Situado na orla do Guaíba, em Porto Alegre, o Anfiteatro Pôr do Sol estava tomado por milhares de pessoas com bandeiras e faixas em júbilo na tarde de 24 de janeiro de 2003. Pelo terceiro ano consecutivo, a capital do Rio Grande do Sul abrigava o Fórum Social Mundial, encontro global da esquerda antineoliberal, e se tornara sinônimo do refrão "Um outro mundo é possível".
No palco naquele entardecer, estava um dos responsáveis pela visibilidade planetária do fórum. Empossado na Presidência do Brasil havia 23 dias, Luiz Inácio Lula da Silva começou em tom azedo o discurso mais aguardado do encontro, o primeiro que proferia como presidente perante o evento.
"Será que seria pedir demais para que os nossos companheiros enrolassem as suas bandeiras para que a gente possa ver as pessoas de trás e as de trás possam ver a gente?"
Disciplinadamente, centenas de bandeiras foram recolhidas. Aquela plateia não se atreveria a negar um pedido do presidente. Como o próprio Lula se acostumara a afirmar desde o segundo turno da eleição presidencial de 1989, se dependesse do Rio Grande do Sul - e, especialmente, de Porto Alegre -, ele teria chegado ao Palácio do Planalto mais de uma década antes.
Fora o candidato mais votado nas eleições presidenciais no Estado em todos os pleitos presidenciais havia 13 anos. Mais do que isso, o PT completaria no ano seguinte 16 anos à frente da Prefeitura de Porto Alegre e de dezenas de cidades no Estado, além de governar o Rio Grande do Sul desde 1999.
"Embora estejamos a tantos mil quilômetros de Davos (cidade suíça que abriga o Fórum Econômico Mundial, ao qual o evento no Brasil pretendia servir de alternativa), a verdade é que, depois do Fórum de Porto Alegre, Davos já não tem a força que tinha", afirmou Lula ao final do pronunciamento na tarde tórrida de verão.
O julgamento da apelação de Lula contra a sentença condenatória do juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, no processo envolvendo o tríplex do Guarujá ocorrerá em outro 24 de janeiro, na mesma Porto Alegre, exatos 15 anos depois de seu primeiro discurso como presidente no Fórum Social Mundial.
Afastados no tempo, os dois episódios ocorrem a uma distância de poucos quilômetros, na mesma orla do Guaíba: do Pôr do Sol, chega-se à sede do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) seguindo na direção norte pela avenida Edvaldo Pereira Paiva, popularmente conhecida como Beira-Rio (mais ao sul, desponta o vulto branco do estádio homônimo do Internacional).
Para Lula, porém, as semelhanças entre 2003 e 2018 terminam aí. De bastião do PT, Porto Alegre tornou-se, por uma pirueta da história, um ambiente pouco simpático ao esquerdista onde será decidido o futuro político e jurídico do líder símbolo do partido.
Distanciamento
O distanciamento da capital gaúcha em relação a Lula não é um reflexo do desgaste resultante da operação Lava Jato. Desde 2004, a cidade não elege um prefeito do PT.
Há dois anos, o partido apostava na possibilidade de levar seu candidato ao segundo turno. O ex-prefeito Raul Pont amargou um modesto terceiro lugar, com 16,37% dos votos válidos. No governo do Estado, a última experiência do partido foi a gestão do ex-ministro da Justiça Tarso Genro, de 2011 a 2014, que não conseguiu se reeleger.
Para o presidente da Assembleia Legislativa, Edegar Pretto, petista a ocupar a posição institucional de maior destaque no Rio Grande do Sul na atualidade, a Porto Alegre das administrações do partido e do Fórum Social era a dos "bons tempos".
"Lembro dos tempos das campanhas da Frente Popular (coligação encabeçada pelo PT). Os prédios ficavam vermelhos de bandeiras", diz.
Agora, a maior parte dos manifestantes solidários a Lula deve vir do interior do Estado, com os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) à frente, e de outros Estados.
A concentração de petistas na cidade levou o prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) a solicitar ao governo federal a ajuda da Força Nacional a fim de manter a ordem durante o julgamento de Lula. Prefeito em exercício, Gustavo Paim (PP), que substituiu Marchezan até o último domingo, defendeu a atitude do titular: "Alguns têm falado em manifestações com lemas como 'Invasão a Porto Alegre'. Não se pode admitir que um julgamento seja influenciado por forças externas".
O gesto do prefeito causou constrangimento ao governo do Estado, encabeçado por José Ivo Sartori (PMDB), que responde formalmente pela segurança pública. A demanda acabou publicamente rechaçada pelo governo federal e a Secretaria de Segurança Pública do Estado reafirmou ser capaz de controlar a situação.
A despeito de afirmações como as da presidente do PT Gleisi Hoffmann, que disse na última semana que para prender Lula seria preciso "matar gente", a militância e as lideranças de esquerda têm repetido que será um ato pacífico.
Raízes históricas
"Ironia da história" é a expressão utilizada por Pedro Cezar Dutra Fonseca, professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para definir o fato de Lula viver seu calvário político em um dos antigos bastiões do PT.
Para o pesquisador, o perfil supostamente mais à esquerda da capital gaúcha tem raízes históricas.
"O Rio Grande é o berço do trabalhismo de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola. Sempre teve uma economia voltada para o mercado interno, diferentemente de outros Estados que se baseiam no setor exportador. Isso propiciou o surgimento de um empresariado preocupado com questões como distribuição de renda", diz.
O PT, na visão de Fonseca, teria herdado uma parte do patrimônio político do velho trabalhismo na Grande Porto Alegre, especialmente a partir do final dos anos 1980. Ele identifica um fio de continuidade entre o castilhismo, corrente republicana liderada por Julio de Castilhos e Borges de Medeiros, que governou o Estado por cerca de 40 anos, o varguismo (Getúlio Vargas iniciou-se na política como líder jovem do grupo castilhista) e o petismo.
E não se trataria apenas da herança de Lula. O pós-Lula, escolhido pelo petista, também tem estreita relação com a capital gaúcha.
Em um apartamento de cobertura no bairro Tristeza, zona sul, distante cerca de 10 quilômetros da sede do TRF-4, vive hoje a ex-presidente Dilma Rousseff. Eleita por dois mandatos com apoio de Lula e tendo perdido o cargo em 2016, Dilma circula com discrição em Porto Alegre e acompanha timidamente os preparativos para o julgamento, o que afirmou, ao jornal Zero Hora, ser a "continuação do golpe que começou com o impeachment".
Ex-integrante do PT, Marcos Rolim, mestre e doutor em sociologia, sustenta que o chamado "modo petista de governar" trouxe avanços em seu início, mas acabou minado pelas disputas entre correntes por espaços na máquina pública: "A qualidade da gestão é, então, reduzida, e as velhas fórmulas se esgotaram".
Segundo Rolim, o processo de desencanto com o PT atinge em cheio as camadas médias com o escândalo do mensalão, já no governo Lula, em 2006. Nesse momento, acrescenta, o partido "se 'descola' da sociedade, junto com o sistema político tradicional, e passa a fazer parte do problema, em vez de integrar a solução".
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