Do alto, passando de helicóptero, o superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na Bahia, Rodrigo Alves, tira uma foto da praia de Garapuá, no litoral sul da Bahia. Em sua conta no Instagram, ele publica a imagem, marca a localização e legenda: "Limpo limpo limpo limpo".
Lá embaixo, onde não se pode ver em sobrevoo, pescadores e outros moradores se embrenham no mangue e enterram a mão em uma mistura de lama e óleo cru, tentando arrancar à força a substância tóxica que invadiu o ecossistema de onde tiram seu sustento.
"Ainda tem muito óleo no mangue, a gente não sabe mais o que fazer. E ainda por cima o Ibama tirou a base de apoio que tava montada aqui", conta a professora Jailma Santos, líder comunitária da pequena localidade pesqueira, que pertence ao município de Cairu e fica entre as famosas Morro de São Paulo e Boipeba.
As duas cenas acima aconteceram paralelamente, no final da manhã de terça-feira (29/10), e expõem realidades que também parecem paralelas no meio da crise de derramamento do petróleo no litoral nordestino.
De um lado, gestores e órgãos públicos mantêm a posição de que as praias, após a coleta do óleo aparente, estão liberadas. De outro, pesquisadores especialistas no tema seguem afirmando que a limpeza "visual" não quer dizer muita coisa, pois o maior perigo está justamente naquilo que não dá para enxergar.
"Estão (boas para banho). À medida que vai aparecendo, nós estamos deslocando os especialistas para lá, eles fazem a limpeza e pronto, a praia está em condições de banho", afirmou no sábado, dia 26, o então presidente da República em exercício, Hamilton Mourão.
"Morro de São Paulo tinha sido atingida e imediatamente, no dia seguinte, estava em condições de banho", completou.
Riscos invisíveis
"Não está tudo bem só porque tirou o óleo e ignorar esse fato é uma irresponsabilidade de qualquer gestor público. Não dá pra brincar com a saúde das pessoas e dos ecossistemas. As informações devem ser claras e a população deve estar ciente dos riscos", diz a ecotoxicologista Letícia Aguilar, que realizou pesquisa de doutorado focada nos impactos ambientais de derramamento de petróleo no Golfo do México.
"O petróleo é muito tóxico e leva de 5 a 20 anos para ser metabolizado pelos ecossistemas costeiros. A literatura científica disponível sobre o tema é ampla e muito clara. As comunidades pesqueiras estão ameaçadas quanto à sua atividade comercial e também quanto à sua saúde. Quem frequenta essas praias também", emenda Letícia.
No caso de Garapuá, o maior volume de óleo nas praias foi registrado entre os dias 24 e 25, quando mais de duas toneladas foram coletadas por voluntários da própria comunidade.
Desde então, o contaminante segue chegando, além de ainda haver uma quantidade elevada presa nos manguezais, onde a limpeza é bem mais trabalhosa.
"Estamos nos organizando aqui pra tentar limpar o mangue. O mangue e o mar são nosso meio de sobrevivência. Pessoas vinculadas ao turismo postam que está tudo limpo, mas a realidade não é essa. Ainda tem muito óleo, muito óleo, inclusive nos corais", afirma Jailma.
O superintendente do Ibama, Rodrigo Alves, que em seus sobrevoos enfileira postagens destacando as praias já "visualmente limpas", argumenta que segue a indicação da ITOF, consultoria internacional que está trabalhando com o Governo Federal nesta crise.
"A orientação que temos é essa. Se não tem óleo visível, a praia está apta para banho. Os trabalhos de limpeza têm sido eficazes e o percentual desse óleo que dilui é mínimo", diz Alves.
"Domingo eu passei o dia na praia com minha família e não acho que estava correndo risco nenhum."
Ele reconhece, entretanto, que em áreas confinadas, como manguezais, a limpeza demanda mais tempo e os contaminantes tendem a impregnar. "Realmente há um risco, especialmente para as pessoas que trabalham ali dentro."
