Com pouca informação, vivendo em ambientes superlotados e sem condições de seguir recomendações como comprar álcool em gel, estocar comida ou trabalhar de casa, os moradores das favelas serão as principais vítimas do novo coronavírus no Brasil.
Sem um plano do governo focado especialmente na realidade das mais de 13 milhões das pessoas que vivem nas comunidades em todo o país, os mais pobres correm o risco de serem tratados, em breve, como os grandes vilões da pandemia.
A previsão é de Gilson Rodrigues, líder comunitário e presidente da União de Moradores e Comerciantes de Paraisópolis, comunidade em que vivem cerca de 100 mil habitantes na zona sul de São Paulo.
"É onde mais vão se registrar casos [de covid-19, a doença causada pelo vírus], vai ser nas favelas. Porque como é que um idoso vai entrar em uma situação de isolamento em uma casa com dez pessoas e dois cômodos? Esse isolamento é um isolamento para 'gringo ver', para rico. O pobre não tem condição de fazer. Vamos ter muitas perdas nas favelas, infelizmente", alerta Rodrigues, que diz que a sua preocupação reflete a visão de lideranças das favelas em todo o país.
Ele é um dos líderes e fundadores do G-10 das Favelas, bloco que reúne empreendedores sociais das principais comunidades do país: Rocinha (RJ), Rio das Pedras (RJ), Heliópolis (SP), Paraisópolis (SP), Cidade de Deus (AM), Baixadas da Condor (PA), Baixadas da Estrada Nova Jurunas (PA), Casa Amarela (PE), Coroadinho (MA) e Sol Nascente (DF).
"Estou muito preocupado. Tem muita gente ligando para mim, líderes de comunidades, chorando", diz Rodrigues, em entrevista à BBC News Brasil concedida por telefone.
Ele cita o exemplo de situações gritantes como a de favelas do Complexo do Alemão, no Rio, em que os moradores denunciam estar há 12 dias sem água, impedidos de higienizar-se adequadamente contra o novo vírus.
O presidente da união dos moradores diz que, desde a semana passada, cresceu muito o número de casos suspeitos em Paraisópolis, bem como relatos de moradores que continuam trabalhando, circulando em ônibus e metrôs cheios pela capital, ou de trabalhadores informais que foram dispensados de suas atividades, sem renda, e estão desempregados até que a crise do coronavírus passe.
"69% das pessoas que trabalham em Paraisópolis trabalham na área de serviços: babá, zelador, porteiro. São as pessoas que mais vão sofrer. Tem muita gente que trabalha com aplicativo, com Uber, e logo vão parar de circular. O que vai ser dessas pessoas?", questiona.
Para Rodrigues, as medidas do governo de combate ao coronavírus têm ignorado a realidade das favelas, que pedem socorro, alerta.
"Daqui a pouco vai aparecer um número gigante [de casos confirmados de covid-19], não só em Paraisópolis mas em outras favelas do país, e vão fazer da favela uma grande vilã. Só que a favela é a grande vítima", afirma.
"O que pode acontecer é que vão crescer tanto os casos nas favelas que eles vão trancar as favelas, bota o Exército, ninguém sai e ninguém entra. E a gente está gritando socorro, para que alguém nos ajude, mas até o momento estamos sendo ignorados."
Leia os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Como você viu o assunto coronavírus se desenvolver na favela nos últimos dias?
Gilson Rodrigues - Assim como no Brasil inteiro, a gente tem ouvido falar na televisão sobre um vírus que está chegando e que a princípio não é para criar pânico, que seria controlado e é uma coisa para a qual o Brasil estaria se preparando.
Então começou a acontecer, mas o que a gente percebeu em Paraisópolis? A gente percebeu que, a partir de sexta passada, começou a aumentar o número de pessoas nas unidades básicas de saúde de Paraisópolis, e na AMA [Assistência Médica Ambulatorial, serviço da Prefeitura].
A gente começou a notar um número grande de pessoas vindo, e as pessoas alegando que esses sintomas, que seriam da gripe, mas até então todo mundo tranquilo, é uma coisa que o governo tem buscado tranquilizar, fazer quarentena. O governo tem anunciado ali as políticas que seriam a política geral para a população.
