Há três semanas, uma megaoperação policial dispersou dependentes químicos e traficantes da cracolândia, em São Paulo, um dos maiores espaços abertos de consumo de drogas do mundo.
Após a operação, os usuários se espalharam pela cidade. A maior concentração estava na praça Princesa Isabel, a 300 metros da localidade original - enquanto a gestão do prefeito João Doria (PSDB) tenta articular o acolhimento dessas pessoas e pede autorização à Justiça para promover internações forçadas.
A ação policial ocorreu quando a rede municipal de acolhimento ainda não estava preparada, motivou críticas dentro da própria gestão e desencadeou a primeira crise do governo Doria.
Na manhã deste domingo, a polícia fez uma nova operação para derrubar as barracas e retirar os usuários concentrados na praça Princesa Isabel.
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito João Doria foram ao local e disseram que essa ação será constante para inibir o tráfico de drogas na região.
Nos últimos 22 anos, apesar de diferentes ofertas de tratamento, emprego e acomodação por governos e ONGs, a região continua a atrair traficantes, moradores de rua, ex-condenados e pessoas incapazes de se integrar à sociedade.
Mas o que pode ser feito para impedir que dependentes tomem ruas e se aglomerem para comprar, negociar e usar crack? E qual seria a forma mais eficaz de tratar essas pessoas para que abandonem o vício, retomando a saúde e a perspectiva de uma vida normal?
A BBC Brasil consultou as gestões de Doria e de Geraldo Alckmin, além de especialistas e agentes que atuam na região sobre o que pode ser feito para acabar com a cracolândia e seus problemas sociais.
Segurança pública
Em geral, houve consenso sobre a importância do policiamento ostensivo para coibir a atuação de traficantes e evitar que as drogas cheguem aos usuários na cracolândia.
Para a professora livre-docente em Direito Internacional na USP Maristela Basso, por exemplo, uma atuação rígida da polícia inibirá a ação do tráfico e devolverá confiança à população sobre a efetividade de políticas para a região.
"Não sei o que será daqui para frente, mas o importante é que o primeiro passo foi dado (megaoperação). O que não pode é parar. Deve haver um sufocamento (dos traficantes). Prender quem tem que prender e tratar quem tiver que tratar", diz.
Basso defende a iniciativa da gestão Doria e diz que seria "uma fraude" caso a ação anticrack do governo enfraquecesse com o tempo.
"Não adianta só espalhar os usuários. A sociedade não vai aceitar que eles migrem para outros bairros e nada seja solucionado. Mas é necessária uma aliança com a sociedade. Se as críticas forem tão severas sobre as ações, ele (prefeito) pensa: 'Vamos encerrar isso'", afirma Basso.
Maurício Fiore, pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, diz que é importante que o debate público sobre soluções "não misture o tratamento dos usuários com a região em si".
"Quando você busca uma solução para o espaço nem sempre é a mesma para as pessoas", afirma o cientista social, para quem os dependentes químicos "se cansaram das ações repressivas porque isso não resolveu".
O advogado Ariel de Castro Alves, integrante do Conselho Estadual de Direitos Humanos, diz que houve violência excessiva na ação organizada pela prefeitura em parceria com o Estado, e opina que isso não pode se repetir.
"Colhemos (após a ação policial) depoimentos de 30 vítimas de violações de direitos humanos em uma semana, entre dependentes agredidos por policiais ou por guardas municipais, moradores despejados pela prefeitura e outros ameaçados de despejo", afirma.
A Polícia Militar de São Paulo diz que ninguém se feriu na ação e que houve despejos por irregularidades nos imóveis, como risco de desabamento, falta de estrutura e de equipamentos de segurança obrigatórios.
A Secretaria da Segurança Pública afirma ainda manter o policiamento na cracolândia "com equipes das polícias Civil e Militar para, além de combater o tráfico no local, prestar apoio às equipes de saúde e assistência social".
A pasta informa ainda que o departamento de narcóticos (Denarc) prendeu 162 traficantes na região desde 2015. Trinta deles, incluindo o suspeito de ser responsável por abastecer o tráfico na região, foram presos durante a megaoperação de 21 de maio.
