A paulistana Aline Paz arrumou seu primeiro emprego em 2007, aos 16 anos, na área de “Posso Ajudar?” de um conhecido shopping de São Paulo. No ano anterior, seu pai havia falecido, e ela precisava ajudar a cobrir as despesas de casa. Mas ficou no trabalho apenas 7 meses. Quando a responsável pela administração descobriu que a jovem era lésbica, imediatamente a demitiu.
“Eu amava trabalhar lá. Era a mais antiga da equipe, treinava as meninas novas que chegavam. Até que uma garota entrou e acabei falando de uma ex-namorada. Nada de mais, devo ter desabafado. Ela contou para minha chefe, que me chamou no final do expediente e disse que precisava me dispensar. Chegou a dizer que não sabia se me colocava no vestiário dos meninos ou das meninas. Eu era muito nova, só consegui ficar sem ação e chorar muito”, disse em entrevista ao Terra.
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No início, sua mãe não conseguia lidar bem com sua orientação sexual, por isso Aline só decidiu contar a ela o que havia acontecido anos depois, quando já estavam se entendendo melhor. Juntas, procuraram uma advogada e foram orientadas a desistir do caso. Sem provas, provavelmente seriam acusadas de calúnia.
“O engraçado é que eu já tomava ‘cuidado’ desde que entrei. Me trocava dentro da cabine do banheiro e só saía quando terminava de me arrumar. Para não dar motivo, sabe? Claro que eles estavam errados, eu também estava errada por me culpar, mas na hora você não pensa nessas coisas. Só carrega culpa. E segue em frente, calada”, afirmou.
Hoje, aos 24 anos, a jovem é formada em jornalismo e trabalha há três anos em uma editora onde já foi promovida três vezes. Sua relação com a mãe, sua atual “melhor amiga”, mudou completamente. E o tempo a fez superar o incidente e voltar a ter confiança nela mesma e nos colegas.
“Em todos os empregos pelos quais passei, nunca me abria com ninguém. Se estava namorando, dizia que era um garoto. Só me abri aqui na redação, porque a cabeça é outra. E mesmo assim, quando entrei, não sentia confiança. Tem três gays na equipe, mas eles são homens, eu tinha acabado de entrar para uma revista feminina, tinha medo de acharem que eu não serviria para isso. Tudo errado, não é?”, completou.
Pesquisas não são animadoras
Pesquisas recentes mostram que integrantes do grupo LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) têm mais dificuldades para conseguir empregos que cisgêneros (pessoa cuja identidade de gênero está em consonância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer) e heterossexuais. Além disso, quando conseguem entrar em uma empresa, têm grandes chances de passar por alguma situação de discriminação.
Um desses levantamentos foi promovido pela Elancers, companhia que atua na área de sistemas de recrutamento e seleção. Divulgado neste mês de maio, ele foi feito com recrutadores de 10 mil empresas brasileiras (sendo que 1,5 mil responderam e 8,5 mil não quiseram participar) e mostrou que 18% delas (uma em cada cinco) não contratariam um homossexual para determinados cargos.
“Fizemos três perguntas de múltipla-escolha: se não contrataria um homossexual de maneira alguma, se não contrataria para alguma função ou se contrataria; 7% optaram pela primeira e 11%, pela segunda. Como os questionamentos foram feitos aos recrutadores, e não aos representantes das empresas, é um retrato honesto. Todo mundo diz que não tem preconceito, mas a pesquisa mostra que não é bem assim”, explicou o presidente Cezar Tegon.
A consultoria de engajamento Santo Caos realizou um estudo complementar. Ela entrevistou 230 profissionais LGBTs de 14 Estados brasileiros, com idades entre 18 e 50 anos e provenientes de segmentos diversos, incluindo administração, comunicação, cinema, design, direito, educação, engenharia, finanças, marketing e TI. Os resultados, divulgados em abril, também assustam: 40% relataram já ter sofrido discriminação direta de algum chefe, colega ou cliente. E todos, sem exceção, disseram ter passado, pelo menos uma vez, por discriminação velada.
