'Comi cascas de batata do lixo e me cobri com cadáveres para não morrer', diz sobrevivente do Holocausto

27 jan 2017 - 06h53
(atualizado às 08h42)
Uruguaio radicado em São Paulo, Francisco Balkanyi, de 88 anos, relembra como escapou da morte durante nazismo
Uruguaio radicado em São Paulo, Francisco Balkanyi, de 88 anos, relembra como escapou da morte durante nazismo
Foto: Flavia Nogueira/BBC Brasil

O uruguaio Francisco Balkanyi, de 88 anos, dos quais 50 vividos em São Paulo, leva no corpo a marca de uma maiores tragédias da humanidade.

Em seu antebraço esquerdo, estão gravados os dígitos 186550, a identificação que lhe fora designada pelos nazistas.

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O tempo apagou parte da tatuagem, mas os horrores do Holocausto - o genocídio de 6 milhões de judeus durante a 2ª Guerra Mundial pela Alemanha nazista - permanecem vivos na memória de Balkanyi.

"Éramos apenas um número. Tive de comer cascas de batata do lixo e me cobrir com cadáveres para não morrer", conta ele por telefone à BBC Brasil.

Balkanyi é um dos poucos sobreviventes ainda vivos do massacre. Nesta sexta-feira, comemora-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, solenidade instituída pela ONU em 2005.

Em um misto de português e espanhol, ele relembra as privações e torturas pelas quais passou com uma memória invejável, apesar da idade avançada.

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Filho único de judeus húngaros, Balkanyi nasceu no Uruguai em 3 de outubro de 1928, mas se mudou para a Europa com os pais, quando tinha apenas um ano.

"Meus avós paternos estavam com saudades do meu pai e insistiam que ele voltasse para a Europa", diz.

De volta ao Velho Continente, os Bakanyis se instalaram em Cakovec, uma cidade da antiga Iugoslávia, hoje Croácia. Ali montaram uma livraria e uma gráfica - e o negócio logo prosperou.

No antebraço esquerdo de Balkanyi, estão gravados os dígitos 186550, identificação que lhe fora designada pelos nazistas
Foto: Flavia Nogueira/BBC Brasil

Prisão

Mas a ascensão de regimes totalitários na Europa começou a preocupar a família, que tentou revalidar a nacionalidade uruguaia, sem êxito - foram impedidos pela ditadura de Gabriel Terra (1931-1938), que então comandava o Uruguai.

Em 1940, a Hungria se aliou ao Eixo e, em menos de um ano, invadiu o norte da Iuguslóvia com o respaldo dos alemães. Os bens dos Balkanyis acabaram confiscados, conta ele.

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A perseguição aumentou gradativamente e, em 1944, com a Hungria dominada por completo pelas forças nazistas, o destino dos Balkanyis foi fatalmente selado.

"Fomos feitos prisioneiros e colocados em trens rumo aos campos de concentração", recorda ele.

A família acabou separada: pai e filho foram enviados para o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, enquanto que a mãe foi mantida em outro, em uma cidade próxima.

"Só soubemos do paradeiro de minha mãe e que ela estava viva quando recebemos uma correspondência dela", conta ele.

"Ela havia conseguido subornar um guarda nazista dando-lhe as roupas de judeus que haviam sido enviados às câmaras de gás", acrescenta.

As câmaras de gás, aliás, foram o trágico destino de seus avós maternos. O vigor físico de Balkanyi, então com 15 anos, lhe poupou do extermínio.

Mas embora sua saúde o tenha inicialmente salvado da morte, os cerca de 11 meses em que ficou preso em campos de concentração - inicialmente em Auschwitz, na Polônia, e posteriormente em Buchenwald, na Alemanha, cobraram seu preço.

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Inicialmente forçado pelos alemães a trabalhar na construção de uma fábrica de produtos químicos, chegou a carregar sacos de cimento de até 50 quilos. Até hoje, por causa disso, sua mobilidade é reduzida.

"Não tinha o que comer. À noite, quando os guardas nazistas iam dormir, eu e outros companheiros íamos roubar as cascas de batata jogadas no lixo. Era delas que nos alimentávamos", recorda.

