Como Milei virou 'pedra no sapato' de Lula no G20?

Em um aprofundamento de uma política externa mais radical para a Argentina, o governo de Milei se opôs a bandeiras defendidas pelo Brasil no G20, como a taxação de super-ricos e o empoderamento feminino

16 nov 2024 - 15h08
(atualizado às 15h13)
Javier Milei, presidente da Argentina
Javier Milei, presidente da Argentina
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Trancados em uma enorme sala de reunião de um hotel à beira da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, diplomatas dos países que formam o G20 aos poucos foram percebendo o que, de alguma forma, já se temia havia alguns dias.

Ao longo das reuniões para negociar o texto do comunicado final, a chancelaria da Argentina indicou que não apoiava uma menção à taxação de super-ricos, uma das principais bandeiras da presidência brasileira do G20.

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O G20 é o grupo das 19 maiores economias do mundo, além da União Europeia e União Africana. Neste ano, o grupo vem sendo presidido pelo Brasil e a cúpula acontecerá no Rio de Janeiro na segunda (18/11) e terça-feira (19/11).

Em diplomacia, discordâncias durante negociações envolvendo tantos países são vistas como normais.

Não à toa, os "sherpas", termo usado para designar os negociadores de cada país, estão se reunindo há nada menos que cinco dias em um hotel no Rio de Janeiro, para tentar finalizar uma versão preliminar do comunicado final do G20.

Mas a oposição argentina à taxação de super-ricos foi apenas o episódio mais recente de uma série de discordâncias do país vizinho em relação a temas considerados importantes pela diplomacia brasileira.

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A postura da Argentina vem sendo cada vez mais interpretada por diplomatas brasileiros e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil como um aprofundamento de uma política externa mais radical que pode se tornar uma espécie de "pedra no sapato" para o Brasil não apenas no G20, mas para além dele.

Discordâncias em série

Antes de a Argentina anunciar sua oposição à taxação de super-ricos, o governo argentino já havia dado outras demonstrações que inspiravam desconfiança entre os diplomatas brasileiros.

A primeira teria sido o envio de diplomatas com pouca experiência ou ascendência sobre o governo Milei para as negociações ocorridas durante a presidência brasileira do G20. Apesar de a cúpula de líderes ocorrer apenas na semana que vem, o grupo teve dezenas de reuniões ao longo de todo o ano.

O envio de delegações pouco experientes foi interpretado como uma demonstração de pouca deferência dos argentinos pelo G20.

A segunda aconteceu em outubro, quando o país foi o único a não assinar uma declaração ministerial em favor da igualdade de gênero e empoderamento da mulher.

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A medida chamou atenção de diplomatas porque os termos usados no texto foram aceitos inclusive por países que, tradicionalmente, se oporiam ao tema como a Arábia Saudita e China.

A decisão argentina foi criticada até pela primeira-dama do Brasil, Rosângela da Silva, durante um evento nesta semana no Rio de Janeiro.

"A voz das mulheres precisa ser ouvida, e o GT [Grupo de Trabalho] de Empoderamento saiu com uma resolução muito forte, muito potente. Infelizmente tivemos um país, que foi a Argentina, que por questões, enfim... não assinou a resolução porque tinha lá, no começo da resolução, igualdade de gênero" afirmou.

A terceira aconteceu na semana passada, quando o governo argentino anunciou que o país se retiraria das negociações em curso na Convenção da Organização das Nações Unidas para o Clima no Azerbaijão, a COP29.

O movimento, que não tinha precedente na história recente da diplomacia argentina, apontou para um maior isolamento do país em uma área vista como prioritária para a política externa brasileira: mudanças climáticas.

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Em comum, tanto a mudança climática quanto a agenda de empoderamento feminino são vistos por lideranças de direita como agendas de uma suposta esquerda global à qual políticos como Milei e o ex-presidente Bolsonaro se colocam contra.

