O novo coronavírus chegou ao Brasil afetando primeiro as capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, que concentram o maior número de casos no país e já decretaram estado de emergência e tiveram não só transmissão local como comunitária (entenda as classificações abaixo).
Mas, logo nos primeiros dias de transmissões no Brasil, uma outra cidade, que não é uma capital e não está no Sudeste, também ocupou os primeiros lugares em números de casos confirmados no país, registrou transmissão local e decretou estado de emergência.
Trata-se de Feira de Santana, cidade no interior da Bahia com cerca de 600 mil habitantes e a pouco mais de 100 km de Salvador. Hoje, ela tem cinco casos confirmados do novo coronavírus, de acordo com dados da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) até a tarde de quarta-feira, 18.
Três destes casos fazem parte de uma cadeia de transmissão local iniciada por uma mulher de 34 anos que retornou da Itália em fevereiro e só apresentou sintomas no Brasil. Uma empregada doméstica de 42 anos, que prestava serviços na casa desta mulher, foi contaminada. Em uma festa de aniversário, ela transmitiu então o coronavírus para sua mãe, de 68 anos, e o pai, de 73.
Há mais um caso confirmado na cidade, uma transmissão importada por uma mulher de 50 anos que retornou de viagem dos Estados Unidos — ainda em Nova York, ela contatou as autoridades municipais para avisar que chegaria à Bahia com sintomas, sendo então orientada sobre uso de máscara e outros procedimentos.
Nos casos importados, os pacientes se infectaram em viagens ao exterior. Na transmissão local, os pacientes se infectaram pelo contato próximo com casos suspeitos ou confirmados do novo coronavírus, e ainda é possível identificar a origem da infecção.
Já a transmissão comunitária ocorre quando há casos em que não é mais possível identificar a cadeia de infecção. Isso significa que o vírus está circulando livremente na população. A transmissão também é considerada comunitária quando é possível rastrear a origem, mas a partir dela já se identificaram outros cinco ou mais casos.
Até o momento, todos os pacientes de Feira de Santana estão bem e não precisaram de internação.
Mas a preocupação na cidade do interior da Bahia é que os casos não parem por aí e, mais ainda, evoluam para quadros piores — exigindo por exemplo a internação em Unidades de Terapia Intensiva (UTI).
Na rede pública disponível em Feira de Santana, são apenas 40 leitos do tipo, todos no Hospital Geral Clériston Andrade, da rede estadual.
Pelo menos até domingo, todos estes leitos de UTI já estavam ocupados com outras doenças e quadros não relacionados ao novo coronavírus, contou à BBC News Brasil o prefeito de Feira de Santana, Colbert Martins Filho (MDB), que também é médico.
O prefeito afirma que a cidade tem quatro hospitais privados, com também cerca de 40 leitos de UTI no total, mas é difícil contar com estes diante de custos para eventual aluguel e uma demanda crescente.
"Reconheço que a situação pode piorar, especialmente se casos mais complicados forem os predominantes. Os casos moderados podem até precisar de internação, mas para estes temos uma condição melhor", diz Martins.
Limitações materiais
O prefeito enumera que o município conta com três Unidades de Pronto Atendimento (UPAs, duas municipais e uma estadual); sete policlínicas; e uma rede ampla de saúde da família.
"Pelos limites orçamentários, o município não tem como ter uma UTI, um hospital de complexidade próprio. Temos apenas uma ambulância UTI, precisamos de pelo menos mais uma. Também pode faltar pessoal, como médicos intensivistas."
"Temos limitações materiais. O que estamos fazendo é nos antecipar ao máximo, achatando a curva (de casos) e evitando um pico abrupto. Pode ser que nos vejamos em uma situação de escolhas, como na Itália (no país europeu, foi divulgado um documento prevendo que a falta de recursos pode fazer com que equipes tenham de escolher quem será admitido nas UTIs de acordo com suas chances de sobreviver)."
"As dificuldades econômicas do Nordeste podem favorecer que não tenhamos condições de tomar todas as atitudes possíveis", respondeu Martins quando questionado se as condições de resposta de Feira de Santana são diferentes de capitais do Sudeste como Rio e São Paulo.
Cidade decreta estado de emergência
Diante da situação, o prefeito decretou estado de emergência no município, na sexta-feira (13).
Com a decisão, foram suspensas por pelo menos 15 dias as aulas na rede municipal. A Micareta de Feira de Santana prevista para o fim de abril e com público estimado de um milhão de pessoas, também foi adiada.
A cidade também criou um Comitê Gestor Municipal de Controle do Coronavírus, coordenado pela médica infectologista Melissa Falcão.
Em entrevista à BBC News Brasil, ela disse acreditar que a cadeia de transmissão local iniciada com a mulher de 34 anos esteja controlada, já que equipes do município buscaram e examinaram pessoas que tiveram contato com os diagnosticados.