Sobre a base desmontada ainda com a limpeza do mangue em curso, Alves disse que se tratava de um Centro de Defesa Ambiental (CDA) da Petrobras avançado, que foi deslocado para outra localidade quando, em tese, a chegada de petróleo em Garapuá havia arrefecido. Segundo ele, uma equipe de limpeza ainda voltaria à comunidade.
Uma investigação da Polícia Federal revelou que o principal suspeito de ter derramado o óleo na costa brasileira é o navio grego Bouboulina. A Justiça autorizou que a PF realizasse busca e apreensão nas sedes de duas empresas no Brasil que poderiam revelar mais informações sobre a operadora do navio — as duas empresas, no entanto, negaram ter qualquer relação com as operações do Bouboulina.
Postagens positivas
De acordo com a Resolução 274/2000 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), toda praia em que houver derramamento de óleo deve ser imediatamente interditada — e especialistas no tema defendem que elas só podem ser reabertas após análises específicas que descartem a presença dos compostos de petróleo na água e nos sedimentos.
No entanto, nas redes sociais, os perfis oficiais de alguns dos destinos mais procurados do Nordeste se dividem entre informar ações de limpeza e enfatizar que as praias, após tais ações, estão prontas para receber a população.
No dia 22, a localidade de Morro de São Paulo amanheceu com mais de uma tonelada de óleo nas areias. A Prefeitura de Cairu interditou duas praias e coordenou a coleta do material. Pela tarde, as praias já estavam liberadas para os banhistas.
Quatro dias depois, 26 de outubro, o perfil oficial da prefeitura no Instagram publicou uma foto da praia com o emblemático farol do Morro ao fundo e a legenda "Morro de São Paulo na manhã deste sábado: limpo e lindo".
Em outro trecho do litoral baiano, a cidade de Mata de São João teve o ápice da sua crise com o óleo na segunda semana de outubro, quando mais de 40 toneladas tiveram de ser coletadas nas mais diversas praias do município, incluindo Praia do Forte, a mais famosa delas.
Na sexta-feira, 25, o perfil da prefeitura publicou uma foto. "Praia do Forte hoje. Linda e limpa", dizia a legenda.
Em Ipojuca, que abriga algumas das mais célebres atrações costeiras de Pernambuco, como Porto de Galinhas e Muro Alto, a prefeitura foi além.
No dia 22 de outubro, publicou no Instagram um filme em que pessoas que se identificam como turistas incentivam possíveis interessados a irem para lá, pois as praias estariam em perfeito estado. A postagem é acompanhada pela hashtag #podevirquetalimpeza.
Mas, de acordo com comunicado no site oficial da gestão municipal, o óleo havia chegado àquelas mesmas praias mostradas no vídeo a partir de 19 de outubro, três dias antes da postagem.
Seguindo a linha do discurso otimista, foi em Muro Alto que o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, chegou no dia 25, dobrou a barra da calça jeans e molhou os pés na beira da água para afirmar que todas as praias do Nordeste onde o óleo já havia sido coletado estavam aptas para banho.
Questionado por jornalistas, o ministro não esclareceu em quais critérios se baseou para fazer tal afirmação, mas garantiu que levaria tranquilamente a família para uns mergulhos naquela praia. "Se menos de 10% das praias foi impactada, a gente precisa tratar de uma forma responsável do ponto de vista de divulgação", disse.
No dia seguinte, a Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco emitiu um relatório no qual recomendava que banhistas evitassem a praia de Muro Alto. Além disso, a Secretaria Estadual de Saúde registrou dois casos de intoxicação em Ipojuca, de voluntários que estavam atuando na limpeza das praias.
Em Maragogi, cidade do litoral norte de Alagoas conhecida como o caribe brasileiro, o próprio desastre entrou em choque com o discurso.
No dia 25/10, a prefeitura da cidade publicou uma foto informando que as praias estavam aptas para banho, baseando-se somente em relatório de balneabilidade do Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA).