“A discriminação velada não é com demissão, xingamento ou agressão. Ela acontece quando alguém não consegue se abrir. Quando a pessoa se sente obrigada a esconder sua vida. Um gay que namora um homem chamado Marcelo, por exemplo, mas diz aos colegas que sua namorada se chama Marcela. Ele não se entrega e isso gera vários pontos negativos na colaboratividade, na construção do grupo e na produtividade”, declarou Jean Soldatelli, sócio-diretor da Santo Caos.
De acordo com ele, 47% dos entrevistados disseram revelar a sexualidade no ambiente de trabalho. Entre eles, 32% afirmaram assumir para os chefes e apenas 2% para os gestores de RH.
“Isso mostra como o ambiente não está preparado. Analisamos os manuais de condutas das principais empresas nacionais e de algumas multinacionais e notamos que a questão é tratada de forma muito genérica. Elas dizem somente que ‘apoiam a diversidade’. As que tentam se aprofundar dizem que ‘não permitem discriminação’. Mas, na prática, não falam abertamente, não capacitam os funcionários, não promovem treinamentos. Elas não percebem que têm um papel importante na sociedade”, argumentou.
O estudo incluiu ainda depoimentos de recrutadores que confessaram ter “dificuldade” em entrevistar candidatos LGBT e vendê-los a processos de empresas. Alguns disseram que já foram instruídos por seus chefes a não contratar LGBTs para vagas específicas – especialmente de cargos executivos, que representam a empresa em público.
Ficou noivo. Foi demitido
Um economista de 22 anos que preferiu não se identificar passou por situação semelhante à de Aline. Ele trabalhou por cerca de 1 ano em uma empresa do Rio de Janeiro até que foi demitido pelo chefe, que alegou que eles estavam passando por problemas financeiros e precisavam fazer cortes. Cerca de uma semana depois, porém, outro funcionário foi contratado para substitui-lo. Detalhe: a demissão aconteceu assim que ele ficou noivo do namorado.
O economista contou à reportagem que noivou no dia 12 de dezembro do ano passado. No dia 15, apareceu de aliança na festa de final de ano da empresa e dividiu a novidade com os colegas, que a receberam muito bem. Ele foi demitido quando voltou do recesso, no dia 2 de janeiro.
“O fato de eu ser assumido incomodava o gestor. Antes de eu assumir, eu recebia todos os memorandos, tirava folga quando precisasse. Depois, mudou. Eu não era mais informado das decisões, ele implicava com minhas folgas. Aí fui mandado embora quando ele viu que eu estava usando uma aliança dada por outro homem. Na cabeça louca dele, ‘essas coisas’ teriam que ficar entre quatro paredes”, relatou.
Diversidade, sim! O outro lado da história
O geógrafo Giovanni Zappile, de 27 anos, trabalha em uma empresa de mapeamentos para GPS que fica no World Trade Center, um dos prédios comerciais mais conhecidos de São Paulo. Cerca de 4 anos atrás, quando havia acabado de ser contratado, os chefes o convocaram para fazer um trabalho de campo em que deveria ir até outra cidade acompanhado de um colega. No dia em que viajariam, porém, o outro funcionário não apareceu.
“Depois que ele não apareceu, fui ‘cavando’ e descobri que o problema dele era comigo. Todos na empresa já sabiam da minha sexualidade, não sou de esconder nada. E eu não sei o porquê da recusa, mas independente do motivo a empresa ficou do lado do funcionário que quer trabalhar, independente da sexualidade. Poderia ser uma empresa que promovesse homofobia ou que não ligasse para isso, mas não. Infelizmente (ou felizmente) ele foi demitido e eu fiquei”, disse.
Desde então, a vida profissional de Giovanni tem sido bastante tranquila. Ele não passou por nenhum problema no ambiente de trabalho e se tornou amigo de diversos colegas, com quem costuma sair fora do horário de serviço – às vezes acompanhado de algum namorado.