A oposição do governo Milei à taxação dos super-ricos durante a negociação os "sherpas" no Rio de Janeiro chamou ainda mais atenção porque os ministros das áreas de finanças dos países do grupo já haviam aprovado, em julho deste ano, uma declaração mencionando a taxação dos chamados "ultrarricos".

Tudo isso se soma ao fato de que, segundo uma fonte do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Milei não pediu uma visita bilateral com Lula por ocasião de sua vinda ao Brasil para o G20. Será a segunda vez que o argentino virá ao Brasil e não se encontrará de forma bilateral com o petista.

No Brasil, a Cúpula de Líderes do G20 está agendada para os dias 18 e 19 de novembro de 2024, no Rio de Janeiro, com a presença das lideranças dos 19 países membros, mais a União Africana e a União Europeia
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Efeito Trump?

Mas o que estaria por trás da postura do governo Milei?

Um diplomata brasileiro ouvido em caráter reservado disse à BBC News Brasil que o comportamento do governo argentino não chegou a surpreender o governo brasileiro e que é visto como uma espécie de "modus operandi" de Milei para tentar atrair para si as atenções durante o evento.

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Ele disse, no entanto, que ainda seria cedo para decretar um bloqueio completo da Argentina sobre os dois temas (empoderamento feminino e taxação de super-ricos) uma vez que o texto final da cúpula só será divulgado na semana que vem, após as primeiras reuniões entre os chefes de Estado.

Isso significa que ainda há margem para novas negociações e mudanças e posicionamento entre os países.

Na avaliação de Leandro Morgenfeld, historiador e professor da Universidade de Buenos Aires, o possível boicote ao documento de consenso no G20 está relacionado com a postura de Milei de atacar as instituições multilaterais.

"Ele alinha-se de forma exagerada ao [futuro] governo Trump, que tem essa mesma posição de boicote a qualquer espaço multilateral. Em primeiro lugar, isso está em linha com as votações recentes do governo Milei na ONU, rompendo com a tradição argentina".

Para o pesquisador e professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo, Matheus Pereira, o comportamento do governo argentino tem duas intenções.

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A primeira, segundo ele, é "enquadrar" o corpo diplomático do país para pressioná-lo a adotar, sem contestações, a nova orientação da política externa do país.

No final de outubro, Milei trocou o comando do Ministério das Relações Exteriores e Culto do país, responsável pelas relações internacionais do país. Saiu Diana Mondino, vista como um nome moderado no governo, e entrou o empresário Gerardo Werthein, que atuava como embaixador do país nos Estados Unidos.

A medida foi tomada após o país votar a favor de uma resolução defendendo o fim do embargo econômico imposto a Cuba.

Milei, que se autoproclama um anarcocapitalista, faz pesadas críticas a regimes de esquerda como o cubano. Em entrevista no início de novembro, Milei disse que seu governo está investigando o caso e que pretende demitir os diplomatas envolvidos no episódio.

O professor diz ainda que o outro objetivo de Milei é ampliar a visibilidade sobre si mesmo.

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"Isso faz parte de uma estratégia dupla: enquadrar a burocracia diplomática argentina, que o presidente e seus colaboradores consideram resistente à linha adotada pelo governo, e ganhar capital político", afirma Pereira.

"Milei tem se esforçado para se afirmar como uma liderança internacional da extrema-direita, e adotar essas posições de grande repercussão, mas de custos políticos relativamente baixos, acaba sendo vantajoso", completa.

Para o professor, a recente eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos também pode ter influenciado o comportamento do governo argentino.

Isto porque tanto Trump quanto Milei se apresentam como lideranças da direita internacional e que lutariam contra uma suposta aliança da esquerda global.

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Morgenfeld, da Universidade de Buenos Aires, concorda que Milei tenta se projetar como um líder global "contra as agendas progressistas, que ele rotula como 'comunismo internacional'".

"Ao mesmo tempo, ele parece estar alinhando sua política externa ao possível futuro governo de Donald Trump, antecipando e reforçando as iniciativas de extrema-direita que visam enfraquecer as instituições multilaterais ", complementa Morgenfeld.