Todos os convidados do aniversário ao qual a empregada doméstica de 42 anos foi, por exemplo, tiveram amostras coletadas.
"Esse primeiro caso e os outros três derivados dele estão sendo bem monitorados, então acho que disso não vai sair muito mais. Porém, muita gente que está retornando de viagem está sintomática, e essa é nossa maior preocupação", aponta Melissa Falcão.
"Nossa primeira paciente (diagnosticada com coronavírus) sentiu um impacto enorme na vida pessoal. Acabaram descobrindo, no trabalho e na escola da filha, que se tratava dela. Então ela recebeu muitas críticas e culpabilização por ter mandado a filha para a escola depois de ter chegado de viagem, houve pânico na escola... Até enviamos assistência psicológica para ela."
"Isso me preocupa: que as pessoas voltando (de viagem internacional) e sabendo dessa repercussão negativa não queiram nos contactar", diz a infectologista, acrescentando que boatos com falsas confirmações de casos também têm atrapalhado.
O prefeito Colbert Martins menciona ainda a preocupação por Feira de Santana ser um entroncamento rodoviário, o que significa que a cidade tem uma grande circulação de pessoas.
Desigualdade no acesso à saúde
A cidade foi a primeira a ter casos do novo coronavírus na Bahia — que contabiliza 28 casos confirmados, segundo boletim da Sesab. Eles estão distribuídos nos municípios de Salvador (17), Feira de Santana (5), Porto Seguro (5) e Prado (1).
Dados levantados pela BBC News Brasil na noite de segunda-feira (16) com boletins de todos os Estados — que podem diferir por certo período daqueles reunidos pelo Ministério da Saúde, cujo compilado apresenta apenas dados por Estado, e não por município — mostram que Feira de Santana era até ali a não capital com mais casos confirmados no país.
Até o dia 16, os cinco casos da cidade baiana eram equiparáveis, por exemplo, aos das capitais do Paraná e Rio Grande do Sul: Curitiba (5 casos) e Porto Alegre (6).
Os dados indicam que, em termos de estrutura de saúde, capitais tendem a ser mais favorecidas do que outras cidades brasileiras.
Um levantamento de 2018 do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre os leitos de UTI mostram dados preocupantes e, mais ainda, uma enorme desigualdade geográfica na distribuição destes.
Leitos de UTI, na rede pública e privada, estão disponíveis somente em 532 dos 5.570 municípios brasileiros. Quando se considera apenas a rede pública, somente 466 municípios têm leitos para tratamentos intensivos.
As capitais concentram 44% dos leitos SUS e 56% dos leitos privados do Brasil.
Na proporção leitos de UTI (públicos e privados) pelo tamanho da população, a Bahia tem 1,32 leitos por 10 mil habitantes; o Rio de Janeiro tem taxa de 3,79 e São Paulo, 2,63.
Outro estudo, coordenado pelo professor da Faculdade de Medicina da USP Mário Scheffer com o apoio institucional do CFM, mostra desigualdade também na distribuição de médicos pelas regiões do país.
O Sudeste tem a maior densidade médica por 1.000 habitantes (razão de 2,81) contra 1,16 no Norte e 1,41 no Nordeste, mostra o relatório Demografia Médica de 2018.
Pesquisadores estudam genoma de vírus detectado na cidade
Dentro de aproximadamente uma semana, deve sair o primeiro mapeamento do genoma do vírus coletado em um dos pacientes de Feira de Santana, a empregada doméstica de 42 anos.
O mapeamento está sendo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA), especificamente do Instituto de Ciências da Saúde da universidade, e do Núcleo de Genômica e Proteômica Aplicadas à Saúde.
O material em estudo veio do Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen) da Bahia, que está analisando os exames do novo coronavírus em Salvador.
"Vamos analisar se o vírus identificado por nós em Feira de Santana tem o mesmo potencial genético do vírus que está circulando na China, na Itália... A temperatura média em Feira de Santana é entre 31ºC e 35ºC; a genética das pessoas é outra", contou à BBC News Brasil Gúbio Soares, virologista da UFBA.
"Isso (os fatores climáticos e genéticos da população) pode ser uma barreira por vírus. Queremos ver se o material genético desse vírus se distancia muito dos que estão circulando na Europa."
Na Federal, Soares e sua equipe têm estudado outros vírus, como o oropouche, conhecido por sua circulação no Norte do país mas encontrado e mapeado pela primeira vez pelo grupo em Salvador — trabalho que foi publicado no periódico Japanese Journal of Infectious Diseases no final de 2019.
A equipe também estuda o reaparecimento do vírus da dengue de sorotipo 1 na Bahia após dez anos, analisando se o vírus sofreu mutações nesse intervalo.