Mariana* vem andando pelo corredor com um sorriso tímido e uma camiseta com dizeres bíblicos em cor verde neon. Aparenta ter muito mais de 36 anos. O crack redesenhou sua pele, seus dentes e marcou sua expressão. A pedido do presidente de honra da comunidade terapêutica - um dependente químico que diz estar limpo há cinco anos graças a sua passagem pela casa - ela saiu da reunião com as senhoras voluntárias da igreja carismática para vir me contar sua história de recuperação. As senhoras celebram minha chegada: “Hoje é dia de Santa Edwiges, foi ela que te mandou aqui conhecer esse trabalho maravilhoso”, diz uma delas.
Vamos para outra sala e Mariana começa a contar sua história. É dependente química há 18 anos e foi usuária de crack por cinco anos. É mãe de três filhos, um deles diagnosticado como autista. Mora com os irmãos e com a mãe, que é quem agora tem a guarda das crianças. Conheceu aquela comunidade terapêutica - no caso a Servos, em Ceilândia (DF), mas todas que visitei são muito parecidas - através de um parente e, a pedido da família, resolveu se internar. “Nunca fiquei tanto tempo longe dos meus filhos” diz, emocionada. “Foi uma decisão muito difícil vir para cá. Eu não conhecia ninguém, não sabia o que iria encontrar. Acontecem muitas brigas porque cada uma é de um lugar, tem uma cultura, uma religião. Pensei muitas vezes em desistir de tudo mas hoje sou grata pelo que passei, graças a Deus eu consegui” diz, referindo-se ao processo de recuperação em meio ao convívio com as companheiras de internação. Há oito meses e algumas semanas internada na comunidade, ela voltaria para casa no dia seguinte. Mariana explica que não tomou remédios para ajudar na desintoxicação, “só mesmo para dor de cabeça, porque trabalhava na roça muito tempo debaixo do sol, para suar e esquecer a vontade, e aí doía a cabeça”.
“Aqui não tem luxo. Elas arrumam as camas, lavam suas roupas, cuidam da roça e, quando tem um trabalho mais pesado para fazer, como subir um muro, a gente chama os internos da unidade masculina. A gente trata os desvios de caráter com oração, disciplina e trabalho” diz Fernando de Oliveira Soares, diretor-presidente da instituição, que, em outubro, passou a receber R$ 1 mil mensais por interno da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) através do programa “Crack, é possível vencer” do governo federal.
Apesar de esperançosa e com muitos planos para a vida do lado de fora, é difícil prever se Mariana vai realmente conseguir viver longe do crack. Isso porque a dependência química é uma doença, como dizem os especialistas, “crônica, progressiva, incurável, mas tratável” e não existem até hoje no Brasil pesquisas confiáveis, estatísticas ou evidências científicas que comprovem a efetividade a longo prazo do tratamento realizado pelas comunidades terapêuticas como a Servos - em sua maioria entidades privadas religiosas, sem fins lucrativos, de internação voluntária que pode chegar a nove meses e que se baseiam em oração, trabalho e disciplina e nos 12 passos empregados pelos Alcoolicos Anônimos.
Ainda assim, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), através do programa “Crack, é possível vencer”, abriu um edital em novembro de 2012 para financiar comunidades terapêuticas e, até o fechamento desta reportagem (um segundo edital estava em andamento), havia 114 contratos fechados por todo o País. A título de comparação, a rede de Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS AD), que se tornou política pública de saúde oficial no começo dos anos 2000, dez anos depois possui apenas 305 postos em todo o território nacional.
Para especialista, terceirização é retrocesso
“Atualmente temos 2.679 vagas em funcionamento nas comunidades terapêuticas sendo custeadas por uma linha de financiamento exclusiva. São R$ 1 mil mensais por leito e devemos investir cerca de R$ 180 milhões”, explica o Secretário Nacional de Políticas Sobre Drogas, Vitore André Zilio Maxiano. O programa “Crack, é possível vencer” foi lançado em 2011 e visa um pacote de ações conjuntas entre os Ministérios da Justiça, Saúde e do Desenvolvimento Social e Combate a fome para “enfrentamento ao crack e outras drogas” ao custo de R$ 4 bilhões. Entre as medidas mais polêmicas, principalmente entre os profissionais da saúde mental, está o financiamento das comunidades terapêuticas, por retomar o modelo de internação para o tratamento - algo que a reforma psiquiátrica e a política antimanicomial iniciadas no fim dos anos 70 vinham lutando para derrubar pelo grave histórico de torturas e violações de direitos humanos.
