"A gente tinha ela como uma mãezona. Ela sempre estava lá. Quando a coisa apertava, a gente ligava para a Marielle. E agora, a gente vai ligar para quem?"
Professor de geografia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias (Feuduc) e morador do Complexo da Maré, Lourenço Cezar dirige a pergunta aos fiéis, familiares e amigos presentes numa missa para homenagear Marielle Franco, realizada no fim da tarde de domingo na favela Parque União.
A cerimônia foi realizada após a marcha que levou cerca de duas mil pessoas para o conjunto de favelas na zona norte do Rio. Moradores, políticos, artistas, ativistas e pessoas de outras partes da cidade participaram, gritando palavras de ordem com críticas ao Estado, à Polícia Militar e à intervenção federal na segurança pública, e exigindo a elucidação do assassinato da vereadora do PSOL e do motorista Anderson Gomes, saindo de um evento no Estácio, na região central do Rio, na noite da quarta-feira passada.
A comoção com o crime, que reverberou pelo Brasil e por outras cidades do mundo, tem o seu centro nervoso na Maré, onde Marielle cresceu. O complexo de favelas tem cerca de 140 mil moradores, e um dos piores índices de desenvolvimento humano no Rio.
Marielle foi para a universidade, entrou na política e "conseguiu sair" da favela, mas não deixou a favela para trás em sua atuação política, elegendo-se a primeira vereadora da comunidade e virando, para outros moradores, um exemplo de onde se poderia chegar.
"A morte dela é também a morte de um símbolo que a gente projetava", lamenta Cezar, em conversa com a BBC Brasil. "A gente nunca imaginou que fora da favela, como vereadora, ela seria um alvo. O fato de a terem escolhido foi uma pancada."
"A ideia que passa é: 'Vocês não podem sair da favela. Vocês ousaram demais. Vocês se excederam. Volta para o lugar de vocês.' É frustrante demais."
Cezar estudou com Marielle no pré-vestibular comunitário da Maré e depois foi seu contemporâneo ao longo da graduação na PUC-Rio, ele cursando Geografia, ela Ciências Sociais. Para ele, a amiga foi uma pioneira, e o fato de ter sido eleita vereadora incentivava a comunidade a ocupar outros espaços.
"Depois que ela conseguiu, a gente dizia: 'gente, temos que chegar ali onde a Marielle está. Dá para chegar. Ela chegou'", descreve ele.
'Mulher Maravilha'
Na marcha organizada por ONGs e movimentos sociais da Maré, as palavras "Marielle gigante", em letras garrafais, sobressaíam de longe, numa faixa que se estendia pelas duas faixas da Avenida Brasil e parecia flutuar sobre o protesto, carregada por manifestantes andando sobre pernas de pau.
Enquanto o protesto passava, na calçada um grafiteiro concluía um mural com o rosto sorridente de Marielle, retratado em um muro voltado para a Avenida Brasil com a tiara e as roupas da Mulher Maravilha.
Ao longo do percurso, que fechou uma faixa da avenida por quase duas horas, a locutora no carro de som reiterava as palavras escritas em outra faixa, pendurada em uma das passarelas da via: "as nossas vidas importam." A repetição frequente indicava que frase não era tão redundante quanto deveria ser.
"Tudo que a gente quer é ter um espaço na sociedade. É ter acesso a educação de qualidade, a saúde. Quando finalmente encontramos alguém que nos representa, é muito triste ver essa pessoa calada", dizia a moradora Luciana Bezerra, educadora da rede municipal. "Ela era um ícone para nós. Era a nossa voz, lutando pelo povo daqui, que é tão sofrido."
Luciana trabalha com educação infantil na Maré, na rede de ensino municipal. "Sei como é difícil estar na sala de aula e de repente ter que gritar para aquelas crianças tão pequenas se abaixarem, porque está tendo conflito. Isso é o que a gente vive, e é tudo que a gente não quer."
"Ver uma mulher negra, pobre, favelada ter chegado onde chegou para nós foi uma inspiração. Representa muito", diz Luciana.
Seu filho, William do Nascimento, de 15 anos, diz que a morte de Marielle tem sido um tema em debates na escola e nas conversas com amigos.
