'Fiquei seis anos sem ver meu pai e o reencontrei... na cracolândia'

16 mai 2017 - 11h01
(atualizado às 11h33)
A produtora Mylena Garbin e o pai na região da cracolândia paulistana: reencontro após anos de separação
A produtora Mylena Garbin e o pai na região da cracolândia paulistana: reencontro após anos de separação
Foto: Marcello Vitorino/Fullpress / BBC News Brasil

A produtora cultural Mylena Garbin, de 24 anos, peregrinou de bar em bar por muito tempo no centro de São Paulo. E não foi para beber nem encontrar amigos.

A missão era procurar o pai, usuário crônico de cocaína e crack que abandonara a família durante a adolescência da jovem. "Ninguém sabia dele", conta a produtora.

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Mylena tinha uma pista: sabia, desde os 18 anos, que o pai costumava frequentar a cracolândia, na região central de São Paulo. Mas não o via desde então.

"Talvez o tenha cobrado muito, para que parasse de usar drogas, e ele se cansou", comenta.

Região da cracolândia em São Paulo, em imagem de janeiro de 2013, quando governo estadual começou a promover internação involuntária de usuários
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil / BBC News Brasil

No final de 2016, Mylena resolveu participar, como voluntária, de um evento que oferecia tratamentos de beleza a mulheres e transexuais da cracolândia. E pensou que, uma vez em meio ao vaivém de traficantes e dependentes, poderia tentar novamente.

Ela decidiu perguntar a assistentes sociais do programa Braços Abertos - iniciativa da gestão Fernando Haddad (PT) na cracolândia e hoje em reformulação pela administração João Doria (PSDB) - se alguém conhecia seu pai.

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E elas, de fato, sabiam do paradeiro do pai de Mylena - o auxiliar de serviços Alcides Silva*, de 52 anos, era um dos beneficiários do extinto programa, que oferecia aos usuários de crack remuneração diária de R$ 15 por dia de trabalho, refeições e vagas em hotéis da região.

Mylena deixou um bilhete com as assistentes sociais. "Pai, me liga! Te amo e estou com saudades", dizia a mensagem com os números de telefone.

Após confirmar que pai vivia na cracolândia, produtora deixou bilhete que acabou viabilizando reencontro
Foto: Olivia Tesser / BBC News Brasil

O reencontro não demorou. E desde então, pai e filha não perderam mais o contato, e poderão conhecer, juntos, o novo membro da família - Mylena está grávida de oito meses. "O importante agora é que vou ver e acompanhar esse netinho", diz o pai.

No ano passado, pai e filha passaram o Natal juntos pela primeira vez em 20 anos. O encontro foi na casa da mãe de Mylena, a comerciante Irene Cavalcanti.

"Finalmente tivemos um encontro familiar. Minha mãe recebeu meu pai muito bem, foi bem tranquilo, ele ficou muito feliz", conta a produtora cultural.

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Alcides não largou o crack - mas diz estar consumindo menos. E Mylena o visita a cada 15 dias no hotel em que ele vive na cracolândia.

Fachada do hotel na cracolândia em que Alcides (nome fictício), pai de Mylena, passou a viver com benefício da prefeitura
Foto: Marcello Vitorino/Fullpress / BBC News Brasil

"O espaço é muito limpo, me sinto bem lá. As pessoas acham que a cracolândia é o inferno na Terra, mas não é bem assim. Claro que ninguém irá andar sozinho no 'fluxo', onde se compra e vende droga, mas em geral não é um lugar muito mais perigoso do que outras regiões da cidade", opina a filha.

A conversa da filha e do pai com a BBC Brasil ocorre em frente à estação Júlio Prestes, marco arquitetônico da cidade esquecido em meio ao abandono da região central.

A poucos metros dali, na cracolândia, são comercializados cerca de dez quilos de crack por dia, segundo a Polícia Civil do Estado. Na semana passada, um assalto terminou em confronto e confusão generalizada envolvendo dependentes químicos, traficantes e forças de segurança. Houve saques a lojas e um ônibus chegou a ser sequestrado por viciados.

Braços Abertos ou Recomeço?

Assim como o futuro do pai de Mylena, o destino do programa anticrack da gestão do PT é incerto. Implantado em janeiro de 2014, a ação petista partia do princípio da redução de danos: fazer com que o usuário amplie sua inserção social e diminua o consumo aos poucos, por meio de oferta de emprego e moradia, sem necessidade de internação.

