A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, de paralisar todas as investigações que utilizaram dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) afeta em cheio processos relacionadas à lavagem de dinheiro por organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC).
O diagnóstico foi feito pelo procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Gianpaolo Poggio Smanio, depois da decisão de Toffoli, que aceitou um pedido do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, que contestava o compartilhamento de informações financeiras sem autorização judicial.
"Todas as investigações (que utilizaram dados do Coaf e da Receita Federal), inclusive as do PCC, vão ficar paradas por meses e não vamos poder obter novos dados", disse Smanio à BBC News Brasil.
Segundo ele, várias ações do Ministério Público voltadas a asfixiar recursos usados para financiar grupos criminosos e o tráfico de drogas partem de alertas comunicados pelo Coaf e a Receita Federal.
A partir desses dados iniciais de movimentações e saques suspeitos, os procuradores pedem as quebras dos sigilos bancários de integrantes de quadrilhas e tentam paralisar e reaver o dinheiro. Um esforço que, segundo o procurador, precisa ser rápido para impedir que os recursos saiam do radar.
A estratégia de "secar a fonte" do financiamento de grupos criminosos é vista como essencial pelo Ministério Público na redução da criminalidade.
O ministro da Justiça, Sergio Moro, também já defendeu diversas vezes o trabalho conjunto entre Coaf e Ministério Público no combate à lavagem de dinheiro e no "sufocamento" de organizações criminosas.
"As investigações do PCC serão afetadas, com certeza. A gente utiliza dados da circulação bancária de muitos indivíduos para iniciar uma investigação que verifique se a pessoa está usando dinheiro para lavar recursos do crime organizado", disse o procurador-geral de Justiça de SP.
Em 2006, quando o Primeiro Comando da Capital (PCC) promoveu uma série de ataques em São Paulo, o Coaf produziu um relatório a pedido das autoridades paulistas, apontando movimentação de ao menos R$ 36,6 milhões entre novembro de 2005 e setembro de 2006 em contas bancárias de centenas de pessoas que seriam ligadas à facção criminosa.
Desde então, investigações semelhantes se utilizam de dados do Coaf para identificar integrantes do PCC e tentar sufocar recursos do grupo criminoso.
O efeito cascata da decisão de Toffoli
A decisão do presidente do Supremo ocorreu na análise de um pedido do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) para que um inquérito que corre contra ele no Ministério Público do Rio de Janeiro fosse paralisado.
Flávio Bolsonaro argumentou que o Coaf não poderia ter compartilhado sua informações com os promotores sem prévia autorização judicial.
O presidente do STF decidiu então suspender por liminar (decisão provisória) todas as investigações iniciadas a partir de compartilhamentos desse tipo até que o Supremo julgue um recurso com repercussão geral sobre esse tema, o que está previsto para novembro.
Ou seja, a decisão de Toffoli impacta todas as investigações iniciadas com dados do Coaf. E se os demais ministros decidirem, em novembro, que o compartilhamento de dados é inconstitucional, isso pode abrir caminho para a anulação de processos.
O advogado criminalista Márcio Delambert disse, por exemplo, que a decisão de Toffoli deve afetar a Operação Furna da Onça, desdobramento da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro. Essa operação investiga, com auxilio de dados do Coaf, se parlamentares da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) receberam propina em troca de apoio ao governo de Sérgio Cabral (PMDB-RJ).
"Terá efeito em outros processos, sim. Inclusive esse caso do Flávio Bolsonaro se originou da Operação Furna da Onça. Mantendo a logica da decisão, ela vai se refletir na Furna da Onça", afirmou Delambert.
Ele é advogado de Sérgio Cabral e está analisando se entrará com pedido para paralisar processos contra o ex-governador com base na decisão de Toffoli. "Estou analisando os casos em que houve uso de dados sem autorização judicial. Naqueles que eu identificar isso, vou entrar (com pedido de paralisação", disse à BBC News Brasil.
'Crime não espera'
O procurador-geral de Justiça de SP afirmou que o Ministério Público do Estado de SP já pretende paralisar todas as investigações que se iniciaram com base em informações do Coaf. Ainda não há levantamento de quantos casos serão afetados.
Mas Smanio também criou um grupo de trabalho no Ministério Público de São Paulo para "levar subsídios ao STF para tentar reverter a decisão do ministro".
"Já houve a determinação do Supremo de suspensão, então as investigações têm que ser paralisadas", disse. Segundo ele, é possível que essas suspensões tenham impacto negativo sobre a criminalidade em São Paulo.
Se a decisão de Toffoli não for revista antes, os casos só poderão ser retomados quando o plenário do Supremo decidir se é ou não constitucional o compartilhamento de dados do Coaf com o Ministério Público, sem autorização judicial prévia.