Mas, tal relatório, que é publicado regularmente, é elaborado a partir da análise da concentração de coliformes fecais na água, e não da presença de compostos do petróleo.
Para esta análise específica, o IMA já recolheu amostras nas praias de Maragogi, Japaratinga e Piaçabuçu. A previsão é que os resultados sejam divulgados na próxima semana.
Na segunda-feira, 28, três dias depois de convidar a todos para as suas praias, a prefeitura de Maragogi decretou estado de emergência em decorrência do derramamento de óleo.
Na publicação do decreto, o município afirma que os resíduos de petróleo começaram a surgir há dois meses e enfatiza que a atividade turística na cidade depende das condições de suas praias.
Respostas
Por meio da assessoria de comunicação, a prefeitura de Mata de São João informou que a postagem em que se refere à Praia do Forte como "linda e limpa" foi embasada pelo relatório de balneabilidade do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), que analisa somente a presença de coliformes.
"Não estamos afirmando que a água está própria para banho e sim que a praia está limpa. A praia não tem mais nenhum cheiro ou rastro de óleo, mas a prefeitura não é a autoridade competente para definir se há contaminação na água. Esperamos que a análise seja feita o quanto antes e já solicitamos ao Inema. Até lá, as atividades da cidade, inclusive as atividades turísticas, seguem normalmente", declarou a assessoria.
Posição semelhante foi adotada pela Prefeitura de Cairu. Em nota, o município afirmou que a responsabilidade de analisar as condições da água e das praias é do Inema e que tal solicitação foi feita ao órgão estadual no dia 24 de outubro.
"O acesso às praias do município está liberado e as mesmas estão sendo monitoradas 24h por dia. Ao serem identificados novos sinais de óleo, os mesmos são removidos imediatamente. Quanto à qualidade da água para banho, em atenção ao artigo 3 da resolução 274/2000 do CONAMA, que define os critérios de balneabilidade em águas brasileiras, a Secretaria de Desenvolvimento Sustentável de Cairu informa que não possui ferramentas de constatação da má qualidade desta água pela presença de óleo", indica a nota.
"A Prefeitura de Cairu orienta aos banhistas que tenham cautela e, caso sejam encontrados fragmentos, evitem o contato direto com o material, sem equipamentos de proteção."
O engenheiro sanitarista e ambiental Eduardo Topázio, diretor de Recursos Hídricos e Monitoramento do Inema, afirmou à BBC News Brasil que as análises referentes ao litoral norte, onde está Praia do Forte, já descartam a presença física do óleo. Os resultados sobre as substâncias derivadas estão previstos para segunda-feira (04/11).
No litoral sul, onde o petróleo chegou depois, amostras ainda serão colhidas para a investigação química.
Ele acha, entretanto, que existe um "alarmismo desnecessário". "Estamos fazendo essas análises específicas para hidrocarbonetos e vamos continuar fazendo, justamente para desmistificar esse risco e deixar a população tranquila. Essas substâncias são muito voláteis e estão num ambiente muito aberto e de alta renovação. Então, se eliminar o contato direto com a mancha, os riscos são muito baixos", argumenta.
Segundo Topázio, a indicação do Inema, até que existam os resultados das análises químicas é: "Se a praia tem óleo à vista, não deve ser frequentada. Se não tem, está liberada".
Na sua avaliação, o que causa mais preocupação são os resíduos de óleo nas areias, pelo possível contato humano, e nos sedimentos de corais e manguezais. "Isso sim é grave, porque são os ecossistemas que estão na base da cadeia alimentar. Então temos que fazer monitoramento constante".
O secretário de Meio Ambiente e Controle Urbano de Ipojuca, Erivelto Araújo, também considera que as praias do município estão próprias para banho até que se tenha o resultado das análises químicas, que estão sob responsabilidade da secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco (Semas).
"Nossos eventos de chegada de óleo foram pequenos em relação a outras cidades que estão tirando até hoje. O que temos ainda são micropartículas na areia e algum óleo preso no corais do Cupe, numa área que está isolada", afirma Araújo.
