A pressão pelo afastamento do procurador Deltan Dallagnol do comando da força-tarefa da operação Lava Jato de Curitiba é crescente, desde que o vazamento de mensagens atribuídas a ele e a outras autoridades levantou suspeitas sobre a legalidade da condução de investigações pelo Ministério Público Federal no Paraná.
As conversas, reveladas pelo site The Intercept Brasil desde junho, indicam que Dallagnol teria mantido uma proximidade indevida com o ex-juiz Sergio Moro, hoje Ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro, bem como extrapolado suas prerrogativas de procurador em primeira instância para incentivar a investigação dos ministros do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Dias Toffoli (presidente da Corte).
Deltan e Moro não refutam nem reconhecem totalmente o conteúdo das mensagens, mas desqualificam as revelações argumentando que o material foi obtido ilegalmente e não mostraria nenhuma conduta ilegal.
Em meio a esse desgaste, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) - formado por 14 integrantes, entre eles a procuradora-geral da República, Raquel Dodge - pode analisar nesta terça-feira dois casos que questionam a atuação de Deltan Dallagnol. No entanto, é improvável que o procurador sofra algum tipo de punição nesta sessão, pois nenhum desses casos está em fase final de resolução.
Além disso, Dodge deu ontem um sinal de apoio à continuidade da Lava Jato ao renovar por mais um ano a estrutura da força-tarefa que atua em Curitiba, cujo prazo de funcionamento se esgotava em setembro.
A equipe conta hoje com 15 procuradores, 28 servidores e 26 estagiários. A nota que comunicou a renovação destacou ainda que a Lava Jato no Paraná já consumiu R$ 5,4 milhões desde 2014 em diárias e passagens, sendo R$ 808 mil no primeiro semestre desse ano. Já o custo para substituir os procuradores que ficam cedidos de outras áreas do MPF para a força-tarefa soma R$ 1,4 milhão ao ano.
As denúncias contra Dallagnol
As punições possíveis de serem aplicadas pelo CNMP vão de advertência à suspensão de até 90 dias e demissão, mas integrantes do MPF ouvidos pela BBC News Brasil, tanto que apoiam como que criticam a Lava Jato, veem pouca probabilidade de uma punição dura contra Dallagnol no momento.
Um dos casos que está previsto para julgamento pelo conselho nesta terça é uma reclamação movida pelo senador Renan Calheiros em março contra manifestações de Dallagnol em redes sociais. Segundo Calheiros, o procurador adotou posicionamento de cunho político ao defender, por exemplo, o voto aberto da eleição para o comando do Senado em fevereiro - o voto secreto acabou mantido e mesmo assim Calheiros perdeu o comando da Casa para o senador Davi Alcolumbre.
A previsão é que hoje o CNMP pode decidir se a reclamação dará origem a um procedimento administrativo disciplinar (PAD) contra o procurador - caso isso ocorra, será aberto um prazo de noventa dias para investigação e manifestação da defesa.
No entanto, como Calheiros ampliou sua reclamação na quinta-feira e passou a pedir o afastamento temporário de Dallagnol durante a apuração do caso, é possível que o caso seja retirado de pauta para que esse novo pedido seja analisado pelo corregedor nacional do Ministério Público, Orlando Rochadel, antes de ser submetido ao conselho.
Já o outro caso previsto para essa terça-feira é um recurso apresentado por Dallagnol contra um procedimento administrativo disciplinar já aberto contra ele por ter dito, em entrevista à radio CBN, que decisões tomadas pelos ministros do STF Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski passam a mensagem de leniência com a corrupção.
Dallagnol enfrenta ainda outras reclamações, como a movida pela Associação Nacional de Desembargadores (ANDES) para apuração de investigação ilegal dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Já o PT e políticos do partido moveram quatro queixas que questionam as palestras feitas pelo procurador e o uso de recursos públicos para produção de vídeo institucional da campanha pelas "10 medidas contra a corrupção".
