É absurdo ver vitória de Trump como retrocesso, diz Mangabeira Unger

14 nov 2016 - 14h11
(atualizado às 14h33)
Brasil também tem maioria trabalhadora "abandonada", diz Mangabeira Unger
Brasil também tem maioria trabalhadora "abandonada", diz Mangabeira Unger
Foto: Agência Brasil

Os brasileiros não têm por que achar a eleição de Donald Trump "incompreensível" - e considerá-la um retrocesso é "absurdo".

Essas opiniões, proferidas pelo filósofo e teórico Roberto Mangabeira Unger, fogem do tom catastrófico com frequência usado para discutir o triunfo do republicano, eleito presidente dos EUA na semana passada.

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Em entrevista à BBC Brasil, Unger, que é professor da Universidade Harvard e foi ministro de Lula e Dilma, disse que a surpresa brasileira é injustificada, pois vivemos um vazio na política semelhante ao dos Estados Unidos. Além disso, também teríamos uma maioria trabalhadora abandonada pela esquerda.

"O Brasil é o país do mundo mais parecido com os Estados Unidos. A tragédia dos dois é negar instrumentos e oportunidades à maioria, que é cheia de energia, mas sem condições de transformá-la em ação fecunda."

Apesar dos paralelos, o professor, que deu aula para o atual presidente americano, Barack Obama, não faz previsões sobre o surgimento de um "aventureiro" como Donald Trump na disputa brasileira de 2018.

Ele apoia uma possível candidatura do ex-ministro Ciro Gomes (PDT) que, espera, seja um outro tipo de outsider - um rebelde contrário à linha dominante que traga um novo rumo para o país.

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Para Unger, após a derrocada do nacional-consumismo dos governos petistas, o Brasil está sem um projeto.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil - Grande parte da imprensa internacional e dos intelectuais descreve a vitória de Trump como um retrocesso. O senhor concorda?

Roberto Mangabeira Unger - Isso é absurdo. Muito disso vem da Europa, que está agora afundada em um completo retrocesso. Eles, que abandonaram qualquer tentativa de construir (uma opção viável), estão chamando isso de retrocesso?

BBC Brasil - Se não é retrocesso, como encarar a vitória do republicano?

Mangabeira - Em resumo, a eleição de Trump é a rebeldia da maioria trabalhadora branca do país contra seu abandono. Aí a crítica é: Trump não é uma resposta adequada.

Mas em política tudo tem a ver com as alternativas. Então, o que é melhor? Continuar com essa ortodoxia conservadora do Partido Democrata ou virar a mesa? Essas são as alternativas reais da política real.

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A partir dessa reviravolta em Washington, os americanos devem buscar uma resposta mais adequada e séria para o problema que a eleição de Trump revela.

Para Mangabeira, eleição de Trump reflete rebeldia da maioria trabalhadora branca do país contra seu abandono
Foto: Getty Images

BBC Brasil - Que elementos explicam sua eleição? Que problemas ela revela?

Mangabeira - A base essencial da eleição de Trump foi o grande vazio criado na política americana, há meio século, pelo abandono dos interesses da maioria trabalhadora branca do país.

O Partido Democrata substituiu o projeto do New Deal (série de programas implementados entre 1933 e 1937 pelo democrata Franklin Roosevelt para reformar a economia americana) por concessões aos interesses das minorias e pela representação da visão de mundo da classe que mora nos subúrbios ricos.

Diante disso, o Partido Republicano construiu uma fórmula exitosa. Ele fez concessões materiais para a classe endinheirada, como baixar os impostos, e concessões às preocupações morais da maioria pobre em temas como, por exemplo, o aborto.

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Portanto, criou-se um grande vazio na política americana, que pedia um outsider.

BBC Brasil - Apoiadores de Trump argumentam que muitos americanos não se sentem representados pelos partidos Democrata e Republicano. O resultado também tem a ver com a falta de representatividade da política tradicional?

Mangabeira - Não é questão de se sentir ou não se sentir representado, é a verdade dos fatos.