No artigo “Política anti-crack: Epidemia do Desespero ou do mercado anti-droga?” publicado no site do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), o psiquiatra presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental e pesquisador da Fiocruz, Paulo Amarante, escreve que o financiamento às comunidades terapêuticas foi rejeitado por meio de moções, e que propostas alternativas foram apresentadas por cerca de 50 mil pessoas, tanto na IV Conferência Nacional de Saúde Mental quanto na recém realizada XIV Conferência Nacional de Saúde. Poucos dias após o encerramento da XIV Conferência, continua o pesquisador, o governo anunciou o plano de combate ao crack e o financiamento destas instituições: “A primeira vez que eu ouvi falar (das comunidades terapêuticas) foi em uma reunião particular que tive com Tim Lopes (jornalista assassinado pelo tráfico em 2002) que me mostrou fotos e vídeos surpreendentes destas tais ‘comunidades’ que ele estava pesquisando para matérias para a TV Globo. Cenas de violências e maus tratos, de extorsão de familiares, de inúmeros constrangimentos. Mais recentemente o tema tomou uma enorme dimensão, com o crescimento do uso de crack (crescimento ainda muito pouco pesquisado e comprovado). Tenho notado que o processo na mídia tem distorcido a questão - para mais ou para menos -, de acordo com interesses de mercado jornalístico ou outros mercados afins”, escreveu.
Para Amarante, a Reforma Psiquiátrica brasileira, principalmente pela criação dos CAPS, é bem vista internacionalmente por respeitar a autonomia e os direitos dos dependentes - dispensando internação - e pelas iniciativas de Redução de Danos. “Os modelos calcados na internação respondem ao imediatismo do desespero da sociedade, mas, após a alta, mais de 90% retornam às drogas” conclui o psiquiatra.
O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo também lançou nota pública repudiando as ações do programa: “O Decreto nº 7.179, de maio de 2010, ao instituir o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras drogas, tenta suprir a deficiência de uma política de saúde integral. Após este decreto, o Ministério da Saúde, em conjunto com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), promove editais que destina, entre outros, apoio financeiro a projetos de utilização de leitos de acolhimento para usuários de crack e outras drogas em Comunidades Terapêuticas. Porém, o nome comunidades terapêuticas abarca toda e qualquer instituição que se proponha a ‘cuidar’ do usuário de álcool e outras drogas na forma jurídica que melhor lhe couber, nos princípios e diretrizes dos proprietários dessas formas jurídicas - ONGS, grupos de auto-ajuda, instituições religiosas. (…) Em um momento em que a Reforma Psiquiátrica Brasileira vem sendo atacada por setores econômicos estratégicos, assistimos ao investimento em 2.500 leitos em instituições que não fazem parte da Rede Substitutiva de Atenção à Saúde Mental do SUS em detrimento da ampliação do número de CAPS-AD e Leitos em Hospitais Gerais. O que se pode observar é que, em sua grande maioria, as comunidades terapêuticas não promovem ações que visam reconstruir os laços comunitários e a inserção social dos internos; não têm articulação com a rede SUS e SUAS do município; não promovem a construção de um Projeto Terapêutico Individualizado, com a participação do usuário e seu familiar, com alternativas de continuidade após a saída do estabelecimento” diz uma parte da nota.
Em entrevista ao jornal O Globo no começo deste ano, porém, o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, defendeu o investimento: “Não podemos fechar os olhos para as comunidades terapêuticas. Eu sei que há polêmicas, controvérsias com certos segmentos da sociedade, mas queremos criar condições para que essas entidades façam um trabalho melhor. Queremos que os serviços sejam prestados, o mais rápido possível. Quanto mais leitos, melhor”.
