Embora não tenha a autoridade para julgar e punir os militares acusados de tortura e outros crimes durante a ditadura militar (1964-1985), a Comissão Nacional da Verdade (CNV) reabrirá nesta semana um baú histórico cujos achados serão revirados no Judiciário e na opinião pública.
O aguardado relatório da Comissão, a ser divulgado na quarta-feira, recolocará a Lei da Anistia, promulgada em 1979 pelo Congresso, de volta ao centro do debate; e diretamente relacionada a ela, a discussão sobre as punições dos militares acusados, que permanece incerta.
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinicius Coelho, disse à BBC Brasil que a instituição entrará com nova ação no STF pedindo o julgamento de militares na própria quarta-feira, usando o relatório da CNV para fundamentar seu pedido de revisão da Lei da Anistia.
Militares envolvidos em crimes como tortura e desaparecimento de corpos nunca foram julgados porque esta lei anistiou crimes praticados entre 1961 e 1979 tanto pelo regime militar quanto por militantes contrários à ditadura. Para que hoje torturadores possam ir ao banco dos réus, é preciso que o STF modifique sua interpretação da lei ou que o Congresso altere a redação da mesma.
Crimes 'políticos'
A grande controvérsia é se crimes comuns, como tortura, assassinato, ocultação de cadáver e estupro, deveriam ser perdoados. A Lei da Anistia prevê o perdão a todos que "cometeram crimes políticos ou conexos" e define como conexos "os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política". Até hoje prevaleceu a interpretação de que os crimes como tortura são atos conexos.
Na opinião de juristas ouvidos pela BBC Brasil, a composição majoritariamente conservadora do parlamento brasileiro torna improvável que uma mudança passe pelo Legislativo. Há inclusive um projeto de lei nesse sentido apresentado pela deputada Luiza Erundina (PSB-SP) em 2011, mas que até hoje não foi votado. A expectativa, portanto, é de que o imbróglio seja resolvido pelos onze ministros do Supremo. É um tema que divide o mundo jurídico.
Em abril de 2010 o STF já havia se manifestado contrariamente à revisão da Lei da Anistia em resposta a outra ação movida pela OAB. No entanto, depois disso, em novembro do mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil ao julgar abusos cometidos pelo Estado na repressão à Guerrilha do Araguaia, foco de resistência armada à ditadura militar que operou na região amazônica.
A corte decidiu que a Lei da Anistia é "incompatível com a Convenção Americana" e "não pode continuar sendo um obstáculo à investigação (…) de casos graves de violação de direitos humanos" no Brasil.
Na avaliação da Corte Interamericana, esses são crimes contra a humanidade que não podem, portanto, ser perdoados ou prescrever (quando esgota-se o prazo máximo para um crime ser julgado, limite que no Brasil vai até 20 anos, dependendo do caso).
O Brasil aderiu à Convenção Americana em 1992. Seu artigo 68 determina que os países que assinarem o texto "comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes". Em outubro deste ano, a Corte Interamericana publicou uma resolução cobrando que o Brasil cumpra sua decisão.
Além do novo questionamento que será feito pela OAB, o PSOL já entrou com uma ação em maio deste ano no STF pedindo que a decisão da Corte Interamericana seja cumprida.
Novo Supremo
Desde 2010, quando o placar no STF foi de sete votos contra e dois a favor da revisão da Lei da Anistia, houve mudanças na composição do tribunal. Cinco ministros se aposentaram: três tinham se manifestado contra (Eros Grau, Ellen Gracie e Cezar Peluso), um a favor (Ricardo Lewandowski) e Joaquim Barbosa não havia participado porque estava de licença médica.
Com a mudança de quase metade da corte, os juristas ouvidos pela BBC Brasil dizem que é imprevisível o resultado da nova ação. Um novo magistrado, inclusive, ainda precisa ser nomeado para o lugar de Barbosa.
