Ex-juiz: denunciar tortura na ditadura 'não daria em nada'

31 jul 2014 - 22h35

Em depoimento nesta quinta-feira à Comissão Nacional da Verdade (CNV), o ex-juiz da 2ª Auditoria da Justiça Militar Federal de São Paulo Nelson da Silva Machado Guimarães admitiu que presos durante a ditadura militar eram torturados, mas que nem sempre ele encaminhava as denúncias recebidas, porque “não dariam em nada”.

“Quando se tratou de guerrilheiros subversivos, treinados fora do Brasil para atacar o Brasil e tentar implantar uma ideologia que não deu certo em lugar nenhum do mundo até hoje, e que gerou os mais graves atentados à dignidade humana que o Século 20 conheceu, junto com o nazismo e o fascismo, nenhuma das comunicações foi adiante. O juiz militar apenas relata à autoridade militar a ocorrência daquele fato para as providências devidas. O juiz não dá ordem, ele comunica e pede a aplicação do código da Justiça Militar.”

Publicidade

Para ele, o Brasil passava por uma guerra - patrocinada por países comunistas - que exigia medidas drásticas, mesmo que ele não concordasse com elas. “Pedi várias vezes (a apuração das denúncias de tortura), em outras ocasiões era inútil e iria favorecer os guerrilheiros treinados fora do Brasil para fazerem aqui a guerra psicológica. Eram denúncias de tortura e de morte também. Na guerra se mata e se tortura dos dois lados. A estupidez de um extremismo acaba gerando, naquele que deveria se opor a essa estupidez de maneira legal, um outro tipo de estupidez. Isso é história”, disse ele.

Quanto à denúncia de que Guimarães tenha aceitado atestados de óbito com nomes falsos para encerrar inquéritos contra presos políticos mortos, ele se justificou, dizendo que acreditava no que o Dops dizia, e que seria melhor para a família, embora também tenha denunciado o fato.

A integrante da CNV Rosa Cardoso relata que o depoimento de Guimarães contribui muito para o trabalho da comissão, já que ele reconhece a existência de tortura no período, embora tenha caído em contradição.

De acordo com Rosa, “ele disse que o sistema era muito forte, que impedia que um juiz pudesse projetar a sua vontade e termina dizendo que a Justiça Militar era uma justiça independente, que não funcionava como um órgão do sistema repressivo. Mas quando ele fez a defesa de sua conduta durante o regime militar, ele disse que não podia, naquelas circunstâncias, atuar de forma diferente. Quem não pode atuar em certas circunstâncias de forma diferente é porque está sendo pressionado, é porque não tem independência para agir”.

Publicidade

Rosa ressalta que o fato de o juiz aposentado não ter encaminhado todas as denúncias de crimes recebidas, pode ser caracterizado como crime de prevaricação, além de ter contribuído para a política de desaparecimento e ocultação de cadáver.

A advogada Eny Moreira, membro da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, disse que o juiz mentiu, mas gostou do depoimento dele: “Eu achei o depoimento ótimo, porque um juiz da Justiça Militar, que processou e julgou inúmeros presos políticos, vem a público e com todas as letras assume que havia tortura nas dependências policiais e militares. E mais, ele assumiu também com todas as letras que a Justiça Militar não era independente, que ele tinha limites na atuação como juiz, ou seja, para bom entendedor, a Justiça era submetida aos órgãos da ditadura, principalmente aos órgãos da repressão.”

O coordenador da CNV, Pedro Dallari, ressaltou que essa informação é relevante, já que no mês passado as Forças Armadas responderam às solicitações da comissão negando a existência de tortura em suas dependências.

O mutirão de depoimentos de agentes da repressão, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, termina amanhã, com as oitivas de Celso Lauria, que atuou no Doi-Codi do Rio; de Zilson Luiz Pereira da Cunha sobre o centro de prisão e tortura no Estádio Nacional do Chile, na ditadura Pinochet; e de Luciano José Marinho de Melo, que atuou no Cisa, órgão de inteligência da Aeronáutica. Os três já foram intimados pela Polícia Federal.

Publicidade

Após esses depoimentos, marcados para a parte da manhã, os membros e assessores da comissão concederão entrevista coletiva para apresentar um balanço das duas semanas de depoimentos, em Brasília e no Rio de Janeiro. Na entrevista também será apresentado o sistema para recebimento de sugestões para o relatório final da CNV, previsto para ser divulgado no dia 10 de dezembro.

Desaparecidos da ditadura

Agência Brasil
TAGS
Curtiu? Fique por dentro das principais notícias através do nosso ZAP
Inscreva-se