O professor argentino avalia que, após a vitória de Trump, Milei se sentiu fortalecido e tem adotado posturas ultraconservadoras, isolando a Argentina no cenário internacional.

Milei diz agora querer formar uma coalizão de países de extrema-direita enquanto desfaz consensos diplomáticos históricos do país, incluindo a defesa de direitos humanos e a autodeterminação.

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Morgenfeld ainda aponta que sua estratégia envolve dinamitar a integração regional, atacando líderes como Lula e Gustavo Petro, presidente da Colômbia, além de propor acordos bilaterais com os Estados Unidos que podem romper o Mercosul.

"Se Milei conseguir consolidar essas políticas, será uma tragédia não apenas para a Argentina, mas para toda a América Latina. Por isso, as organizações sociais e políticas que resistem aos ataques de seu governo têm clareza de que é essencial impedir o avanço desse processo de destruição."

Javier Milei no evento 'America First Policy Institute Gala+' realizado em Mar-a-Lago, Flórida, EUA em 14 de novembro
Foto: REUTERS/Carlos Barria / BBC News Brasil

O professor Matheus Pereira, da FAAP, ressalta ainda que a postura de Milei "cria um problema ou distração em um dos últimos compromissos internacionais importantes de Biden".

Nesta semana, Milei se encontrou pessoalmente com Donald Trump nos Estados Unidos, durante um evento na quinta-feira (14/11). O argentino foi o primeiro líder internacional a se encontrar com presidente eleito dos Estados Unidos após a eleição.

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Consequências limitadas

Dois diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que os impactos que a postura argentina pode ter sobre o G20 é limitado.

Um deles apontou o fato de que a Argentina não teria o mesmo peso político que gigantes como os Estados Unidos, China e União Europeia, que também participarão da cúpula.

Nos bastidores, a diplomacia brasileira procura soluções para contornar um eventual veto da Argentina às menções como igualdade de gênero e a tributação de super-ricos no texto da declaração final que está sendo negociado pelos países.

Uma alternativa é incluir uma espécie de "nota" apontando a discordância explícita da Argentina aos temas sobre os quais ela se opuser.

A posição é semelhante à do professor Matheus Pereira.

"Eu acho que a postura do país cria um inconveniente, mas isso não vai parar os trabalhos. No final das contas, os argentinos é que vão arcar com o ônus do isolamento", afirma.

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Relações tensas

O clima das relações entre os atuais governos de Argentina e Brasil não é considerado amistoso.

Nas eleições de 2023, na Argentina, Lula indicou apoio à candidatura do então ministro da Fazenda, Sergio Massa, aliado do ex-presidente Alberto Fernández.

Ainda durante a campanha, Milei se aproximou do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) e proferiu ataques contra Lula chamando-o de "comunista" e fazendo alusões ao fato de o petista ter sido preso pela Operação Lava Jato.

Logo após sua vitória, os dois governos tentaram manter as relações protocolares, mas o evidente descompasso entre Lula, de centro-esquerda, e Milei, de direita, criou um cenário de relacionamento considerado por diplomatas como "frio".

Em junho deste ano, durante entrevista, Lula disse que o argentino deve um pedido de "desculpas" ao Brasil e que ele falaria "muita besteira".

Em julho, Milei veio ao Brasil, mas não se encontrou com Lula. Ele participou de um evento político de direita ao lado de Jair Bolsonaro, em Balneário Camboriú (SC).

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Pouco depois, o Brasil atendeu a um pedido da Argentina para assumir a gestão da sua embaixada em Caracas, depois que o governo da Venezuela expulsou diplomatas argentinos do país.

Apesar disso, as relações entre os dois países parecem longe do período em que ambos conseguiram avanços que levaram à criação do Mercosul, no início dos anos 1990, ou mesmo da parceria política que havia entre Lula e Fernández e entre o petista e o ex-presidente Néstor Kirchner.

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