Em sua visão, não há problema nenhum no vídeo que foi divulgado — com banhistas garantindo que está tudo bem —, porque "não foi uma quantidade grande de óleo, foi um evento mínimo".
José Bertotti, titular da Semas, diz que a orientação do órgão estadual é que as pessoas evitem o banho se detectarem a presença de óleo. "Mas a atenção deve ser constante, porque de um dia pro outro a realidade já está diferente."
De acordo com o secretário, análises com amostras de todas as praias pernambucanas atingidas não encontraram óleo ou graxa. Mas, o resultado sobre a presença de compostos cancerígenos, como benzeno, tolueno e xileno, estão previstos para o dia 8 de novembro.
"Nós vamos manter o monitoramento por pelo menos seis meses na água do mar, na areia, nos estuários e nos sedimentos. Mas, por enquanto, não há problema se não houver identificação do óleo."
Em conversa com a BBC News Brasil, o prefeito de Maragogi, Fernando Sergio Lira, disse que também está aguardando as análises do órgão estadual (IMA). Até que exista orientação em contrário, afirma ele, as praias estão liberadas.
"Todo o óleo foi retirado. O que há agora são fragmentos na areia e temos 100 pessoas peneirando todos os dias. A gente ainda não sabe o nível de agressão que essas substâncias podem causar, por isso estamos aguardando."
Questionado se, diante da incerteza, não seria prudente o oposto — manter as praias interditadas até ter os resultados dos testes químicos —, Lira disse que "praia é diferente da água do mar". "Praia é a areia, o que podemos garantir que o que está limpo é a areia."
Petróleo invisível
Professor da Universidade Federal da Bahia, Ícaro Moreira já atuou na agência ambiental do governo canadense, na área de remediação em casos de derramamento de petróleo. Para ele, o maior perigo é quando o óleo está "invisível".
"O problema do petróleo é que quando ele está dissolvido, ali só restam justamente os hidrocarbonetos, que as pessoas podem ingerir sem saber ou até assimilar pela pele. Essa forma microscópica do petróleo é a mais tóxica e a mais danosa ao meio ambiente e à saúde humana, porque geralmente ele entra na cadeia alimentar", diz ele.
"Existe uma pressão política e econômica de passar pra população que está tudo bem, mas nenhum laudo foi gerado, nenhum plano de amostragem de monitoramento foi apresentado à população até agora, então a gente está sim numa situação de risco. Este é um momento de precaução e a população deve aguardar que os órgãos ambientais emitam laudos técnicos e oficiais sobre esses impactos."
Carine Silva, oceanógrafa química especializada em Petróleo e Meio Ambiente, lembra que existem pesquisas feitas em áreas de derramamento anos após o episódio, onde ainda assim detecta-se a toxicidade.
"Seria muito importante evitar que esse óleo chegasse à costa. Agora, que já chegou, é preciso ter muito cuidado para liberar essas áreas para a população. Dizer que está tudo bem só porque não há manchas visíveis é um risco muito grande", afirma.
Para Letícia Aguilar, o melhor caminho neste momento é que todos os entes envolvidos, públicos ou privados, atuem com transparência e cautela.
"Ninguém quer acabar com o turismo ou com as comunidades pesqueiras. Ninguém quer assustar as pessoas à toa. Pelo contrário. O que se defende é que tudo seja informado claramente, para não haver dúvidas", afirma Letícia.
"É perigoso dizer que está tudo bem sem ter as análises. Para recuperar esses ecossistemas e para que as pessoas possam frequentar esses lugares e consumir os alimentos, é preciso ter transparência. E que tudo seja divulgado oficialmente e com regularidade."
Do Maranhão à Bahia, o desastre já alcançou mais de 2,5 mil quilômetros de extensão — e as manchas seguem avançando. Na quinta-feira, chegaram a Arraial d'Ajuda, Trancoso e Caraíva, que não constavam do balanço oficial.