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Dependentes químicos que trabalhassem ao menos quatro horas por dia (em atividades como varrição de rua e jardinagem) ou participassem de oficinas de arte e pintura, como é o caso de Alcides, ganhavam R$ 15 por dia. Cerca de 400 pessoas eram atendidas até o final do ano passado.

Dependentes químicos em atividade de varrição em 2015 dentro do Braços Abertos; prefeitura não confirma se manterá pagamento em dinheiro a usuários
Foto: João Luiz/Secom SP / BBC News Brasil

Na campanha eleitoral, o atual prefeito João Doria (PSDB) disse que o programa "não era bom para a cidade" e prometeu extingui-lo. Após confronto na semana passada, Doria disse que a "cracolândia tem prazo final para acabar" e que isso ocorreria "em breve".

Relatos na imprensa após a eleição sugeriram que a gestão tucana manteria parte das ações da iniciativa, mas a prefeitura ainda não divulgou detalhes do plano - diz apenas que tudo será incorporado ao programa Recomeço, do governo do Estado (também do PSDB) e focado no tratamento dos dependentes.

"O projeto tem como eixo fundamental o acolhimento e tratamento de dependentes químicos. O conceito básico é primeiramente dar abrigo aos dependentes fora da área (cracolândia). O programa inclui também ações em assistência social, zeladoria e segurança, com apoio à polícia no combate ao tráfico. As iniciativas serão feitas em conjunto com o governo do Estado, governo federal e sociedade civil", informou a prefeitura em nota à BBC Brasil.

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O projeto tem como eixo fundamental o acolhimento e tratamento de dependentes químicos

A administração não respondeu pedidos específicos de informação, como número atual de beneficiários, ações que serão ou não mantidas e qual será a estrutura de gestão.

O sociólogo Benedito Mariano, coordenador do Braços Abertos na gestão Haddad, defende a iniciativa que gerenciava. "A lógica do acolhimento e do resgate social de pessoas que se viam à margem da sociedade pode provocar grandes mudanças", afirma.

Uma pesquisa da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, rede que promove políticas de redução de danos, apontou que 67% de 80 beneficiários ouvidos haviam relatado redução no consumo.

Alcides Silva diz ter reduzido consumo de crack, mas ainda não conseguiu largar vício e a vida na cracolândia
Foto: Marcello Vitorino/Fullpress / BBC News Brasil

Há quem considere, por outro lado, que tratamentos que visem a abstinência, como a proposta das gestões do PSDB, sejam mais adequadas. Para Ana Cecília Marques, coordenadora da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria e professora da PUC-SP, viciados devem passar primeiramente por tratamentos de desintoxicação e de doenças relacionadas ao consumo de drogas.

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"A maioria dos usuários adquire as chamadas comorbidades, como enfisema e inflamação dos nervos, que precisam ser tratadas", diz Marques, citando programas de universidades como USP e Unifesp que alcançariam taxas de abstinência de 60%.

O uso compulsivo da droga muitas vezes está relacionado à ausência ou ruptura de vínculos sociais

A descontinuidade das iniciativas anticrack do setor público não se restringem a São Paulo. No plano federal, a principal aposta do governo Dilma Rousseff (PT) - microônibus superequipados para monitorar as cracolândias - resultou em veículos parados, subutilizados ou funcionando de forma precária, como a BBC Brasil em 2015. e até o momento, não há indicação de que essa política seja prioridade da gestão Michel Temer (PMDB).

Futuro

Ainda longe da abstinência, Alcides fica à espera da nova proposta da Prefeitura de São Paulo para resolver o problema da cracolândia e seus viciados. "Espero que não mude muita coisa porque a ação tem me ajudado", diz.

De acordo com estimativa feita em 2015 pelo governo federal, 340 mil pessoas usavam crack regularmente no país naquele ano.

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Mylena e Alcides em dois momentos: hoje, enquanto buscam se reaproximar, e no passado
Foto: Marcello Vitorino/Arquivo pessoal / BBC News Brasil

"O uso compulsivo da droga muitas vezes não está diretamente relacionado à substância em si, mas à ausência ou ruptura de vínculos sociais", lembra José Luis Ratton, professor do departamento de Sociologia da UFPE e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Sem dar detalhes de sua vida, o homem de fala agitada e gestos largos reconhece que as drogas o "empurraram para outro mundo". Pouco depois, passa a mão na barriga da filha grávida e abre um sorriso. "Quero abrir uma barraca de sucos no centro", conta. "Voltei a sonhar, antes estava jogado, não queria saber de nada."

* Nome fictício. O pai de Mylena falou com a reportagem com a condição de não ter o nome divulgado, apenas imagens e declarações.

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