Mas as unidades básicas começaram a colocar muitas pessoas em quarentena, a partir de sexta-feira começam-se os testes e os resultados só devem sair dali a dez dias, e as pessoas ficam 14 dias em casa.
É esse momento que a gente está vivendo: dezenas de pessoas em casa aguardando esse resultado, mas com sintomas e devem ficar em casa.
BBC News Brasil - E como está a população em relação ao vírus?
Rodrigues - Na comunidade, no geral, as pessoas ainda não estão conscientes da situação real do vírus. Tivemos um final de semana cheio de festas, cheio de aniversários, cheio de atividades, o que pode agravar ainda mais a situação.
E temos, durante a semana. uma situação de muitas pessoas relatando casos e indo para as unidades básicas de saúde e a AMA. Mas o que temos percebido? Que o governo tem tomado medidas para minimizar a crise, mas esses planos que o governo tem colocado são planos que não atingem ou não beneficiam a favela como um todo.
BBC News Brasil - Que tipo de plano?
Rodrigues - Por exemplo, fazer quarentena na favela, ou isolamento, é uma coisa praticamente impossível. Como é que você vai isolar uma pessoa que mora em uma casa com um cômodo ou dois e tem dez pessoas na família? É orientado a ficar 14 dias em isolamento. Vai ficar em isolamento onde? Em que condições? Isso não é diferente em outras favelas no Brasil.
Daqui a pouco vai aparecer um número gigante, não só em Paraisópolis mas em outras favelas do país, e vão fazer da favela uma grande vilã. Só que a favela é a grande vítima. Só que eles esquecem que quem está dentro das casas das patroas que viajaram para fora do país é o povo da favela.
Quem está trabalhando nas casas de família, quem está sendo as babás, quem está cuidando dos filhos são as pessoas da periferia. Quem são os trabalhadores do Morumbi? São as pessoas de Paraisópolis.
E agora, no Brasil, em Paraisópolis, a gente percebe um grande número de pessoas que estão ou trabalhando com seus patrões por conta do vírus, ou que estão sendo dispensadas para ir para casa sem os seus salários, o que é uma demissão.
Ou seja, quando passar a crise, eu te ligo de novo. E essa pessoa sai sem nenhuma condição de se manter pelos próximos meses. É uma situação de calamidade.
O que vai acontecer? Essas pessoas e as que já estavam desempregadas, e as crianças que estão sem escola, elas vão passar fome, literalmente. O que o governo vai fazer, provavelmente, é fechar tudo. E se fechar tudo, como é que os desempregados, o pessoal da favela, vão viver, vão comer? É um estado de calamidade pública. A situação vai gerar um estrago social tão grande que deve ser a maior crise de desemprego no país.
Mas em vez de ter um plano específico para as favelas, que é o que a gente quer agora, estão criando um plano para deixar os pobres morrerem. É isso que está acontecendo. Se você não cria um plano para as periferias do país inteiro, é optar por deixar o pobre morrer à própria sorte.
BBC News Brasil - Que tipo de recomendação é mais difícil seguir na favela?
Rodrigues - Como é que você fala para as pessoas que elas têm que se higienizar? Higienizar de que forma? Tem que usar álcool gel. O álcool gel é impossível de comprar, não tem dinheiro nem para comer, como é que vão comprar álcool gel?
O que está se desenhando no Brasil, que parece planejado, é deixar os pobres morrerem. E vai acontecer uma situação de guerra civil. Porque se as pessoas começam a passar fome, tudo fechado, sem perspectiva, e sem apoio do governo, o que vai acontecer? As pessoas vão tomar as ruas, vai haver saques.
Isso não é só nas favelas, é no Brasil inteiro. É preciso criar um plano específico para as famílias das favelas. Nós acabamos de falar sobre o impacto das favelas na economia do Brasil, as favelas movimentaram R$ 120 bilhões. O que vai ser do comércio local? 21% da população que trabalha na comunidade trabalha no comércio local. Ele vai viver do quê? Se não criam alternativas para o empreendedor, o empresário, e o empreendedor local, que está com o nome sujo, que apoio eles vão ter? Na verdade estou sentindo é que estamos sendo completamente ignorados. Em vez de melhorar as condições, estão piorando.
BBC News Brasil - Que condições?