Amorex em vez de médico: a ferramenta de cura de Carimbão
“Se para a psiquiatria existe o Aldol e o Fernagan, para as comunidades acolhedoras existe o Amorex”, me disse o deputado federal Givaldo Carimbão (PROS-AL) em seu gabinete em Brasilia, orgulhoso das mudanças de rumo que está ajudando a trilhar na política de drogas no País.
Relator do substitutivo ao Projeto de Lei de Osmar Terra (PMDB-RS) 7663/2010, que tramita no Senado, sobre o Sistema Nacional de Política sobre Drogas, o ex-gráfico Carimbão (por isso o apelido) propõe não só o tratamento nas comunidades terapêuticas, mas internações involuntárias e penas mais duras para traficantes, como quer ver implantado no País o sistema que apadrinhou em Alagoas: a Secretaria de Promoção da Paz (Sepaz) - orgão especial do governo do Estado que atua através de uma Superintendência de Políticas Sobre Drogas com 40 comunidades terapêuticas e equipes chamadas de “anjos da paz”com a função de convencer dependentes químicos a se internar em uma das instituições. Carimbão, que diz ter ajudado a fundar 98% das comunidades no Estado, indicou diversos secretários da Sepaz, incluindo Jardel Aderico, que pediu exoneração do cargo em outubro após diversos motins, fugas de menores e uma série de denúncias de agressões na Unidade de Internação Masculina, destinada a assistir os menores infratores no Estado - também competência da secretaria.
“O problema do crack é um certo desvio de conduta do usuário. É um equívoco colocar a questão das drogas na saúde pública. É uma questão muito mais de violência do que de saúde”, teoriza o deputado e ex-gráfico. Mais do que tratar, precisamos acolher os dependentes, afastar eles do seu habitat. Na comunidade acolhedora, o médico fica de fora. Em Alagoas, o governador me deu a chance de quebrar esse tabu. Temos 42 comunidades e dois Caps AD” explicou, para disparar em seguida: “Caps AD é uma praga, e consultório de rua é um fracasso mental. Redução de danos é um modelo europeu. Eu viajei o mundo estudando isso e para cá não funciona” diz, taxativo.
O deputado contou também que deu terras para uma comunidade e emprestou uma fazenda para outra em Craíbas, também em Alagoas, onde construiu a Cidade de Maria, uma espécie de santuário católico aberto a visitação pública. Em Alagoas, o presidente de uma comunidade disse que Carimbão, em pessoa, roda as instituições nos finais de semana para garantir que está tudo “nos eixos”. “É minha vocação e meu compromisso político”, afirma o deputado.
Há cerca de dois anos, porém, a Sepaz distanciou-se um pouco do discurso de Carimbão e colocou o psicólogo Luan Gomes como superintendente. Segundo Gomes, montou-se então uma equipe multidisciplinar que foi a cada uma das 40 comunidades e implantou um projeto terapêutico em que todas são obrigadas pelo governo do Estado a ter ao menos um psicólogo e um assistente social e a se integrar à rede pública de saúde.
Segundo ele, hoje os dependentes químicos passam por uma triagem em um centro de atendimento feita por médicos, psicólogos e assistentes sociais e são encaminhados para comunidades que “combinem com seu perfil, dependendo da religião e orientação sexual, por exemplo”. Em 2012, segundo a assessoria de imprensa da secretaria, foram realizados mais de cinco mil atendimentos. Além da procura voluntária, conselhos tutelares, albergues e a polícia comunitária também encaminham pedidos de “convencimento” aos Anjos da Paz.
Luan diz que a Sepaz conta ainda com um callcenter, uma frota de carros para levar os dependentes às comunidades, leitos para desintoxicação em um hospital geral e um setor para colocação no mercado de trabalho depois do acolhimento. “Nosso modelo tem sido referência no País, muitos Estados já vieram conhecer a Sepaz para implantar algo parecido”, diz, embora reconheça não saber ainda quantas dessas pessoas voltaram ao uso do crack. “A secretaria ainda é muito nova, tem apenas quatro anos, ainda não conseguimos fazer essa pesquisa”, alega.