Balkanyi foi libertado pelos americanos em 11 de abril de 1945
Foto: Flavia Nogueira/BBC Brasil

Libertação

Em 1945, com o avanço dos soviéticos e o prenúncio do fim da guerra, os nazistas começaram a deixar as áreas ocupadas no leste europeu e retornar à Alemanha. Levaram consigo os prisioneiros, no que ficou conhecido como a "Marcha da Morte" - muitos deles não resistiram às jornadas quilômétricas feitas a pé em meio ao inverno intenso, debaixo de temperaturas negativas.

Enquanto seu pai permaneceu em Auschwitz, por causa da saúde debilitada ("Eles diziam que iam matá-lo"), Balkanyi foi colocado em um trem de transporte de carvão com destino ao campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha.

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Os vagões eram abertos e, sem proteção, teve de desafiar a morte mais uma vez.

"Tive de me cobrir com cadáveres de outros prisioneiros para aguentar o frio. Das 200 pessoas que estavam a bordo, acho que só 20 sobreviveram", estima.

Em 11 de abril de 1945, Balkanyi foi finalmente libertado pelos americanos.

"Durante o tempo em que estive preso, passei de 80 para 42 quilos. Era só pele e osso. Se os americanos tivessem demorado mais 15 dias, teria morrido", diz.

Livre, ele voltou a Cakovec, onde, miraculosamente, reencontrou o pai e a mãe - a família, uma das poucas a ter sobrevivido ao Holocausto, havia combinado de voltar à cidade se escapasse com vida do genocídio.

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Sem dinheiro e com a Europa devastada pelo conflito, os três conseguiram voltar ao Uruguai em 1948 com a ajuda de um parente.

Em Montevidéu, Balkanyi conheceria a futura mulher, Rita, com quem teve três filhos. Ali dedicou-se ao comércio e teve duas fábricas de roupas.

Durante o tempo em que esteve preso, Balkanyi passou de 80 para 42 quilos
Foto: Flavia Nogueira/BBC Brasil

Mudança para o Brasil

Tudo corria bem, quando em meados dos anos 60, decidiu se mudar com toda a família para o Brasil, preocupado com o totalitarismo que avançava no Uruguai.

"Tinha um amigo que morava aqui (São Paulo) e me convidou para vir. Não queria passar novamente pelo que passei", recorda.

Hoje com seis netos e quatro bisnetos, Balkanyi diz estar preocupado com a ascensão do neonazismo no Brasil.

Uma reportagem recente da BBC Brasil mostrou que a polícia civil vem detectando uma maior movimentação de grupos de caráter neonazista em São Paulo nos últimos meses.

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Segundo especialistas e policiais, entre as possíveis causas para essa tendência estão o cenário político no Brasil, o fortalecimento de partidos conservadores e de extrema-direita no exterior e a situação de desemprego e instabilidade econômica.

"Tenho 88 anos e não vou viver para sempre. Por isso, é muito importante continuarmos a contar essa história para que o mundo nunca se esqueça do que aconteceu", diz Balkanyi, que tem material suficiente, entre memórias e anotações, para escrever "um ou dois livros, mas me falta a habilidade dos grandes escritores".

Exposição fotográfica "Lembrar e Honrar", sobre as crianças no Holocausto, fica em cartaz até 26 de fevereiro
Foto: Conib / BBC News Brasil

Ato solene

Por ocasião do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, entidades judaicas vão promover um ato solene em São Paulo no domingo.

A cerimônia, cujo tema será o "Holocausto e Intolerância no Mundo", vai homenagear os 6 milhões de judeus mortos, com o acendimento de seis velas por sobreviventes do Holocausto, representantes de outras comunidades, vítimas do nazismo e de perseguições, autoridades políticas, religiosas, institucionais e jovens.

No mesmo dia, será inaugurada a exposição fotográfica "Lembrar e Honrar", sobre as crianças no Holocausto. A mostra ficará em cartaz na Sinagoga da Congregação Israelita Paulista (CIP), em São Paulo, até 26 de fevereiro.

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Colaborou Flavia Nogueira, da BBC Brasil em São Paulo

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