A médica Nise Yamaguchi disse à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, nesta terça (1/6), que "desconhece qualquer gabinete paralelo" de aconselhamento ao presidente Jair Bolsonaro sobre pandemia, mas admitiu participar de um "conselho científico independente" com o empresário Carlos Wizard.
"Não participo de nenhum gabinete paralelo", disse Yamaguchi, apesar de admitir que participou "como convidada" de uma reunião com o comitê de crise interministerial, presidido pelo general Walter Braga Netto. "Sou uma colaboradora eventual", disse.
A médica afirmou que esteve com o presidente "umas quatro vezes" e que nunca teve encontros privados com Bolsonaro, embora a agenda oficial do presidente informe uma reunião entre ele e Yamaguchi em 15 de maio de 2020.
Consta na mesma agenda pelo menos duas outras reuniões de Bolsonaro com Nise, com a participação de outros integrantes do governo federal, nos dias 6 e 7 de abril de 2020.
Confrontada pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) com o registro de seis datas em que esteve em reuniões com autoridades do governo federal, cinco delas no Palácio do Planalto, Yamaguchi afirmou que precisaria checar com seus assessores. Disse também que apenas uma das passagens à Brasília foi paga pelo governo.
Yamaguchi afirmou que recebeu convites feitos pela secretária do presidente da República e que falou com seus assessores.
A comissão tem investigado quem faz aconselhamento médico e técnico a Bolsonaro sobre a pandemia desde que os ex-ministros da saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) e Nelson Teich afirmaram na CPI que o presidente não se aconselhava com eles.
Outros nomes que fizeram aconselhamento a Bolsonaro também serão convocados na CPI nas próximas sessões. Entre eles o empresário Carlos Wizard e o ex-assessor especial da Presidência Arthur Weintraub.
Nenhum deles ocupou cargo oficial no Ministério da Saúde, mas todos participaram de eventos e reuniões oficiais com Bolsonaro para tratar de assuntos relacionados à pandemia.
Yamaguchi afirmou que conheceu Wizard em uma reunião sobre um "conselho científico independente" para lidar com a questão da pandemia. Disse também que conheceu Weintraub em uma reunião com o presidente da República.
A médica disse também que não conhecia Wizard na época em que Mandetta era ministro, mas admitiu que teve reuniões com o governo nessa época.
Yamaguchi esclareceu que o conselho científico trabalhou fazendo levantamento de dados científicos de forma voluntária e apresentou essas informações ao governo.
A médica disse ainda que chegou a ser cogitado que o grupo fosse um conselho do próprio Ministério da Saúde, mas que depois optou-se por não ter vínculos formais com a pasta.
"A princípio, ele seria do ministério, mas não foi. Foi independente", disse.
Yamaguchi afirmou ainda se sentir "agredida" ao ser incluída pelo senador Rogério Carvaho (PT-SE) como integrante do suposto gabinete paralelo e reforçou que atuou como "colaboradora eventual".
A médica foi questionada pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) se considera correto ter dado opiniões ao governo que eram contrárias às orientações do ministros na época.
"Eu sustento minhas opiniões científicas. Elas são coerentes e são baseadas em dados. Como cientista tenho que dar minha opinião, que é pública", afirmou.
Tratamento precoce
Defensora do tratamento precoce com remédios sem comprovação científica, como cloroquina e ivermectina, Yamaguchi foi convidada à CPI depois de seu nome ter sido citado pelo presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antônio Barra Torres, em seu depoimento aos senadores.
Barra Torres afirmou que houve uma reunião no Planalto na qual foi discutido alterar por decreto a bula da cloroquina, para que o medicamento passasse a ser indicado contra a covid-19. Yamaguchi estava presente, segundo Barra Torres e Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), ex-ministro da Saúde, que também falou à CPI sobre o encontro.
A bula acabou não sendo alterada, explicou Barra Torres, porque a Anvisa só pode fazê-lo após análise a pedido dos fabricantes dos remédios - o que não aconteceu no caso da cloroquina, já que o remédio não tem eficácia comprovada no combate à covid-19.
Barra Torres afirmou que, após explicar que o procedimento não era possível, o general Braga Netto rasgou o documento que estava em cima da mesa.
À CPI, Yamaguchi afirmou que essa reunião, no dia 20 de abril de 2020, que não fez nenhuma minuta sobre a mudança da bula e negou que existisse ideia de mudança de bula da cloroquina por minuta ou por decreto.
"Então, o presidente da Anvisa mentiu?", questionou o senador Renan Calheiros.
"Eu acho que ele deveria pelo menos apresentar a minuta, porque nesse momento não houve minuta de mudança de bula", afirmou. "Depois eu fiquei sabendo que a minuta não era para isso."
A médica entrou depois em contradição sobre esse assunto ao confirma a existência do decreto.
Yamaguchi foi questionada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) sobre uma troca de mensagens com outro médico, o anestesista Luciano Dias, em que fala sobre um decreto para alteração da bula da cloroquina.
Nas mensagens, fornecidas à CPI pela própria Yamaguchi, ela afirmou que a bula de um medicamento não poderia ser alterada desta forma porque isso violaria as normas que regem o tema.
Yamaguchi afirmou então que fazer isso "exporia muito o presidente". A médica disse ainda que não sabe quem elaborou o decreto. Rodrigues defendeu então que Luciano Dias seja convocado para depor na CPI.