O procurador do Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo Marlon Weichert observa que mesmo os que já votaram podem mudar de posição, pois o que vai ser analisado agora não é apenas a interpretação da Lei da Anistia, mas se o Brasil deve ou não seguir a decisão de uma corte internacional da qual é membro.
"É um momento superimportante para o futuro dos direitos humanos no país. Uma decisão contrária à Corte Interamericana significaria dizer que o Brasil não leva a sério a Convenção Americana. Seria um retrocesso enorme", ressaltou Weichert, que é um procuradores mais ativos na defesa dos direitos das vítimas do regime militar.
SoberaniaHá argumentos jurídicos para os dois lados. O jurista Ives Gandra destaca que a adesão do Brasil à Convenção Americana ocorreu anos depois do fim do regime militar. Dessa forma, argumenta que lei não pode ser retroativa a crimes que ocorreram antes. Além disso, ele afirma que as decisões do Supremo estão acima de convenções internacionais.
"Nenhuma corte internacional pode prevalecer sobre o STF. É uma questão de soberania", disse.
A procuradora especialista em direitos humanos Flavia Piovesan, que já chegou a ser cotada para assumir uma vaga no Supremo, considera esse argumento "ultrapassado". Ela diz que a Corte Interamericana tem a competência de avaliar em que medida o país está ou não cumprindo os parâmetros internacionais.
"O Brasil, por ato de soberania, reconheceu a jurisdição da corte. Seria um ato ilícito (não respeitar a decisão). E, mais do que isso, o Brasil, como global player, não pode atuar como um párea no âmbito internacional".
O desembargador aposentado Geraldo Prato, por sua vez, considera que julgar criminosos da ditadura hoje seria "se igualar aos militares".
Jurista com visão garantista, ou seja, que dá especial atenção aos direitos dos acusados de ter um julgamento justo, ele considera um risco criar "exceções no regime jurídico" para punir essas pessoas. Segundo ele, a Constituição prevê a possibilidade de prescrição e de anistia porque "a pessoa que cometeu o crime quarenta anos antes não é a mesma que será punida quarenta anos depois".
Prado considera incoerente a decisão da Corte Interamericana. Segundo ele, é princípio básico dos direitos humanos que, na hipótese de haver duas interpretações jurídicas, a mais favorável ao acusado deve prevalecer.
"Não significa de forma alguma ser conivente com a ditadura militar, mas a gente vive hoje um Estado de Direito. Eu não posso aceitar exceções para reprovar um regime de exceção. Eu vou estar em alguma medida me equiparando a essas pessoas", disse ele.
Ele cita ainda a crítica que a filósofa Hannah Arendt fez ao julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel em 1961.
"O processo não é um verdadeiro processo se desde o seu início um dos dois resultados, ou a absolvição ou a condenação, não é possível. Eu vejo que nesse tipo de processo (contra criminosos do regime militar) você não consegue oferecer reais garantias (de defesa) aos acusados"
Todos os juristas ouvidos pela BBC Brasil foram unânimes: nada deve acontecer se o Brasil desrespeitar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na teoria, a Organização dos Estados Americanos (OEA) poderia aplicar sanções contra o Brasil, mas politicamente isso é altamente improvável. Até hoje nenhum país foi punido por desrespeitar uma decisão da corte.
Sem prazo
Não há prazo para que o Supremo julgue as ações ou recursos de casos específicos, como o referente ao assassinato do deputado cassado Rubens Paiva em 1971. Nesse caso, o Ministério Público Federal argumenta que, como o corpo nunca apareceu, o crime é permanente e não pode ser anistiado. A Constituição Federal prevê que o tempo de prescrição só começa a ser contado quando os restos mortais são localizados.
A expectativa do presidente da OAB, Marcus Vinicius Coelho, é que "a divulgação do relatório da Comissão da Verdade provoque uma reflexão na sociedade e sensibilize o STF a julgar o tema".
O presidente da Comissão da Verdade do Rio, Wadih Damous, também torce para que a população pressione por isso: "O principal obstáculo à punição dos torturadores é a falta de mobilização social. Nos países vizinhos houve mobilização e punição".