Mesmo com as mudanças para incluir os especialistas no projeto terapêutico, a comunidade terapêutica que visitei em Alagoas era de orientação católica, com um grande espaço para cultos, além de abrigar uma capela e vários missionários residentes.
Violações de direitos humanos em 68 comunidades terapêuticas visitadas
Em 2011, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) fez uma inspeção em 68 comunidades terapêuticas em todos os Estados do País e constatou violações de direitos humanos em todas elas. Na época, o programa “Crack, É Possível Vencer” estava em fase de lançamento e já se falava no financiamento às instituições, como explica o coordenador da Comissão de Direitos Humanos do CFP, Pedro Paulo Bicalho: “Nós resolvemos fazer esta inspeção por causa do grande volume de denúncias de maus tratos e violações de direitos que estavam chegando a nós através da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila). Nosso primeiro movimento foi o de fazer contato com a Senad para pedir informações sobre essas instituições e percebemos que eles não tinham essas informações, apesar da proposta de financiamento público. Por isso resolvemos conhecer essas instituições e dar visibilidade a essas denúncias.”
Ele conta que através de uma rede formada pelos conselhos regionais em parceria com o Ministério Público, defensorias e parceiros locais, equipes fizeram uma varredura pelas comunidades. “Infelizmente, o que era uma pergunta acabou se consolidando como resposta positiva em todas as instituições. Em algumas, as violações eram mais evidentes como punições e castigos. Em outras, mais sutis, como o trabalho forçado travestido de laborterapia ou o desrespeito às opções sexuais e identidade de gênero, que se dão através de dogmas religiosos que, na nossa opinião, não são compatíveis com um Estado laico de Direito.” Pedro explica que o relatório foi encaminhado a todos os ministérios, audiências públicas foram criadas, mas que, ainda assim, o financiamento foi consolidado. Em um cruzamento entre a primeira lista das instituições aprovadas pela Senad e o relatório do CFP sobre as irregularidades, é possível encontrar três nomes de entidades em comum.
“O plano nacional envolve três Ministérios: o da Educação, o da Saúde e o da Justiça. Nenhum conselho, de nenhum deles foi consultado ou ouvido neste processo. Não houve discussão com a sociedade civil e, portanto, não houve nenhuma participação social na construção dessa política. Nós não sabemos nem quais foram os critérios reais para a escolha dessas entidades e quem vai fiscalizar e monitorar”, detalha Pedro, acrescentando que, na sua opinião, foi uma opção política: “Nossa impressão é que existe uma pressão política das bancadas religiosas e que as próprias parcerias que foram firmadas para essa base do governo não permitem constrariar essas forças. Essa discussão aponta para uma dificuldade de produzir políticas públicas laicas onde temas como homossexualidade e aborto não encontram espaço de discussão. O que importa é tirar essas pessoas da rua, cumprir uma política higienista muito oportuna em um momento em que o País precisa se preparar para os grandes eventos. Essas pessoas na rua significam uma não assepsia”, diz.
O psiquiatra Dartiu Xavier, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad), concorda com o raciocínio de Pedro: “Nas cracolândias, já houve internações compulsórias através de medidas judiciais, e essa é uma lógica muito perversa porque se atribui a miséria social como consequência do uso da droga, e isso não é verdade. Ninguém chegou ali por ter usado droga. Chegaram por um tremendo descaso do Estado. São pessoas abandonadas, que não têm acesso à educação, saúde e moradia, e a situação de miséria favorece que ele se torne um dependente. Estes modelos ultrapassados de internação tiram das vistas, mas não resolvem o problema.”
Arroz com chuchu: as vítimas do não-tratamento
Lúcia* e Mauro* viveram essas violações em suas famílias. O irmão de Lúcia é dependente químico e epilético. Como passava longos períodos desaparecido e chegou a voltar para casa queimado e machucado por causa de brigas com moradores de rua com a polícia, ela e a mãe resolveram pedir ajuda a um vereador da cidade pequena em Santa Catarina para conseguir uma vaga em uma comunidade terapêutica. “Era o único tratamento que nós conheciamos e estávamos com medo de ele acabar morrendo na rua”, lembra Lúcia.