A prefeitura diz que há nove carros da Guarda Civil Metropolitana na cracolândia, com 26 agentes. Cinco câmeras de vigilância foram instaladas na região e há quatro ônibus que gravam a movimentação no local e funcionam como central de monitoramento.
Saúde
Cuidar dos usuários de drogas, tirá-los das ruas e oferecer tratamento médico até que eles tenham condições de retomar suas vidas também é uma política unânime entre os entrevistados. Mas a internação compusória, aposta da gestão Doria, divide opiniões.
A gestão chegou a conseguir uma decisão judicial em primeira instância que autorizava a remoção à força de usuários da região para avaliação médica, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo derrubou a decisão.
De acordo com o governo Alckmin, de 2013 até o final de 2016, o programa Recomeço fez 53.214 triagens e acolhimentos e internou 11.507 pacientes, sendo 8.904 voluntários, 2.580 involuntários e apenas 23 à força. A prefeitura afirma que a internação compulsória é usada apenas em último caso.
Para Ronaldo Laranjeira, psiquiatra e coordenador do Recomeço (programa do governo estadual para tratamento dos dependentes químicos), a internação compulsória deve ser usada apenas em casos extremos.
"Você acha humano ver uma pessoa com dependência química grave aliada a doenças graves, como Aids e sífilis, e não fazer nada? Não agir num caso desse é omissão de socorro", diz.
Em relação à ação judicial da prefeitura que pede autorização para internar usuários à força, ele diz apenas que a lei deve ser seguida.
"Há uma resolução do Conselho Regional de Medicina que prevê internação compulsória individual após autorização da família, médico e Ministério Público. É o que fazemos há cinco anos", diz.
Para Fiore, do Cebrap e Plataforma Brasileira de Política de Drogas, a internação forçada "nunca pode ser usada como uma política pública". Ele acrescenta que o recurso é importante em muitos casos, mas não pode ser eixo central de política.
"A internação compulsória tem o pior resultado entre os tratamentos, além de envolver violações de direitos", defende.
O advogado Ariel de Castro Alves vai na mesma linha.
"Essas internações (compulsórias) só podem ser feitas com base em laudos médicos e decisões judiciais individuais, antecedidas por manifestações do Ministério Público e da Defensoria Pública. O trabalho social e de saúde é de conquista de vínculos e confiança. Não é de repressão, abuso e autoritarismo", afirma.
A professora de direito Maristela Basso vê a internação compulsória como parte da função do Estado de proteger o direito das pessoas.
Ela considera a solicitação de autorização da prefeitura como "proteção para evitar medidas do Ministério Público, que estava tentando impedir a prefeitura de cumprir seu dever".
Assistência social
Segundo a Prefeitura de São Paulo, desde a megaoperação policial de maio equipes de assistência social fizeram 12.687 abordagens na região da cracolândia, com 7.049 encaminhamentos para acolhimento em equipamentos públicos e 5.638 recusas de atendimento.
Para Basso, da USP, a ação policial que espalhou os usuários facilita o trabalho de abordagem de assistentes sociais, que poderiam buscar contato com dependentes em grupos menores.
No entanto, psicólogos e agentes sociais que atuam na cracolândia - e pediram para ter suas identidades preservadas - afirmam que o debate sobre internações compulsórias acabou aumentando a desconfiança dos usuários.
"As pessoas passam a nos ver como inimigos. Eles começam a desconfiar de que possam ser levados a qualquer momento numa camisa de força, e isso destrói nosso trabalho porque os deixa numa situação eterna de tensão. Mesmo aqueles que já estavam prestes a aceitar o tratamento acabam se afastando", diz uma agente ouvida em condição de anonimato.
Para quem atua no local, a polícia deveria apenas investigar o tráfico, sem causar grande estresse aos usuários.
O coordenador do Recomeço, Ronaldo Laranjeira, explica que foram instalados diversos serviços para atender os usuários na rua Helvétia - um dos pontos de grande concentração de usuários antes da operação policial.
