguma esperança de que, quando começarmos a puxar o fio, vão aparecer coisas (informações sobre os restos mortais de Honestino)", comenta Isaura. "Os trabalhos (da CNV) continuarão de outra forma. Ela foi importante para dar visibilidade ao tema e abriu portas para as buscas dessas histórias."

Tessa Lacerda acha que o fato de o relatório da CNV ter sido aberto e divulgado à sociedade civil também permite que novas gerações tenham conhecimento dos atos brutais praticados na época.

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