“Nós conseguimos a internação em uma comunidade religiosa, mas lá eles não permitiam o uso de medicamentos. Explicamos que ele precisava tomar os remédios para evitar as convulsões, mas não adiantou. Como não podia receber visitas durante três meses, ficamos sem notícias. Até que um mês depois da internação, nos ligaram do hospital dizendo que meu irmão estava em coma na UTI porque teve uma crise e demoraram para socorrer. Ele quase morreu”, lembra.
Como a cidade não possui CAPS AD, a mãe de Lúcia mandou o filho para outra comunidade terapêutica e insistiu para que deixassem que ele tomasse ao menos um remédio para controlar a epilepsia. “A pastora disse que liberaria apenas um dos muitos que ele toma. Não sabemos o que fazer. Não existe tratamento sem ser desse tipo na cidade, e se ele for para a rua de novo pode acabar morrendo”, lamenta Lúcia.
Mauro conta que o namorado é dependente químico e usuário de crack. Há alguns anos, um pastor conhecido da família ofereceu uma vaga na comunidade terapêutica de sua igreja. “Eles passavam o dia desmatando o sítio do pastor, construindo, fazendo horta. Trabalhavam de sol a sol, eram obrigados a frequentar os cultos e só comiam arroz com chuchu. Meu namorado, que é dependente químico mas não é burro, começou a dizer para os outros que aquilo era trabalho escravo, que não existia tratamento, até que o pastor deu um dinheiro para ele e mandou embora, porque estava causando problemas. Ele saiu da comunidade e entrou em uma boca que tinha ao lado. Gastou todo o dinheiro em pedras de crack”, conta.
Nem Lúcia nem Mauro sabiam da existência dos CAPS AD. “Os CAPS estão relegados a segundo plano”, diz Pedro Paulo Bicalho. “Nós temos no País, desde 2001, uma clara política pública de cuidados em saúde mental, mas que ainda não está consolidada. É preciso muito investimento, tem Estado que não tem um CAPS AD. Mas, ao invés de priorizar o crescimento desta rede, é criado um financiamento de atalho. Isso para nós é muito frustrante porque inclusive coloca em risco uma luta história antimanicomial que é reafirmada a cada conferência nacional.”
Um CAPS para 1 milhão de pessoas
Apesar da pouca divulgação, o CAPS AD Capela do Socorro, na região sul de São Paulo, deveria ser referência para 200 mil habitantes da região, mas por falta de outros centros, acaba servindo as regiões vizinhas e hoje é referência para quase 1 milhão. Cem pessoas são atendidas ali por dia e, a cada mês, são 170 novos acolhimentos. Roberta Maia Sessa Frederico, psicóloga que atua como técnica do Álcool e Drogas, explica que, seguindo a determinação de “portas abertas”, o centro atende qualquer pessoa, mesmo sem documentos, das sete da manhã as sete da noite, de segunda a sexta-feira, e que há planos para que o atendimento se torne 24 horas.
“Os CAPS foram pensados para um cuidado intenso porém em um modelo de inserção familiar, cultural, esportiva, sem tirar a pessoa de seu ambiente. Nós inclusive respeitamos as escolhas dos usuários. Muitos chegam aqui dizendo que querem tratamento, mas não querem parar de usar. Nós vamos trabalhando a redução de danos, oferecendo insumos como preservativos, piteiras, protetores labiais para evitar várias doenças transmissíveis com o compartilhamento de cachimbos por exemplo, as queimaduras da boca, doenças sexualmente transmissíveis, grupos de terapia. Quando a pessoa chega aqui, nós fazemos uma entrevista estruturada, inclusive para identificar se é realmente um dependente químico ou um usuário. Se for usuário, encaminhamos para o tratamento em uma unidade básica de saúde e, se for dependente, montamos um tratamento individual que inclui psicólogo, assistente social, psiquiatra, médico para cuidar de outros aspectos de saúde. Temos grupos de prevenção de recaída, atividades físicas, treinamento de habilidades, oficinas abertas, a gente monta esse plano junto com o paciente, conforme suas possibilidades.”