“Acho absurdo que algumas empresas não aceitem LGBTs. Vou citar uma fala do RH da minha: empresa que se recusa a trabalhar com diversidade está perdendo. É como se julgasse a competência de alguém pela sexualidade. Acho ridículo”, concluiu, deixando, por fim, um bem-humorado recado. “Bicha, melhore! Vamos avaliar currículo, vamos avaliar competência”.
Transexual e empresária de sucesso
A empresária Márcia Rocha, de 50 anos, precisa se revirar para conseguir dividir o tempo entre todas as suas atribuições. Formada em Direito, ela possui quatro empresas (duas no ramo imobiliário, uma de estacionamento e uma de loteamentos), atua na comissão da diversidade sexual e combate à homofobia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e administra um site. Ela é transexual e não sofreu preconceito durante seu ingresso no mercado de trabalho. Apenas por que passou 40 anos de sua vida "dentro do armário".
"Na época em que comecei a trabalhar, estava 'no armário', então não tive problemas. Advoguei, montei minhas empresas. Estava com expressão de gênero masculina, era fácil. Iniciei minha transição há 10 anos e me assumi há 5. Se eu começasse hoje, não conseguiria nem um emprego de faxineira no mercado imobiliário. As pessoas não dão oportunidade a trans", contou.
Hoje, por ser a "patroa", como ela define, Márcia diz não passar por dificuldades. Alguns parceiros de negócio não conseguiram entender sua transição e até acharam que ela havia "enlouquecido", mas a maioria continuou trabalhando com suas empresas normalmente.
"Eu já era assim aos 14 anos, mas meu pai me 'convenceu' a parar. Só agora estou colocando para fora. O bom é que não dependo de ninguém, os outros que dependem de mim. Repito: por que tenho uma base. O preconceito é, sim, generalizado. É difícil lidar. Quando alguém aparece com imagem feminina e nome masculino é super complicado. Sem contar que, além de ficar no armário, estudei nas melhores escolas, fiz faculdade, morei fora do País. As trans acabam indo trabalhar na noite por que a família bota na rua", afirmou.
A empresária se considera uma exceção não por ser uma transexual bem sucedida no mercado, mas por ser uma transexual assumida bem sucedida no mercado. "Tem vários por aí como eu, eles me procuram, pedem ajuda, mas dizem que nunca vão se assumir. São médicos, engenheiros, advogados. Muita gente. Se você fica no armário consegue crescer. Mas não vai estar sendo você, vai fingir que é outra pessoa".
Oportunidade a quem só recebe “não”
Pensando nos transexuais e travestis que não tiveram a sua “sorte”, Márcia juntou um grupo de profissionais e há 3 anos criou o site TransEmpregos, que reúne vagas oferecidas por empresas que, de acordo com a descrição presente na página, querem “experimentar dar uma oportunidade a quem geralmente só recebe ‘não’”.
“Caso você seja empresário ou recrutador e sua empresa esteja preocupada em fazer justiça social ao mesmo tempo em que precisa de pessoas dinâmicas, pró-ativas e cheias de vontade de encontrar um emprego em que elas possam ser valorizadas como profissionais (independente da identidade de gênero), cadastre sua vaga em nosso site. Nós propomos que se observe essas pessoas pelo ponto de vista do quanto elas podem contribuir para uma empresa, com toda a força de vontade que possuem. Para superar as adversidades da vida, elas já demonstram estar à frente de muitos outros”, diz o site.
Para procurar uma vaga, basta acessar o site e escolher área, tipo de contratação (estágio, temporário, meio período ou integral) ou a localização no espaço de busca. Também é possível cadastrar um currículo para que as próprias empresas interessadas entrem em contato com o candidato.
Em São Paulo, a prefeitura também realiza o programa TransCidadania. Lançado pelo prefeito Fernando Haddad (PT) em janeiro deste ano e coordenado pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, ele determina o oferecimento de R$ 840 para travestis e transexuais concluírem ensino fundamental e médio por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA), acompanharem cursos profissionalizantes do Pronatec e realizarem estágios. Mais informações podem ser encontradas no Centro de Cidadania LGBT, localizado na Rua do Arouche, 23, 4º andar (telefone: 11 3106 8780).