Como a luta para salvar botos revelou cadeia de contaminação e doenças na Amazônia

Biólogo colombiano Fernando Trujillo narra impacto do uso da carne de botos-cor-de-roda como isca para peixes contaminados por mercúrio no rio Amazonas.

28 dez 2017 - 14h44
(atualizado em 29/12/2017 às 11h16)
Pesquisador narra impacto do uso da carne de botos como isca para peixes contaminados por mercúrio no rio Amazonas | Foto: Fundacao Omacha
Pesquisador narra impacto do uso da carne de botos como isca para peixes contaminados por mercúrio no rio Amazonas | Foto: Fundacao Omacha
Foto: BBC News Brasil

O que tem a ver a luta pelos botos-cor-de-rosa do rio Amazonas com vendedores de peixes em cidades a centenas de quilômetros, ou com crianças que sofrem por tremores e dores de cabeça agudas?

A resposta é: muito. Na vasta Amazônia (que vai além do Brasil e inclui Peru, Colômbia, Bolívia, Equador, Suriname, Venezuela, Guiana e Guiana Francesa), a luta pela conservação pode abrir uma verdadeira "caixa de Pandora", segundo o biólogo colombiano Fernando Trujillo, uma das principais autoridades do mundo em botos-cor-de-rosa.

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Diretor científico da Fundação Omacha, Trujillo falou recentemente sobre seu trabalho na Royal Geographic Society, a Sociedade Real Geográfica de Londres, e mostrou como o uso de carne de botos como iscas traz luz à complexa realidade da região amazônica - uma área de 7 milhões de quilômetros quadrados e cerca de 34 milhões de habitantes - dos quais apenas 3,5 milhões são indígenas.

Além de terem gerado um documentário premiado, prestes a ser exibido pela Netflix, as pesquisas do cientista contribuíram para que o governo colombiano proibisse, neste ano, o consumo de um tipo de peixe contaminado por mercúrio da região.

Mas qual é a conexão entre o peixe e os botos?

'Deuses da água'

Fernando Trujillo estudou Biologia Marinha e chegou à Amazônia em busca de botos por conselho do explorador francês Jacques Cousteau.

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"Os golfinhos me interessavam muito. Nesta época, meus professores na Colômbia me diziam que no país não havia botos ou golfinhos e que eu deveria buscá-los nos Estados Unidos", relatou o biólogo à BBC Mundo (o serviço de notícias em espanhol da BBC).

"Mas tive a sorte de conhecer o comandante Cousteau quando ele fez uma conferência na Colômbia na década de 1980. Ele me disse que não havia ninguém no país estudando os botos do Amazonas e perguntou: 'Por que você não vai?".

Principal ameaça contra golfinhos, segundo o especialista, é a pesca comercial | Foto: Fundacao Omacha
Foto: BBC News Brasil

Trujillo acabou se mudando definitivamente para o pequeno povoado amazônico de Puerto Nariño. "Quase não tinha dinheiro, mas os indígenas me davam comida, emprestavam embarcações e começaram a me chamar de Omacha".

Trujillo deu esse nome à fundação que criou na Amazônia colombiana, como uma metáfora para o que significa "colocar-se no lugar de outra espécie".

Para os indígenas, os botos são animais sagrados. A grande ameaça à esta espécie, segundo o especialista, vem da pesca comercial.

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Peixe carniceiro

Pesquisador identificou conexão entre a conservação do Amazonas e a exploração ilegal de ouro na região | Foto: Fundacao Omacha
Foto: BBC News Brasil

"Quando os grandes bagres começaram a ficar escassos na Amazônia, começamos a notar no Brasil a pesca de um peixe carniceiro chamado piracatinga (Calophysus macropterus, também conhecido como douradinha, no Brasil, e mota, na Colômbia). Ninguém pescava a piracatinga na Colômbia, porque todo mundo sabe que ele come animais mortos - inclusive cadáveres humanos."

O pesquisador continua: "Até o ano 2000, havia um peixe muito consumido na Colômbia que se chamava 'el capaz'. Era um peixe do rio Magdalena. Mas quando este peixe começou a sumir, os comerciantes começaram a vender a piracacinga fingindo que era o 'el capaz'."

Assim começou a pesca maciça do peixe carniceiro - e a matança de botos cor de rosa, cuja carne e gordura se transformaram em iscas.

"Com apenas um boto morto usado como isca, os pescadores conseguiam pescar 250 quilos de picaratinga, o que gerou críticas em vários países", diz Trujillo.

No Brasil, estima-se que a pesca comercial mate 1,5 mil botos a cada ano.

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Pesca da piracatinga, um peixe que se alimenta de carniça, impacta população de botos cor de rosa | Foto: Fundacao Omacha
Foto: BBC News Brasil

Proibições

Um vídeo da matança gravado em 2014 gerou tal comoção que o governo brasileiro proibiu a pesca do peixe carniceiro por cinco anos.