Roberta explica que, como a dependência química é uma doença crônica, incurável mas tratável, é preciso fazer com que o paciente se aproprie desse conceito para se cuidar da maneira que achar melhor, já que será para a vida toda. “Nós trabalhamos com a família também, isso é muito importante. Porque muitas vezes as famílias chegam aqui pedindo a internação porque não conhecem a doença, não sabem o que fazer. Nós temos também a possibilidade de encaminhar para uma residência terapêutica, que não é uma comunidade, é uma casa onde moram, durante um período de até seis meses, alguns dependentes, um psicólogo, uma enfermeira, e se revezam sete profissionais para reinserção social. Porque se a pessoa está em alta vulnerabilidade social, se está em situação de rua, se encontra o traficante à noite, fica difícil realmente parar de usar. Mas não é uma internação, ele continua a se tratar no CAPS e tem autonomia para sair a hora que quiser, é uma casa”, explica.
O CAPS conta também com um tratamento específico de desintoxicação assistida, principalmente para dependendes de álcool. “O alcoolista tem um processo de desintoxicação bem violento, que pode levar a morte. Então oferecemos um programa de desintoxicação assistida por 15 dias. É importante dizer que o grande volume de atendimentos aqui são de dependentes de álcool e que este sim é um grave problema de saúde pública. O tratamento ao usuário de crack é importante, mas ainda é uma população menor. É mais visível, chocante, deixa a cidade mais feia, mas os impactos do álcool não podem ser esquecidos. O alcoolista pode inclusive se tornar tão ou mais violento que o usuário de crack e essa violência muitas vezes é mais intensa e permanente, por ser socialmente aceitável.”
E existe “epidemia de crack”?
Para o médico Francisco Inácio Bastos, que atua na área de Epidemiologia do abuso de drogas e da Aids da Fiocruz e coordenou a pesquisa “Perfil do usuário de crack e/ou similares no Brasil” realizada em 2011 antes do lançamento do programa federal, não é certo dizer que vivemos no País uma “epidemia de crack”, como tem se colocado para justificar medidas extremas e urgentes, como as internações compulsórias e involuntárias, por exemplo - internação compulsória é aquela determinada pela Justiça, e involuntária pode ser pedida pela família apenas com determinação médica.
“O crack é uma droga muito estigmatizada e marginalizada, ao contrário do álcool. É costume usar o termo ‘epidemia’ para caracterizar um comportamento em massa, uma difusão social. Mas as séries temporais que a gente têm no Brasil sobre o uso de drogas estão na sexta edição e estavam sendo feitas com estudantes, nos domicílios. Nós sabemos que a maioria dos usuários de crack não está estudando e muitos estão em situação de rua. Então não temos essa comprovação efetiva do aumento de uso do crack. É claro que houve um aumento do uso entre pessoas não acessadas pelas pesquisas, mas é inapropriado usar o termo ‘epidemia’ nestes casos”, afirma o pesquisador da Fiocruz.
Para Dartiu, a iniciativa do programa federal é “louvável” porque o crack é realmente um desafio, mas também ele concorda que se fala em uma epidemia que nunca se comprovou. “O álcool, por exemplo, ainda é um problema muito mais grave, mas não é tão ‘feio’ quanto o crack. O problema é que, em nome disso, embora nós tenhamos um Ministério da Saúde com uma política de drogas bem avançada, vemos agora um discurso muito reacionário nascendo. Eu já trabalhei em comunidades terapêuticas muito boas, mas elas são a exceção da exceção. A maioria delas tem um aparelho insuficiente, não têm condições básicas para o tratamento da dependência química e frequentemente aceita pessoas que nem dependentes são, mas apenas usuários. Fora que muitas acabam misturando preceitos religiosos com tratamento, com uma visão que coloca a dependência como pecado e isso é, no mínimo, éticamente questionável.” E reflete: “Privilegiar esse tipo de tratamento vai contra todo o bom senso que a gente possa ter. Vai na contramão da política antimanicomial, e vários estudos que foram feitos fora do País que mostram que a eficácia dele é muito baixa. Privilegiar as comunidades terapêuticas e desviar uma forma de financiamento independente para isso me faz pensar que existem interesses políticos e midiáticos. Mas que não estão a serviço da saúde pública de forma nenhuma”, diz.