O projeto que estava no poder não atendia aos interesses da maioria trabalhadora e lhes dava como compensação que pelo menos ela não seria ofendida em suas convicções morais e religiosas.

Era algo como "vamos abandoná-los, mas evitaremos que suas crenças sejam excessivamente ofendidas".

Em algum momento, isso deixou de ser suficiente e criou a oportunidade que um aventureiro aproveitou. Se não fosse Trump, seria outro.

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Havia, e há, uma base frágil na política americana, porque a maioria está abandonada em seus interesses. Homenagear negros, mulheres e latinos é muito bom, mas não substitui o problema essencial, que é a falta de oportunidades e capacitações para a maioria do país.

BBC Brasil - Em meio a uma crise política e econômica, esse vazio também está presente no Brasil?

Mangabeira - É uma situação análoga à do Brasil. Os brasileiros não têm razão para considerar esse acontecimento tão absurdo e incompreensível. O Brasil é o país do mundo mais parecido com os Estados Unidos.

Como eles, nosso atributo mais importante é a vitalidade, hoje encarnada numa pequena burguesia empreendedora e numa massa de trabalhadores pobres que vêm atrás dela.

A tragédia dos dois (países) é negar oportunidades à maioria, que é cheia de energia, mas sem condições de transformá-la em ação fecunda.

Na nossa realidade, o formato desse enigma foi ter confiado num projeto baseado na massificação do consumo e na produção e exportação de commodities. Enquanto a mineração e a pecuária pagavam as contas, funcionou. Quando deixaram de pagar, ruiu.

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Na discussão brasileira, os dois substitutos são as agendas (anticorrupção) da Polícia Federal e do conserto das contas públicas. É isso que serve de substituto para um projeto nacional que não existe. Também há um grande vazio na política brasileira, embora com outra feição e origens. Mas o resultado é semelhante.

Mangabeira diz que se considera um homem de esquerda, mas, se fosse inglês, teria votado pelo Brexit
Foto: Agência Brasil

BBC Brasil - O Brasil pode esperar um "aventureiro" como Trump nas eleições de 2018?

Mangabeira - Vamos ter dois projetos (de candidatura). Um (situacionista), que diz que é só disciplinar o gasto público, ter a gestão empresarial do Estado, mas que não vai resolver o problema.

Temos que ter outro projeto, que proponha um novo rumo para o país. Apoio a candidatura de Ciro Gomes e vou trabalhar para desenvolver o conteúdo desse projeto alternativo.

BBC Brasil - Que tipo de projeto precisaríamos ter?

Mangabeira - Não pode ser a continuação do nacional-consumismo. Tem que ser um projeto focado nos interesses da produção e do trabalho.

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Temos que ter um projeto de qualificação da nossa produção e dos trabalhadores na agricultura, serviços e indústria. Isso exige uma relação colaborativa entre governo e empresas, sobretudo as pequenas e médias.

BBC Brasil - Se, em 2018, uma candidatura oferecer esse projeto, podemos descartar um outsider ?

Mangabeira - Outsider pode significar um aventureiro, que busca se aproveitar da circunstância. Mas também pode significar alguém que é um rebelde contra a linha dominante.

Nesse segundo sentido, quero que a candidatura de Ciro Gomes seja a de um outsider.

Quanto mais tivermos outsiders no segundo sentido, menor a chance de termos outsiders no primeiro. O outsider aventureiro surge e prospera na medida em que não existe o rebelde.

Se você me pedir para fazer apostas se vai haver um outsider ruim ou não, não me interesso. Fazer previsões é um pecado.

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BBC Brasil - Se Brasil e Estados Unidos estão em situações análogas, que tipo de diálogo pode haver entre eles?

Mangabeira - Especificamente na relação com os Estados Unidos, temos uma grande oportunidade agora.

Hoje temos uma dependência completa dos Estados Unidos em matéria de defesa e de segurança. O Brasil é objetivamente um protetorado dos americanos.