"Ela era um olhar de esperança que tínhamos refletido em sua imagem. Ela olhava para a favela e buscava melhorias na área de educação, que é tão prejudicada aqui. Era uma inspiração para o favelado. A prova de que dá para chegarmos à universidade, dá para fazermos mestrado."
Mais votos na zona sul que na favela
Em 2016, Marielle foi a quinta vereadora mais votada no Rio, com 46 mil votos no que era a sua primeira candidatura. Os bairros de Laranjeiras e Cosme Velho, tradicionais redutos da esquerda carioca, lhe deram a maior fatia de votos, um total de 2.237, ou 8,2% dos votos para vereador.
Já na zona eleitoral composta pela Maré e pelos bairros vizinhos de Ramos e de Bonsucesso, Marielle teve 1.688 votos.
Cezar participou ativamente da campanha da amiga na comunidade, e diz que, embora o número os votos conquistados na Maré tenha sido menor, o resultado foi considerado expressivo para uma candidata de esquerda na favela.
"O conservadorismo é muito mais forte nas favelas do que fora. Isso tem muito a ver com a influência das igrejas. Imagina, a Marielle, bissexual, a favor do aborto. Isso afasta muitos moradores."
Assim como em outras favelas do Rio, o corpo a corpo de campanhas na Maré é dificultado pelo controle de grupos armados, que restringem a entrada de políticos, delimitam territórios e chegam a cobrar para permitir campanhas.
No caso de Marielle, Cezar afirma que a campanha circulou livremente, mas era "campanha de pobre". "Não era campanha de políticos tradicionais, que distribuem bolas, dão festa, fazem eventos", diz.
"Não podemos ser levianos, mas a população aqui nunca recebe nada dos políticos. E aí muitos que estão à margem se sentem abraçadas quando recebem alguma coisa de alguém."
'Tiraram um pedaço da gente'
Na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Marielle ajudava famílias que haviam sido vítimas de violência. Mas não era uma atuação que alcançasse um número grande de moradores, ao contrário de ações sociais promovidas por candidatos com mais recursos.
Assim, Cezar diz que sua campanha dentro da favela "foi muito na base do boca a boca", com simpatizantes buscando votos para a vereadora.
Foi o que fez Tereza Lima Santos, mais conhecida como Dona Terezinha, que cuida da cantina do Santuário São Paulo Apóstolo e Nossa Senhora da Paz, onde a missa para Marielle foi realizada, e buscou convencer o resto da família e conhecidos a votar na vereadora.
"Todo mundo aqui fez campanha para ela", diz, apontando para as outras funcionárias da cantina, atrás do balcão onde se vendia bolo de fubá, de chocolate, de mandioca.
"A gente a via como uma guerreira. Ela lutou para sair da pobreza e para estudar com os recursos que tinha. Era uma pessoa honesta, íntegra. Era o que está faltando na nossa política", diz.
"Agora é como se tivessem tirado um pedaço da gente. Tiraram a vida de alguém que estava lutando pelos mais necessitados."
'Sua morte tem que ser um empurrão'
Na missa para Marielle, na quadra aberta sob um toldo com cadeiras de plástico e alumínio, Joelma Souza era uma das muitas presentes vestindo a camiseta feita para o dia de homenagens à vereadora, com o rosto de uma mulher negra de perfil com uma faixa colorida no cabelo afro, e a frase que era um lema de vida de Marielle, retirada da filosofia africana ubuntu - "Eu sou porque nós somos".
Estudante de Serviço Social na UFRJ, Joelma conheceu Marielle na época do pré-vestibular comunitário e diz que sua morte deixa um vácuo na comunidade e representatividade que tinha em Marielle.
"Ela conseguiu ocupar um espaço privilegiado, e foi morta por isso. Conseguiu dar voz ao morador nesses espaços. Foi lá e deu o nosso recado. Agora, temos que continuar lutando para ocupar esses espaços", afirma.
O amigo Lourenço Cezar diz que Marielle era agitada, um "furacão", não conhecia a palavra "calma".
"O que para muitos era uma pancada, para ela era um empurrão. E é isso que temos que fazer agora. Sua morte tem que ser um empurrão. Não pode ser motivo para a gente parar."
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