"Para investigações de colarinho branco, tráfico de drogas e relacionadas ao PCC, quatro meses é tempo demais. É importante termos essa informação do descompasso da circulação da moeda para trabalhar no sufocamento do financiamento do crime, para impedir o dinheiro de circular", afirmou.
"Fica difícil o combate ao crime, se a gente não corta em tempo hábil o financiamento que a criminalidade traz."
Dados do Coaf são quebra de sigilo?
A questão de fundo na ação movida pelo senador Flávio Bolsonaro é se a obtenção e compartilhamento de dados obtidos pelo Coaf, relativos a movimentações financeiras, configura ou não quebra de sigilo.
O Coaf foi criado em 1998 seguindo uma tendência mundial, a partir do entendimento de diversos países da necessidade de uma entidade que faça o meio de campo entre instituições financeiras e lojas de itens de luxo (que podem identificar transações suspeitas) e órgãos de investigação como o Ministério Público e as polícias (que não têm a linguagem do sistema financeiro).
As instituições que registram operações vultosas - como bancos, corretoras, joalherias, concessionárias de automóveis e até empresas que agenciam atletas - foram então obrigadas legalmente a enviar informações ao Coaf sempre que detectarem transações altas em dinheiro vivo ou movimentações com indícios de irregularidades. Caso não façam isso, podem perder a autorização para operar e pagar multa de até R$ 20 milhões.
A partir dos dados recebidos eletronicamente, os servidores analisam as informações e produzem relatórios caso identifiquem indícios de ilegalidade - esses documentos são enviados para outros órgãos, como Receita Federal, Ministério Público e polícias. Parte dos relatórios são produzidos por iniciativa dos próprios servidores, 70% são elaborados a partir do pedido órgãos de investigação.
Atualmente, o Ministério Público pode, por exemplo, pedir ao Coaf relatórios sobre pessoas suspeitas de integrar o PCC, para verificar se, de fato, há indícios de movimentações que apontem para lavagem de dinheiro proveniente de atividades criminosas.
O ministro do STF Marco Aurélio Mello disse à BBC News Brasil que, na visão dele, só uma decisão judicial poderia permitir o compartilhamento desse tipo de informação.
"Eu tenho votado nesse sentido: só quem pode afastar a privacidade - e nós estamos aí a cogitar dados econômicos, financeiros, do cidadão Flávio Bolsonaro - é o Judiciário"
O professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo Alamiro Velludo Salvador Netto diz que esse compartilhamento de dados sem autorização judicial é, na visão dele, uma violação de garantias de sigilo previstas na Constituição.
"É natural que as ações que tiveram início com dados do Coaf sejam todas paralisadas, porque pode ser que, em novembro, prevaleça a visão de Toffoli e aí todos esses processos e investigações serão anulados", disse.
"O argumento de que essa paralisação atinge investigações do PCC é sofista. Não é porque é o PCC que os seus integrantes devem ser tratados diferenciadamente. Não pode haver tratamento diferenciado dependendo do cidadão."
Para Velludo Salvador Neto, o Coaf só poderia fornecer informações genéricas, como nome da pessoa suspeita e volume total de recursos movimentados que seriam atípicos. A partir desses dados, o Ministério Público teria, então, que pedir a quebra de sigilo bancário ao juiz e proceder, a partir daí, a uma análise das movimentações.
Perguntado se esse procedimento não retardaria as investigações a ponto de, eventualmente, inviabilizar o bloqueio de recursos usados para lavagem de dinheiro, o professor disse:
"Não acho que o comprometimento é grande suficiente para justificar a quebra de sigilos do cidadão. A Constituição dá garantias em face do poder do Estado. Será que em nome da celeridade, vale romper com o sistema jurídico?"
Meio de prova vs. prova
Mas, para o procurador-geral de Justiça de São Paulo, não há inconstitucionalidade no compartilhamento de informações. Segundo ele, os dados do Coaf servem de alerta para iniciar investigações, não seriam provas obtidas sem autorização judicial.
"Parece que está havendo uma confusão entre o que é meio de prova e o que é prova. As informações do Coaf são um meio de prova. É um sistema de alerta. A partir dos indícios que elas trazem, nós pedimos autorizações para quebrar sigilos", disse.
Para ele, exigir autorização judicial para o compartilhamento de informações "burocratiza" e "inviabiliza" o congelamento de recursos de organizações criminosas em tempo hábil.
"Os informes do Coaf, regulados por lei, devem ter como característica a celeridade, uma vez que a movimentação de capitais ocorre em velocidade impressionante no Brasil e no mundo", argumentou.
"Em nosso entendimento, a lei e a Constituição não exigem autorização judicial para que o Coaf compartilhe informações. A quebra de sigilo para produção de prova, essa sim, carece de autorização judicial."
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