O grupo dominante no Partido Democrata aderia à doutrina do imperialismo liberal, tinha uma visão fixa da América Latina, na qual o nosso papel era ser uma linha auxiliar dos Estados Unidos em tudo, inclusive na defesa.

Já Trump volta-se para os problemas internos. Com relação à América Latina, fora a problemática migratória, ele não tem posição fixa. Portanto, há um grande espaço.

Há um tensionamento com o México e temos interesse em vê-lo superado. Mas, ao analisar com frieza, devemos compreender que a tendência será buscar compensação em outro lugar da América Latina. E o lugar natural é o Brasil.

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BBC Brasil - Após a eleição americana, traçam-se paralelos entre a vitória de Trump, o Brexit e ascensão de partidos anti-imigração na Europa, como se houvesse uma reação conservadora e xenófoba a nível global. O senhor concorda com essa análise?

Mangabeira - Estão confundindo duas coisas. Existe uma reação contra os imigrantes na Europa, é verdade. E existe porque a União Europeia, de forma análoga ao que aconteceu nos Estados Unidos, tomou uma direção contrária aos interesses da maioria trabalhadora.

Eu não confundiria isso com Brexit. Se fosse inglês, teria votado pelo Brexit. E me considero um homem de esquerda.

Mangabeira Unger já deu aulas para Barack Obama em Harvard, além de ter sido ministro de Dilma e Lula
Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

BBC Brasil - Por que as eleições americanas e o Brexit não dialogam?

Mangabeira - Pode haver uma intersecção, mas são coisas diferentes. Na União Europeia, as regras determinantes da ordem econômica e social são cada vez mais concentradas no centro. No centro formal, que é Bruxelas, e no centro real, que é Berlim. E o poder de definir os direitos sociais dos cidadãos é delegado às autoridades nacionais.

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Deveria ser o oposto. A UE deveria ser assegurar mínimos sociais e educacionais em toda a Europa, e permitir que países como Portugal ou Grécia pudessem desenvolver novas estratégias econômicas.

Do jeito como é hoje, a Europa virou uma camisa de força. É natural que se rebelem os países, inclusive a Inglaterra. O Brexit não precisa ser compreendido apenas do ponto de vista de uma reação nativista. Ele tem outra justificativa.

Já o nativismo dentro da Europa prospera porque a social-democracia conservadora abandonou as maiorias de seus respectivos países, confundindo a representação da maioria com a representação daquilo que os marxistas chamam de aristocracia operária, as pequenas minorias organizadas. Isso sim é semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos.

BBC Brasil - Também é parecido ao que acontece no Brasil?

Mangabeira - Temos no Brasil 40% da população brasileira na economia informal. Na economia formal, uma parte crescente dos trabalhadores está em situação de trabalho precarizado. Se você somar os informais e os precarizados, é a maioria da força de trabalho do país. Quem os representa? Qual é o projeto para organizar, proteger e qualificar essa maioria?

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A esquerda tradicional não faz isso. Ela faz parte do corporativismo das minorias organizadas, que comandam o país.

Se você me disser que o outsider é aquele que se rebela contra esse corporativismo, quero esse outsider.

BBC Brasil - Podemos dizer, então, que nos EUA, na Europa e no Brasil as maiorias trabalhadoras se sentem abandonadas pela esquerda?

Mangabeira - Não há esquerda na Europa. O que há é a social-democracia conservadora, que abandonou qualquer tentativa de reinventar o Estado ou a economia, e se satisfaz em atenuar as desigualdades com programas sociais.

Não quero ver o Brasil repetir o erro trágico da esquerda europeia, de demonizar a pequena burguesia que, em seguida, virou o sustentáculo dos movimentos de direita. Isso não aconteceu agora, mas ao longo do século 20.

Há mais pequenos burgueses do que há proletários industriais. E a população tem aspirações que começam por serem burguesas: um pequeno negócio, uma casa, uma modesta prosperidade. Temos que vir ao encontro dessas aspirações e oferecer opções que possam torná-las mais generosas.

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