O líder da Igreja Universal, Edir Macedo, perdeu uma ação que tinha proposto contra donos de um sebo no interior do Rio de Janeiro por causa de uma placa com uma piada que tinha sido colocada na porta.
Na vitrine de seu sebo Gregas e Troianas, em uma discreta rua em Resende (RJ), o casal Luciano Gonçalves e Mariângela Ribeiro havia colocado um banner com a intenção de "ser algo divertido".
"Se você é racista, machista, homofóbico, se não acha que as 'obras' de Bolsonaro, Malafaia e Edir Macedo envergonham a humanidade... Entre! Esta é uma casa de inteligência e cultura. Nós podemos ajudar você", dizia o cartaz.
Ao ter conhecimento do banner, Edir Macedo - dono de um dos maiores grupos de comunicação e líder de uma das maiores igrejas evangélicas do Brasil - entrou com um processo por danos morais contra os donos do comércio local com o argumento de que a placa era "intolerância religiosa".
Luciano Gonçalves diz que em nenhum momento citou religião no banner e que as "obras" citadas se referiam à atuação de Edir Macedo em geral. Além disso, segundo o comerciante, não havia discriminação porque as pessoas não eram proibidas de entrar - eram na verdade convidadas a frequentar o local e ter acesso a diferentes pontos de vista.
"Era uma crítica à obra, não fazia nenhuma ofensa pessoal, não citava religião", diz Luciano, que vende em seu sebo diversos livros religiosos, incluindo de líderes evangélicos.
No processo, Edir Macedo pedia uma indenização de R$ 25 mil e a colocação de uma placa "de retratação" com a mesma visibilidade da original - ambos os pedidos foram negados pela Justiça.
Segundo a juíza do caso, se Jair Bolsonaro, Silas Malafaia e Edir Macedo "notoriamente veiculam em suas exposições para a mídia o que pensam e sentem sobre os temas relacionados no banner", outras pessoas também precisam ter o direito de se manifestar.
"O fato de livremente poderem manifestar seu pensamento, suas ideias e crenças permite que os demais membros da sociedade também as manifestem, na mesma proporção que o fazem", diz a juíza Silvia Regina Portes Criscuolo na sentença, de outubro deste ano.
Além disso, entende a magistrada, "a proteção à intimidade de pessoas públicas deve ser relativizada em razão da ponderação de interesses, pois o interesse público, em determinadas situações, deve preponderar". Ela lembra que este é também o entendimento de tribunais superiores sobre o assunto e que a liberdade de expressão é um valor protegido pela Constituição.
Após a publicação da reportagem, a assessoria de Edir Macedo - que inicialmente não havia comentado o caso - informou que seus advogados vão recorrer da decisão de primeira instância, que, segundo eles, teria "ignorado completamente as provas apresentadas no processo". "Temos a certeza de que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro corrigirá a grave injustiça que foi cometida", disse a assessoria em nota.
"Eu estava muito tranquilo (antes da decisão de primeira instância), porque não há base legal nenhuma para o pedido (do pastor)", argumenta Luciano.
"Na realidade o que mais me deixou feliz foi poder avisar a população, nossos amigos e clientes que acompanharam o processo, que torceram pela gente. Está todo mundo feliz, todo mundo comemorando", afirma Luciano.
Se a decisão for mantida ou se Macedo não recorrer, o bispo terá que pagar os custos do processo.
"Felizmente não gastamos nada, tivemos vários advogados se oferecendo para nos defender pro-bono (sem custos)", conta Luciano.
Placa viralizou durante as eleições
Colocado em 2017, o banner ficou um longo tempo na frente do sebo, e uma foto dele começou a circular na internet. Até que, nas eleições de 2018, quando Bolsonaro venceu a corrida à Presidência, a foto viralizou e foi compartilhada milhares de vezes.
E acabou chegando até Edir Macedo - ou, pelo menos, a seus advogados, que mandaram uma notificação extrajudicial pedindo para que Mariângela retirasse o banner.
O casal resolveu acatar o pedido e retirou a faixa da frente da loja, mesmo acreditando que afixar aquele banner era algo que estava dentro do seu direito à liberdade de expressão.
"Eu nunca tinha tido nenhum tipo de conflito na Justiça. Então, eu fiquei bastante assustada com a notificação, mesmo sendo extrajudicial (ou seja, sendo apenas um 'pedido', sem envolvimento da Justiça)", contou Mariângela à BBC News Brasil em 2019.
A retirada do banner, no entanto, não aplacou o incômodo do bispo, que entrou com uma ação de danos morais contra Mariângela - quem, juridicamente, é a dona do espaço.
Questionada sobre o caso em 2019, a assessoria de imprensa de Edir Macedo afirmou que um estabelecimento que comercializa livros "supõe-se que seja administrado por pessoas esclarecidas, que sabem que não há mais espaço no Brasil para o preconceito e o ódio religioso".
"Trata-se de algo que não pode ser tolerado pela sociedade, nem por parte de grandes redes de lojas, tampouco em comerciantes locais", afirmou a assessoria em nota.
Para os advogados do casal, Apolo Luis Hager e Renata Gonçalves Santos, não houve dano moral causado a Macedo pela placa, que continha uma "opinião dos proprietários sobre a obra de Edir Macedo".
"Não vejo nada nos autos que ampare a pretensão (de Macedo), valendo observar que se trata de um mero cartaz afixado na entrada de uma pequena livraria da cidade de Resende, no interior do Estado do Rio de Janeiro, de abrangência restrita e de conteúdo não ofensivo, mas de mera propaganda e convite à uma literatura com visão diversa das dos personagens citados", afirmou a juíza na decisão favorável ao casal, em outubro de 2021.
Ela diz também que, mesmo se considerasse que o casal expressou uma opinião sobre Macedo e não apenas sobre sua obra, "na ponderação entre a liberdade de expressão e o direito à imagem, prevalece a liberdade da ré", diz a sentença.
"É patente que a imagem fixada no ideário popular é que o autor (da ação) defende posições polêmicas quanto aos temas mencionados no banner, de modo que, ao emitir suas ideias, há de respeitar o espaço para que outros manifestem-se sobre tais ideias", afirma a juíza.
Além disso, diz ela na sentença, "a ré se expressou nos limites do admissível, sem atingir a honra ou imagem do autor".
Ataques
Luciano e Mariângela se declaram "de esquerda e feministas", decoraram a loja com uma foto da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), assassinada em 2018, e criaram uma seção de livros sobre os "anos de resistência à covarde ditadura de 64".
Luciano diz que a loja já havia sido atacada anteriormente por causa da posição política do casal. "Um professor de artes marciais, discípulo do [presidente Jair] Bolsonaro, entrou aqui derrubando prateleira, me ameaçando", contou à BBC em 2019.
Luciano diz que o sebo continua "firme e forte", apesar das dificuldades da pandemia.
"Não somos um empreendimento comercial que visa lucro, então só preciso conseguir me manter", afirma ele. "O sebo está maior, com mais acervo, e mais organizado".
Sabia que a BBC está também no Telegram? Inscreva-se no canal.