Após quase dez anos no cargo, o secretário de segurança do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, anunciou nesta terça-feira que deixará o posto nos próximos dias.
O anúncio da saída ocorre em um momento crítico para o Rio, que vive a retomada de tiroteios e uma crescente crise no projeto das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) - o gaúcho comandava a segurança desde o início da gestão do ex-governador Sérgio Cabral (PMDB), em 2007.
A BBC Brasil ouviu especialistas para entender os impactos de sua gestão e as perspectivas para a capital fluminense - para eles, sua trajetória foi permeada por pontos positivos e negativos.
Entre os acertos, estariam o projeto das UPPs, os programas de metas para policiais e a redução dos índices de homicídios e autos de resistência (mortes decorrentes de intervenção policial).
"Ele pegou taxas de homicídio e de mortes decorrentes do confronto com a polícia muito maiores. Esse é um aspecto positivo de ter uma política prolongada, um mesmo secretário por dez anos", afirma a professora Silvia Ramos, que coordena o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESeC).
Segundo o ISP (Instituto de Segurança Pública), que compila as estatísticas oficiais no Estado, os autos de resistência caíram de 1.330, em 2007, para 645 em 2015 - 2012 registrou um número ainda mais baixo: 419. Já a taxa de homicídios dolosos, que era de 39,6 por 100 mil habitantes em 2007, foi reduzida para 25,4 no ano passado.
No grupo dos equívocos, os especialistas citam a expansão "desenfreada" das UPPs, o que teria colocado o projeto em risco.
"Na reeleição de Sérgio Cabral, o secretário concordou em dobrar o número de UPPs, de 20 para 40. Em entrevistas ele aponta que ficou sem infraestrutura, sem número de policiais suficientes, e que foi o começo da crise no programa, mas esquece de dizer que ele também contribuiu para essa situação aceitando a promessa de campanha de Cabral", opina Paulo Storani, mestre em Antropologia pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e capitão do Bope (tropa de elite da polícia militar do Rio) entre 1994 e 1999.
Ramos pondera que as UPPs, embora estejam em crise, foram um avanço, e que seria um "perigoso equívoco" interromper ou enfraquecer ainda mais o programa, apesar da crise financeira no Estado.
Os analistas criticam ainda a falta de uma reforma da Polícia Militar e de reavaliação das UPPs, o retorno da lógica de guerra nas favelas e a escalada do número de assaltos - foram 7.487 ocorrências em maio, a maior cifra para o período em 26 anos.
Para a coordenadora do CESeC, Beltrame poderia ter feito mais para reformar a PM, que ainda "é muito corrupta, violenta e reativa".
Sobre as perspectivas para o futuro ocupante do cargo, os especialistas apontam a necessidade de dinamismo e de novas medidas, a importância da permanência das UPPs e o risco de mais problemas caso seja retomada a lógica de anos atrás - ou seja, de confronto total ao tráfico. "Isso tornaria as favelas novamente locais de guerra e de muitas mortes, muito mais do que já são hoje", diz a professora.
A BBC Brasil elencou os dez principais momentos de Beltrame no cargo - confira:
1. Assume o posto (2007)
Gaúcho de Santa Maria, formado em Direito e agente da Polícia Federal desde 1981, Beltrame assumiu o cargo no dia 1º de janeiro de 2007, com o início do primeiro governo de Sérgio Cabral (PMDB), em meio a um cenário de altas taxas de homicídio, disputas de território entre facções rivais do tráfico e cenas de violência que aterrorizavam moradores do Rio.
2. UPPs (2008)
O secretário foi um dos idealizadores do programa de pacificação, lançado em dezembro de 2008 na favela Dona Marta, em Botafogo, na Zona Sul. Em 2010, totalizava 19 unidades, e até 2012 experimentou grande sucesso.
Apesar de problemas na interação entre moradores de favela e policiais, o programa era avaliado por analistas como a melhor iniciativa de segurança pública em décadas.
3. Ocupação do Complexo do Alemão (2010)
A tomada do complexo de favelas na Zona Norte do Rio foi um dos maiores desafios de Beltrame - quartel-general do Comando Vermelho, o território era extremamente complexo, mas a operação foi considerada um sucesso e a UPP foi instalada.
Hoje, a região vive um de seus piores momentos com o retorno de tiroteios, retomada de poder pelo tráfico e operações truculentas da polícia.
4. Reeleição de Sérgio Cabral (2010)
Durante a campanha, o então governador prometeu a expansão das UPPs de 20 para 40 unidades, com a concordância de Beltrame.
Com o passar dos anos, o programa foi mergulhando em crise devido à falta de infraestrutura (muitas bases operavam em containers), número insuficiente de policiais e incapacidade de levar às favelas os serviços, programas sociais e atividades prometidas.
5. Caso Amarildo (2013)
Em julho de 2013, o pedreiro Amarildo de Souza desapareceu após ser levado à UPP da Rocinha para interrogatórios. O caso gerou ampla repercussão e levou à condenação, no início deste ano, de 12 policiais por tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual.
Para analistas, trata-se de um ponto que marcou o início do declínio das UPPs.
6. Copa do Mundo (2014)
Diante das dúvidas sobre a segurança do Rio durante a Copa, Beltrame anunciou "a maior operação de segurança que o Rio já viu". Com o sucesso do evento, que ocorreu sem maiores transtornos, foi transformado em um dos grandes gestores da operação.
Próximas ao aeroporto internacional do Galeão, as favelas do Complexo da Maré foram ocupadas pelo Exército por causa da impossibilidade de o Estado cumprir a promessa de criar UPPs na região até o megaevento.
7. Chacina de Costa Barros (2015)
A morte de cinco jovens estudantes na região mais perigosa do Rio - o carro onde estavam foi alvo de quase cem tiros disparados por policiais - tornou-se um símbolo dos diversos casos de abuso policial, tortura, alterações de cenas de crime e de vídeos que mostravam abusos em diferentes favelas.
Entre as ocorrências, esteve ainda a morte de Claudia da Silva Ferreira, arrastada por 350 metros por um carro da PM no bairro de Madureira, em 2014.
8. Crise financeira e UPP da Maré (2016)
Diante da crise financeira no Estado, Beltrame teve que anunciar cortes de R$ 2 bilhões (35%) no orçamento da segurança pública, o que implicou em adiar por tempo indeterminado a criação da UPP no Complexo da Maré, promessa antiga de Sérgio Cabral.
A falta de dinheiro levou ao caos: delegacias sem papel, viaturas sem gasolina e o não pagamento de horas extras de policiais foram algumas das consequências.
9. Olimpíada (2016)
Assim como na Copa, Beltrame assumiu um papel de liderança na operação de segurança dos Jogos Olímpicos.
A diferença é que o megaevento sofreu consequências da crise financeira no Estado e no país, além de amargar a morte de um membro da Força Nacional de Segurança na Favela do João, no Complexo da Maré, balas perdidas contra uma instalação olímpica em Deodoro e ataques a ônibus que transportavam jornalistas.
10. Demissão (2016)
Após dez anos, Beltrame anunciou, nesta terça, a saída do cargo um dia após as favelas Pavão-Pavãozinho e Cantagalo registrarem tiroteios e três mortes, causando pânico nos dois morros e em Copacabana e Ipanema, bairros vizinhos.
Com a UPP as duas favelas, no coração da Zona Sul do Rio, chegaram a experimentar anos de tranquilidade, mas voltaram a registrar disputas de traficantes. Para analistas, o episódio é um símbolo do declínio das UPPs e da segurança pública no Estado.