"Lá, eles podem tomar banho, ter acesso a médicos e até academia. Não falta de serviços. O problema está no engajamento para convencer o usuário a participar", diz Laranjeira.
Para ele, dar o primeiro passo e iniciar o tratamento é a tarefa mais difícil da desintoxicação.
"É muito complicado falar para um viciado deixar aquele ambiente onde estão seus amigos e encontra crack barato e em abundância para se internar. Ninguém quer isso", diz.
Laranjeira fala ainda que é essencial ter uma "linha de saída de qualidade, com cursos profissionalizantes e oferta de emprego para que as pessoas retomar sua vida e todo esse esforço não tenha sido em vão".
São 25 conselheiros que atuam como agentes e conversam diretamente com os usuários. Caso aceitem ser internados, os pacientes ficam de 15 a 30 dias internados para desintoxicação.
Após esse período, ele é reavaliado pelos médicos, que definem se será necessária uma nova internação ou apenas atendimento ambulatorial no Centro de Atenção Psicossocial (Caps).
Segundo os agentes, eles passaram a ser vistos com desconfiança pelos usuários após a operação policial. Alguns, inclusive, foram roubados nos últimos dias.
Os profissionais que trabalham na cracolândia ouvidos pela BBC Brasil em condição de anonimato disseram que a prefeitura "destruiu um trabalho de anos".
"Vamos ter que começar tudo de novo", diz uma mulher que trabalha no Recomeço.
O Caps instalado na cracolândia tem dois psiquiatras de plantão 24 horas.
Habitação e emprego
Mas nada vale um trabalho social de abordagem, convencimento e tratamento se o ciclo da reinserção social não fechar.
É consenso entre os especialistas ouvidos que o sucesso na luta contra o crack só é possível se a pessoa passar a preencher seu tempo livre com trabalho e afeto de amigos e familiares, além de ter um lugar garantido para voltar e dormir.
Sobre oferta de trabalho, o governo Doria acabou com o programa De Braços Abertos, da gestão anterior de Fernando Haddas (PT), que oferecia moradia em hotéis da cracolândia e R$ 15 por dia a dependentes que trabalhassem em atividades como varrição e jardinagem.
Para Maurício Fiore, a iniciativa anticrack da gestão petista "seguia numa direção correta" que deveria ter sido mantida.
"Aquela política não conseguiu resolver, mas pesquisas apontaram que eles estavam reduzindo o consumo e melhorando de vida. É um trabalho longo, difícil e que envolve esse estar permanente com agentes de saúde. Mais do que cobrar e exigir deles, o importante é oferecer um conjunto de direitos", diz.
A prefeitura destaca que negocia parcerias com empresários para dar emprego a todos os usuários que passarem pelo tratamento de desintoxicação.
Recentemente, Doria anunciou a oferta, por uma rede de fast food, de cem vagas de emprego para moradores de rua em geral - são cerca de 20 mil na capital paulista.
Sobre oferta de habitação, o governo estadual afirma estudar a construção de cerca de 3,7 mil moradias na região da cracolândia nos próximos anos. A previsão é que 91 apartamentos sejam concluídos até o fim deste ano e outras 1,2 mil antes até o fim de 2018.
Segundo o governo, 80% das unidades serão disponibilizadas para financiamento de baixo custo a pessoas que moram fora do centro, mas trabalham na região. Outros 500 apartamentos estão reservados para movimentos sociais de moradia.
Para o secretário municipal de Habitação da gestão Haddad e professor de urbanismo na USP, João Whitaker, o atual projeto habitacional da cracolândia não irá beneficiar os dependentes químicos que circulam pela região.
"O ideal é oferecer apartamentos para quem aderir ao tratamento. Com moradia oferecida pela prefeitura, ela se reinsere no mercado de trabalho", diz.
"Essas moradias que serão construídas não serão para a população da região porque serão da faixa de até dez salários mínimos estaduais. Isso não vai beneficiar os pobres. É para classe média baixa e média. Dizer que é para pobres é enganação", conclui.
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