Em ambos os casos previstos para análise nesta terça, o procurador defende que suas falas são protegidas pela liberdade de expressão. Além disso, Dallagnol desqualifica o conjunto das reclamações como uma reação contra o trabalho da Lava Jato no combate à corrupção.
"Sim! Deltan Dallagnol será punido! Assim quer Gilmar Mendes, assim quer o Centrão, assim quer o Partido dos Trabalhadores. É inevitável que atinjam essa infâmia diante da união de seus interesses contra a Lava Jato e o que ela representa, um modelo de combate eficaz à corrupção", acusou também Carlos Fernando dos Santos Lima, procurador aposentado, ex-integrante da força-tarefa da Lava Jato, ontem em sua página no Facebook.
Risco de afastamento parece baixo
Apesar dos receios manifestados por Santos Lima, porém, integrantes do MPF ouvidos pela BBC News Brasil não consideram que o cenário mais provável, no momento, seja de uma punição tão dura a ponto de Dallagnol ser excluído definitivamente da Operação Lava Jato. Isso demandaria sua demissão, já que o "princípio constitucional da inamovibilidade" impede que ele seja afastado definitivamente (para além da suspensão de até 90 dias) dos casos de sua responsabilidade.
Além disso, há um entendimento jurídico de que provas ilícitas - caso das mensagens hackeadas do Telegram do procurador - não podem ser usadas para gerar punição.
"O procedimento que está aberto (no CNMP) é por causa da entrevista à radio (CBN). Não vejo por que alguém pode ser afastado por livre manifestação do pensamento. Nos outros casos (relacionados as mensagens reveladas pelo Intercept), tem a questão da prova ilícita", nota a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen.
Já a subprocuradora-geral da República Ela Wiecko, que tem manifestado críticas a alguns procedimentos da operação Lava Jato e considera grave o teor das mensagens reveladas pelo Intercept, também é cautelosa ao analisar a situação de Dallagnol.
"Para mim não fica claro se seria caso de afastamento, como ocorre em caso de improbidade administrativa. Seria muito radical nesse momento. É preciso dar espaço para ampla defesa", defendeu.
"Agora, se ele deixar de ser coordenador (da força-tarefa), não vejo porque os processos e tudo que tem que ser feito (pelo MPF em casos da Lava Jato) vão deixar de acontecer", ressaltou Wiecko, ao ser questionada se a operação ficaria em risco caso Dallagnol seja punido.
No momento, não há qualquer resolução que estabeleça regras para funcionamento de forças-tarefas no MPF. Para a subprocuradora Wiecko, seria interessante criar um rodízio nas chefias desses grupos para evitar um "personalismo excessivo" como ocorreu no caso da Lava Jato.
A visibilidade alcançada por Dallagnol nos últimos anos, acabou colocando-o num espaço "indevido" de espécie de porta-voz do Ministério Público, na avaliação de Wiecko.
Outro efeito foi a abertura de um lucrativo mercado de palestras para integrantes da força-tarefa - segundo as mensagens reveladas pelo Intercept, Dallagnol projetava ganhar R$ 400 mil com palestras e livros em 2018.
Expectativa no STF e na sucessão da PGR
Para além das reclamações no CNMP, a Lava Jato também pode ter seu rumo afetado por decisões do STF e pela sucessão no comando da Procuradoria-Geral da República (PGR) em setembro.
No Supremo, está previsto que a Segunda Turma volte a analisar um pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para considerar que Sergio Moro agiu com parcialidade em seus processos. Se o pedido for aceito, as condenações contra o petista por corrupção passiva e lavagem de dinheiro nos casos do Triplex do Guarujá e do Sítio de Atibaia podem ser anuladas.
A grande questão é se os ministros do STF vão considerar válidas as conversas reveladas pelo Intercept nesse julgamento - os diálogos, caso verdadeiros, mostram Moro orientando a atuação da força-tarefa da Lava Kato por meio de Dallagnol.
"Ao meu ver, o caso Lula está nulo, pois o juiz Moro agiu violando o princípio sagrado da suspeição. Mas o que saiu pelo Intercept não vai anular a Lava Jato toda, pois outros réus não são citados (nas conversas)", avalia o ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles.