Como efeito colateral deste controle no Brasil, a caça a botos se intensificou em países como Peru, Bolívia e Colômbia.

"Por toda a minha vida eu trabalhei com botos. Mas então me dei conta: agora o tema não são mais os golfinhos, e sim a pescaria", explica o pesquisador.

Trujillo começou então a investigar o consumo da piracatinga, suspeitando que, pelo fato de se tratar de um peixe carniceiro, seu organismo poderia ter altos índices de mercúrio.

"Começamos a colher amostras com Fundo Mundial para a Natureza, da ONG WWF", conta.

Após estudos oficiais, o governo colombiano condenou em 2015 o consumo do peixe e, em setembro de 2017, proibiu permanentemente sua captura e comercialização.

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Trujillo disse à BBC Mundo que ainda é muito cedo para se analisar o impacto da proibição sobre a população de botos. Mas, segundo ele, ficou clara a conexão entre a conservação do Amazonas e a exploração ilegal de ouro, de onde provém o mercúrio.

Com um boto morto usado como isca, pescadores conseguem pescar 250 quilos de picaratinga | Foto: Fundacao Omacha
Foto: BBC News Brasil

O Mercúrio e o ouro

"Para um quilo de ouro é necessário 1,32 quilo de mercúrio. Muitas vezes, entretanto, usa-se até 10 quilos de mercúrio para isolar 1 quilo de ouro. O desperdício de mercúrio é enorme."

Quando os peixes carniceiros comem outros peixes contaminados, o mercúrio vai se acumulando, já que seu organismo não é capaz de eliminá-lo.

"O mercúrio ataca o sistema nervoso central, fígado, rins, causa temores e dores de cabeça agudas", diz Trujillo.

"Além disso, o mercúrio é uma substância que em altas concentrações pode ser teratogênica, ou seja, pode ocasionar malformações congênitas", diz.

"Houve uma época no Brasil em que começaram a confundir estes sintomas com ataques graves de malária", conta.

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A Fundação de Trujillo e vários institutos e governos pesquisam alternativas econômicas para a Amazônia como o turismo, os cultivos de cacau orgânico e aquicultura - a criação de espécies nativas em fazendas aquáticas. A ideia é evitar assim o garimpo ilegal que usa grandes quantidades de mercúrio, assim como a pesca predatória.

Documentario sobre a luta pelo boto cor de rosa abriu o festival de Tribeca, em Nova York | Foto: Fundación Omacha
Foto: BBC News Brasil

Ameaças

Um documentario sobre este trabalho e a luta pelo boto-cor-de rosa abriu o festival de Tribeca, em Nova York, e em breve estará disponivel na Netflix.

"Há algumas décadas, se tivessem me falado de aquicultura no Amazonas eu teria dado risada", afirma. "Hoje é uma necessidade."

Nos últimos 20 anos, houve um crescimento exponencial na população na Amazônia, graças à exploração de petróleo, à mineração, aos grandes cultivos de soja, ranchos de gado e às hidrelétricas, com a expansão de bairros nos arredores de estradas.

"Há um aspecto socioeconômico neste caso. Já existem 34 milhões de seres humanos vivendo na amazônia, dos quais apenas 3,5 milhões são indígenas."

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Trujillo sofreu ameaças após a proibição da pesca da piracatinga na Colômbia e chegou a usar um colete a prova de balas e proteção especial para voltar à região onde trabalhou por décadas.

Diretor científico da Fundação Omacha, Trujillo falou recentemente sobre seu trabalho na Royal Geographic Society, a Sociedade Real Geográfica de Londres | Foto: Fundación Omacha
Foto: BBC News Brasil

"Foi um momento muito triste. Mais que medo, foi triste, porque eu trabalhei 30 anos de minha vida para ajudar as pessoas no Amazonas e nunca pensei que este tipo de estudos abriria uma caixa de Pandora que me renderia ameaças" , lamenta.

"Estou comprometido a buscar alternativas econômicas para a região. Não estou interessado em acabar com a economia da área, mas sim fortalecê-la e torná-la sustentável."

A luta de Trujillo para proteger os botos deixou um grande ensinamento.

"Os cientistas ensinam que temos que estudar uma espécie e publicar artigos científicos, mas me dei conta que nossos políticos não leem artigos científicos."

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Foto: Fundación Omacha
Foto: BBC News Brasil

Segundo o pesquisador, a principal lição foi perceber que "além da perspectiva científica, é preciso abordar temáticas políticas e socioeconômicas" nos estudos.

"Estamos em um mundo complexo, e não podemos simplificar as coisas a partir do nosso próprio interesse", diz. "É preciso trabalhar com economistas, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, comunicadores, criando redes de trabalho para a busca de soluções para a Amazônia."

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