Em um dia, a brasileira Maria Vasconcelos, de 35 anos, estava conhecendo as maravilhas da cidade inca de Machu Picchu e o lago Titicaca, no Peru. No outro, estava trancada num quarto de hotel com o marido e as duas filhas crianças, sem saber quando voltaria para casa, no Ceará.
Foi assim, de repente, que os planos da viagem dos sonhos da família se transformaram numa saga de 29 dias, 17 deles na estrada, para percorrer quase 6 mil quilômetros entre a cidade de Tacna, perto da fronteira com o Chile, e o litoral cearense.
"A gente acompanhava um pouco as notícias do coronavírus, mas não achava que ia ficar grave de repente. Foi quando me vi num país estranho, sem poder circular. A viagem virou um inferno e o pânico começava a tomar conta, mas eu me segurava por causa das crianças", lembra.
Maria, o marido, o belga Tommy Fovel, e as filhas Eloah, de 10 anos, e Yara, de 5, saíram da cidade de Caucaia, na Grande Fortaleza, no dia 15 de fevereiro. Naquela época, ainda não havia casos de covid-19 registrados na América Latina e só quatro mortes eram contabilizadas fora da China, onde a pandemia começou.
O plano da família, que vive entre Bélgica, Portugal e Brasil, era conhecer os países sul-americanos de carro, aproveitando os últimos meses no continente antes de voltar à Europa. Eles pretendiam passar pelo interior do Brasil e por Peru, Chile, Argentina e Uruguai até chegar a São Paulo, onde venderiam o carro e voltariam ao Ceará de avião. Nem a metade do caminho foi realizada.
No dia 15 de março, nove dias após o aparecimento do primeiro caso de covid-19 no país, o governo do Peru declarou uma das quarentenas mais rígidas na América Latina, proibindo a circulação de pessoas e fechando suas fronteiras. Três dias mais tarde, foi imposto um toque de recolher geral, entre as 18h e as 5h.
Trancados no Peru
No dia em que o governo peruano resolveu adotar as duras medidas contra o vírus, a família se encontrava na cidade de Puno, onde fazia passeios pelo lago Titicaca. Fazia apenas oito dias que os viajantes haviam cruzado a fronteira do Brasil para o Peru, pelo Acre. Naquele mesmo dia, a morte de um homem na Argentina era a primeira registrada na América do Sul. O Brasil tinha 19 casos.
"A gente estava em Machu Picchu e Cuzco dias antes e já víamos algumas pessoas de máscara. Mas nunca podíamos imaginar o que iria virar. Quando o Peru entrou em quarentena, decidimos tentar cruzar logo a fronteira com o Chile para sair, já que sabíamos que as estradas no Brasil estavam muito ruins. Mas não conseguimos nem chegar lá", relembra Maria.
Ela diz que as medidas no país andino foram tão drásticas que a família quase não conseguiu circular nas estradas para achar uma hospedagem. O carro teve que ser escoltado para fora da cidade de Puno pela polícia.
Já na rodovia em direção ao Chile, o Exército peruano só os deixou seguir viagem com uma condição: a família precisava parar em um hotel na cidade mais próxima e não sair mais de lá. Caso contrário, Maria e Tommy seriam detidos.
"Por sorte, eu tinha comprado máscaras e álcool em gel no Brasil. A partir dali, os soldados falaram que, se fôssemos pegos sem máscaras, iríamos ser levados à delegacia."
A hospedagem que encontraram foi na cidade de Tacna, perto da fronteira com o Chile. A família era a única hospedada ali e dependia de sopa de galinha e de outras comidas vendidas pelos funcionários para se alimentar.
Os quatro tiveram que permanecer no quarto de hotel por nove dias monitorando a situação junto à embaixada brasileira em Lima.
Nos primeiros dias de quarentena, uma das filhas de Maria teve uma crise rotineira de amigdalite, suficiente para que os funcionários do hotel parassem de fornecer-lhes qualquer tipo de serviço. "Pararam até de limpar o quarto", diz.
Foi só quando a Embaixada do Brasil começou a tramitar junto ao governo do Peru os pedidos de autorização para o deslocamento terrestre de cidadãos brasileiros que a família pôde começar a planejar a volta. Como não havia a certeza de voos partindo de Lima, a família resolveu encarar o caminho terrestre.
No documento que carregavam estava o roteiro de todas as cidades pelas quais iriam passar, sem a possibilidade de modificação.
As diferenças no combate à covid-19
Da saída do hotel em Tacna, em 26 de março, até a cidade de Puerto Maldonado, próxima à fronteira com o Acre, a família gastou três dias, sempre sem saber como iria comer ou onde iria dormir no dia seguinte, já que hotéis resistiam em receber hóspedes.
"Parecia que estavam vendo o diabo e fechavam a porta na nossa cara. A gente pensou que ia dormir no carro, no acostamento, numa estrada deserta, numa temperatura de 7 graus. Mas, no fim sempre conseguimos achar um lugar", lembra Maria.
Numa noite, sem restaurantes ou mercado aberto, a família jantou cereal, pão e maçã que havia guardado.
Nas contas de Maria, o carro foi parado mais de trinta vezes pelo Exército peruano, para conferência da documentação. "Era muito agressiva a abordagem, dava muito medo. Nas ruas, (havia) muitos peruanos que trabalhavam como ambulantes passando fome, pedindo dinheiro. (Era) Muito triste a situação", relata.
Ao entrar no Brasil, em 29 de março, a família já percebeu a diferença no nível da quarentena e de preocupação das pessoas em relação à pandemia. Após perguntas e medição de temperatura no posto aduaneiro em Assis Brasil, a viagem pelo país continuou sem maiores problemas.
"Percebi que pouca gente usava máscaras, (havia) muita gente bebendo nas ruas, nos forrós em beira de estrada. Isso me chocou ainda mais porque estava vindo de uma realidade completamente fechada. Eram dois países vizinhos, mas dois mundos completamente diferentes", conta. No balanço de quinta-feira (07/05), o Brasil registrava mais de 135 mil casos e 9.146 mortes. Já o Peru tinha 58 mil casos e 1.627 mortos.
A família percorreu os Estados de Acre, Rondônia (onde pararam por dois dias para descansar com as filhas e lavar roupas), Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí e Ceará. "A gente que ficava usando máscara e evitando contato com as pessoas, parecia que éramos os estranhos", lembra Maria.
Os dias mais complicados da viagem foram na rodovia Transamazônica, rota escolhida por indicação dos aplicativos de geolocalização. Foram dois pneus perdidos e muita solidariedade de caminhoneiros para sair dos atoleiros. "A gente estava muito feliz por estar no nosso país, mas em pânico pela estrada. Não havia asfalto, e não conseguíamos passar dos 30 km/h."
Apesar dos problemas, Maria conta que se mantinha calma porque as filhas pareciam estar aproveitando até os perrengues do caminho. A chegada na Grande Fortaleza foi na madrugada do dia 12 de abril. "Elas falaram que só não gostaram de uma coisa: o coronavírus."