Outro ponto de indefinição é a sucessão da Procuradoria-Geral da República (PGR). O mandato de Dogde acaba em 17 de setembro, e, embora ela possa ser reconduzida para um novo período de dois anos, a expectativa é que o presidente Jair Bolsonaro anuncie nesta semana outro nome para comandar o MPF.
Ele têm recebido diversos candidatos ao cargo no Palácio do Planalto, ignorando a lista tríplice eleita pelos procuradores federais em pleito organizado pela ANPR (associação que representa a categoria), em que venceram Mario Bonsaglia, Luiza Frischeisen e Blal Dalloul. Desde 2003 a lista vem sendo respeitada por todos os presidentes, medida defendida como forma de garantir a autonomia da instituição.
Visto como favorito na disputa, o subprocurador Augusto Aras afirmou em entrevista ao jornal O Globo nesta segunda-feira que a Operação Lava-Jato tem "pequenos desvios a serem corrigidos", citando o "personalismo" como o principal deles.
"Eu não tenho dúvida que os três que estão na lista fortalecerão as ações contra corrupção. Agora, os outros procuradores que estão correndo por fora, ninguém sabe o que eles pensam", criticou a procuradora Janice Ascari, integrante da força-tarefa da Lava Jato em São Paulo.
Continuidade e legado da Lava Jato
Apesar de toda a polêmica em torno da operação, a Lava Jato segue em movimento, com desdobramentos em diferentes Estados. A força tarefa que atua no Rio de Janeiro comemorou em julho a prisão de Dario Messer, apontado como o "doleiro dos doleiros". Investigados desde os anos 80, ele nunca havia sido preso. É acusado de movimentar dinheiro de forma suspeita de políticos, empresários e criminosos.
Já em São Paulo, a juíza federal substituta Flavia Serizawa e Silva aceitou denúncia na sexta oferecida pela força-tarefa da Lava Jato contra 14 pessoas, a maioria ligada às empreiteiras Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e OAS, por suspeita de pagamento de propinas em obras do Metrô em São Paulo.
As acusações se baseiam na delação premiada de Sérgio Brasil, diretor do Metrô na gestão José Serra (PSDB) e assessor de PPP (parcerias público-privadas) na Secretaria de Planejamento do governo Geraldo Alckmin (PSDB). Brasil também se tornou réu, mas terá direito a benefícios.
Parte da equipe da Lava Jato em São Paulo, a procuradora Janice Ascari conta que os trabalhos ganharam novo impulso neste ano, quando a força-tarefa paulista passou a ter uma estrutura maior, com dez procuradores, sendo seis de dedicação exclusiva. Segundo ela, desde fevereiro a equipe recebeu "dezenas" de casos remetidos do STF, de autoridades que deixaram de ter o benefício do foro privilegiado.
"Temos várias colaborações em andamento e um trabalho forte na cooperação internacional, inclusive recebendo semanalmente equipes dos ministérios públicos de outros países que vêm ouvir principalmente executivos da Odebrecht, sobre crimes que a empreiteira cometeu em outros países", disse à reportagem.
Se, por uma lado, a estratégia adotada pela força-tarefa de Curitiba, de mobilizar a opinião pública por meio das redes sociais e com entrevistas à imprensa, está em xeque, os membros do MPF ouvidos pela BBC Brasil destacam como legado da operação justamente a intensificação dos acordos internacionais, um amadurecimento do uso da delação premiada e um formato de trabalho com maior interação entre Polícia Federal, Receita Federal e MPF por meio do mecanismo da força-tarefa.
Para Silvana Batini, procuradora regional da República no Rio de Janeiro e professora da direito da FGV, a Lava Jato foi reflexo de um conjunto de fatores, como o fortalecimento da independência do Ministério Público, o amadurecimento das instituições brasileiras após três décadas de redemocratização e evoluções na legislação, como a lei de organizações criminosas de 2013 que regulou melhor a aplicação da delação premiada.
"Esse modelo não corre risco", acredita.