Rodrigues - Vira e mexe falta água em algumas regiões aqui, por períodos curtos. No Morro do Alemão faz 12 dias que falta água. Eu estou representando o G-10, o bloco das favelas que estão preparando e dialoga com o Brasil inteiro. A dor de Paraisópolis é a dor do Alemão.
BBC News Brasil - O governo anunciou hoje, ainda sem muitos detalhes, um auxílio mensal de R$ 200 para os trabalhadores autônomos. Qual sua opinião?
Rodrigues - Um pai de família que precisa sustentar sua família em uma favela em estado de calamidade; precisa se alimentar, de remédio. Com R$ 200 é uma vergonha, é pouco, mas ok, para os autônomos. E os desempregados? Tem 11 milhões de desempregados no Brasil, todos nas favelas. Como eles vão viver?
BBC News Brasil - O principal grupo de risco para o coronavírus são os idosos. Qual a situação dos idosos nas favelas?
Rodrigues - Eles estão completamente expostos. É onde mais vai se registrar casos, vai ser nas favelas. Porque como é que um idoso vai entrar em uma situação de isolamento em uma casa com dez pessoas e dois cômodos? Esse isolamento é um isolamento para "gringo ver", para rico. O pobre não tem condição de fazer. Vamos ter muitas perdas nas favelas, infelizmente.
Primeiro que as pessoas ainda não estão conscientizadas, não entenderam que a situação é gravíssima. E segundo que também não se pensou uma comunicação específica para esse público.
Essas pessoas que estão no metrô, nos ônibus, amontoadas por aí, elas são as pessoas que estão se contaminando e vindo para a favela, contaminando todo mundo. Não é a pessoa que está indo para o restaurante sentar com cinco metros de distância entre as mesas. Não é o cara que está usando álcool gel, não é o cara que está fazendo home office.
As grandes dificuldades onde mais vai ter casos e onde mais vai ter mortes são nas periferias do Brasil, por um descaso. Porque estão deixando a população mais carente, mais vulnerável, que mais precisaria de ajuda à míngua neste momento. Nem entendeu ainda o está acontecendo.
BBC News Brasil - Como tem sido sua comunicação com as outras lideranças das favelas?
Rodrigues - Temos nos falado bastante por causa do G-10, que são os blocos de líderes empreendedores das favelas. E as favelas estão, deixa eu ver como falar... em calamidade pública. Se o governo está decretando calamidade pública no Brasil, nas favelas é ainda pior.
Primeiro pela falta de conhecimento; segundo pela contaminação que está rolando porque as pessoas estão circulando; terceiro porque, a partir da semana que vem as pessoas que estão começando a ficar doentes não vão ter atendimento. Não vão conseguir circular, não vão ter alimento, remédio.
Não estão tendo acesso a esse conjunto de serviços e informações que a pessoa mais instruída tem. Eu falei há pouco com uma liderança do Alemão e essa liderança chorou. Porque estão literalmente colocando os pobres para morrer.
O que pode acontecer é que vão crescer tanto os casos nas favelas que eles vão trancar as favelas, bota o Exército, ninguém sai e ninguém entra. Hoje em dia é uma situação que infelizmente se vive, é assim.
E a gente está gritando socorro, para que alguém nos ajude, mas até o momento estamos sendo ignorados. R$ 200 é pouco, a realidade da favela é outra.
BBC News Brasil - Como está o clima de Paraisópolis em relação à doença?
Gilson Rodrigues - As informações demoram mais para chegar e para as pessoas entenderem. Hoje, se você vier em Paraisópolis as ruas estão lotadas, mesmo com tantos casos suspeitos. Não está tendo comunicação específica para a favela, mas o coronavírus já chegou lá.
Quantas mortes podem acontecer nas favelas que nem vão aparecer nas estatísticas? Nós, por nossa decisão, decidimos fechar os projetos sociais, a União dos Moradores está com horário reduzido.
Isso devia ser uma ação do governo para preservar a vida das pessoas. Estão preocupados com economia, não estão preocupados com gente. Eu também estou preocupado com a economia, mas precisamos pensar na segurança do cidadão, em como estruturar a economia para que as pessoas sofram menos. Uma economia sem gente, sem povo, não serve para nada.