Dono de uma empresa que vende resíduos recicláveis para a indústria, Júlio César Chagas Santos, de 50 anos, está acostumado a negociar com clientes grandes, como fabricantes de bebidas e redes de supermercados.
Pós-graduado em engenharia ambiental, ele integra o 1% mais rico do Brasil. Mesmo assim, já foi confundido com manobrista em um evento no luxuoso hotel Copacabana Palace.
Casado à época com uma atriz, o empresário vestia um terno de grife e esperava por seu carro quando uma senhora estacionou e, em gesto automático, se dirigiu a ele para entregar as chaves do carro.
"A mulher ficou nitidamente envergonhada ao saber que eu também era um convidado e pior, marido de uma das artistas mais populares do evento."
Mas fatos como esse não lhe causam espanto. "Já fui pobre e também discriminado. Mas ao ascender, nada mudou. Vejo muito poucos negros como eu e, por isso, confundo as pessoas."
Santos é o quarto dos cinco filhos de uma mãe empregada doméstica e um pai sargento da Marinha. Nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro e, aos 13 anos, passou a ganhar a vida como lavador de carros.
Um dia, foi convidado a trabalhar em uma concessionária. Ali nasceu a sua primeira empresa, confirmando o espírito empreendedor do futuro empresário. "Eu tinha uns 20 anos e convidei meus amigos para me ajudar na lavagem. Foi assim que montei minha primeira equipe de trabalho", relembra.
De empregado a empreendedor em série
Após concluir o equivalente ao atual ensino médio, Santos entrou para a faculdade de Direito. Para pagar a mensalidade, largou o negócio de lavagem e passou a trabalhar como segurança de prédio.
"Mas o emprego não me permitia cursar a faculdade. Para pagar o curso, trabalhava três turnos de 24 horas durante toda a semana. Não tinha folga", relembra. "Por isso, abandonei."
Tudo mudou ao virar segurança particular de uma família rica. "O salário que me pagavam era cinco vezes maior do que eu ganhava no emprego anterior, pois trabalhava em tempo integral e dormia no emprego", afirma.
Durante os seis anos na função, tornou-se encarregado de administrar todos os empregados da casa. Foi aí que teve a ideia de abrir uma empresa de conservação e limpeza, com a qual passou a fazer a manutenção de todas as empresas do patrão.
Os negócios prosperaram. De empregado, passou a ser patrão, mas acabou fechando o negócio após uma série de problemas pessoais.
"Fui embora para a Europa atrás de uma namorada alemã. Lá, tive acesso a um novo mundo, a novas tecnologias e a uma outra língua. Isso abriu minha cabeça. Ao voltar para o Brasil, já tinha mais ideias de negócio e retomei meus estudos", conta.
Santos abriu então uma consultoria e assessoria em aviação - tinha feito um curso de direito aeronáutico na Alemanha. "Por coincidência, meu irmão mais velho, que era militar, estava trabalhando nesta área. E juntos abrimos esta empresa."
Mais uma vez foi bem-sucedido e, com o lucro, iniciou um segundo negócio: a venda de resíduos de lixo.
"Era o ano 2000. Estava assistindo a uma reportagem na TV sobre a vida de uma senhora catadora de lixo. Aquilo me tocou, e me perguntei o que eu poderia fazer para ajudar essas pessoas. Foi aí que criei um projeto sobre este tema e, ao tentar ajudar outros, foi o projeto que acabou me ajudando."
Santos percebeu o enorme potencial daquele negócio ao entender que a grande quantidade de lixo recolhido por aquelas pessoas, se reciclada, poderia ser vendida para a indústria.
"Deu certo. Estou há 16 anos neste mercado, dei formação a inúmeros catadores e domino toda a logística."
Estranhamento
É como empresário que ele se destaca e transita em meio à elite. Viaja constantemente a trabalho e está em contato com diretores de multinacionais.
Ao explicar seu projeto a um alto executivo em um desses encontros, voltou a sentir na pele o estranhamento por ser um negro em posição de comando.
"O tal diretor franzia a testa o tempo todo e, por fim, perguntou como eu era capaz de pensar em tudo aquilo se ele mesmo, com toda a formação que tinha, não conseguia fazer o que eu fazia."
Para Emerson Rocha, sociólogo e pesquisador na Universidade de Brasília (UnB) sobre a presença do negro na riqueza, histórias como a de Santos jogam por terra o mito de que a discriminação no Brasil é mais social do que racial.
"A ideia de que o negro qualificado ou que ascende socialmente é visto como branco é equivocada. Mais do que nunca, ele é um negro e fora do lugar", explica.
"É por isso que é muito comum a ele ser confundido como ladrão de seu próprio carro de luxo, já que não se espera que ele possua um. Ou é muito comum alguém custar a acreditar que aquele negro possa ser engenheiro, juiz, médico ou arquiteto, porque de pessoas negras não se esperam ocupar tais posições. Daí o espanto."
Ainda segundo Rocha, é no espaço do mercado de trabalho privado que a discriminação ocorre mais - principalmente em postos de direção, entre gestores e gerentes. E isso reflete em uma maior desigualdade racial no topo da pirâmide.
"O funcionalismo público já é um segmento com elevada renda média e responsável por inserir muitas pessoas nos estratos mais ricos da sociedade. Não havendo a subjetividade de um recrutador em aceitar ou não um candidato pelo critério da cor, fica mais fácil haver uma maior presença de negros no setor público do que no privado."
Santos chegou ao 1% mais rico pelo empreendedorismo, mas nota a ausência de mais empresários negros no mercado de médio e grande porte.
"Além de mim, conheço apenas mais um. Tenho negócios em Nova York e trato com muitos empresários negros. Mas no Brasil infelizmente isso ainda não acontece", reconhece.
Segundo Rocha, histórias positivas como a do empresário servem muitas vezes a discursos que tentam negar a existência de barreiras e mesmo do racismo. Apesar desse risco, são trajetórias que precisam ser destacadas para mostrar que, sim, a superação é possível.
Esta reportagem faz parte de uma série sobre a vida de negros que fazem parte do 1% mais rico da população brasileira - leia , e aqui os outros textos.
Segundo dados do IBGE, o total de negros nesse grupo aumentou cinco pontos percentuais nos últimos 12 anos (de 12,4% para 17,4%), mas ainda está longe de representar o peso da população declarada negra (pretos e pardos), que corresponde a 53,6% dos brasileiros.