A médica também foi questionada por que o tratamento precoce não diminuiu os índices de mortalidade.
Yamaguchi afirmou que alguns Estados tiveram sim eficácia do tratamento precoce e que o Amapá tem um dos menores índices de morte por covid. Ela foi confrontada na própria CPI porque a informação estava incorreta. O Amapá é o sexto Estado com mais mortes por 100 mil habitantes.
A médica afirmou que Bolsonaro perguntou a ela o que havia de informações científicas sobre hidroxicloroquina.
"O que eu disse pra ela é que os médicos estavam divididos e que existe uma discussão sobre a questão científica", afirmou.
Yamaguchi voltou a defender que há estudos científicos que atestam a eficácia de medicamentos contra a covid-19, para evitar que pacientes fossem hospitalizados ou morressem, e afirmou que existe uma "tentativa de demonização" de tratamentos.
"Existe uma tentativa de destruição de um tratamento que está salvando vidas no Brasil. Quando os senhores tiverem a oportunidade de receber informações científicas sem vieses teremos outra visão para o Brasil e para a humanidade", afirmou.
A médica foi questionada pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) se os estudos científicos aos quais ela se referiu como prova da eficácia dos medicamentos usados no tratamento precoce haviam sido publicados em revistas científicas qualificadas, mas Yamaguchi não conseguiu responder.
Ela disse ainda aos senadores que já aplicou um tratamento precoce em 450 pessoas que tiveram covid-19. "Não trato só com cloroquina, quero deixar isso claro", afirmou.
A médica disse ainda que, em sua opinião, o grande número de mortos na pandemia no Brasil é devido à demora do uso desse tipo de tratamento. Não há evidências científicas que deem apoio a essa afirmação.
Confronto sobre declarações
Yamaguchi evitou comentar declarações e decisões do presidente Jair Bolsonaro, dizendo que são "decisões políticas" e que ela não pode emitir uma opinião médica "sobre a interpretação que as pessoas fazem de suas falas".
Também negou que tenha grande influência sobre o governo federal e o presidente. "Cada um vai tomando suas decisões de acordo com seu próprio entendimento", disse.
Yamaguchi entrou em confronto com os senadores sobre falas passadas, exibidas em vídeos pelos senadores.
Em um dos vídeos, de outubro de 2020, ela dizia que "há evidências científicas robustas falando que o tratamento precoce salva vidas e portanto não é necessário vacinar aleatoriamente uma população inteira falando que é a única saída".
Questionada pelo senador Renan Calheiros se mantém a posição de que o tratamento precoce é tão importante quanto a vacina, Yamaguchi afirmou que não foi isso que quis dizer.
Seu vídeo foi exibido diversas vezes até a médica explicar que considera vacinas e tratamento precoce. "São situações semelhantes, uma é para prevenção, que é a vacina, e o tratamento é tratamento. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa", afirmou. "Só não se deve dizer que é a única saída."
Confrontada pelo presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), sobre a importância das vacinas, Yamaguchi afirmou que "concorda plenamente" que as vacinas são muito importantes.
"A senhora não disse isso, doutora Nise", afirmou Aziz. "A senhora falou que não é para vacinar aleatoriamente, mas é preciso vacinar a população toda, doutora."
"O Ministério da Saúde seguiu regras para vacinar", disse Yamaguchi.
"Porque não tem vacinas para todo mundo, doutora", afirmou Aziz.
Neste momento, Aziz fez um apelo: "Vacina sempre preveniu. É melhor prevenir do que remediar. Isso é histórico. Tem que vacinar todos os brasileiros, pelo amor de Deus! Todos os brasileiros precisam de duas vacinas. Duas! Não acreditem nela. A vacina salva!".
Questionada se tomou a vacina contra covid-19, a médica disse esclareceu que já teve a doença e que não pode se vacinar porque tem uma condição de saúde autoimune que a impede de fazer isso e afirmou que, como imunologista, é "pró-vacina".
"Quero que as vacinas sejam eficazes e seguras e estou acompanhando exatamente isso", afirmou.
Imunidade de Rebanho
O senador Renan Calheiros (MDB-AL) exibiu dois vídeos em que Yamaguchi defendia a tese de criação de imunidade de rebanho sem vacinas no caso das vacinas.
A estratégia foi levantada como possibilidade no início da pandemia e consiste em tentar atingir imunidade de grupo — quando a maioria da população têm anticorpos contra o vírus — sem vacinas, através da contaminação do maior número possível de pessoas. Em pouco tempo, no entanto, estudos mostraram que a consequência dessa estratégia eram milhares de mortes.
Questionada pelo senador Renan Calheiros, Yamaguchi afirmou que defendia a imunidade de rebanho porque, no ano passado, "não se previa" novas variantes do vírus.
No atual momento, disse ela, "a imunidade de rebanho deve ser alcançada pelas vacinas." Yamaguchi afirmou que nunca discutiu imunidade de rebanho com o presidente Jair Bolsonaro.
Insatisfeitos com a fala da médica, senadores defenderam que Yamaguchi seja chamada de novo a depor, não mais como convidada, mas como testemunha, o que implica na obrigatoriedade de comparecer e na caracterização de crime caso o depoente falte com a verdade.