À luz dos protestos e conflitos que marcaram 2013 e enquanto a sociedade tenta compreender a maior onda de insurgência social na recente história republicana, o Estado brasileiro tenta responder aos casos de violência e à percepção do caos e da impunidade.
No entanto, as mesmas ações mais efetivas buscadas pelo poder público para impedir novos casos de violência em um ano de Copa do Mundo e eleições presidenciais correm o risco de, ao tentar regulamentar o pacifismo das manifestações, minar a naturalidade inerente às expressões coletivas ou mesmo servir para impedir sua livre gestação.
Duas propostas de lei estão em discussão com o intuito de aprimorar a possibilidade de resposta policial e jurídica frente aos casos de violência que vêm marcando a recente onda de protestos. Trata-se do Projeto de Lei Anti-Terrorismo, gestado no Senado Federal e que conta com a assinatura do senador Romero Jucá (PMDB/RR), e da proposta de Projeto de Lei sobre crime de desordem, apresentada pelo secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, ao Senado.
São projetos com objetos e objetivos distintos, mas tratam do mesmo problema que se tornou a reincidência de casos de agressão e depredação em meio a protestos pacíficos nas mais diversas cidades do Brasil, bem como a dificuldade das autoridades de lidar e mesmo entender as diferentes expressões e episódios populares. Os próprios termos - terrorismo e desordem -, por si mesmos de difícil enquadramento semântico, refletem o caráter difuso da realidade brasileira atual.
Terrorismo na legislação vigente |
A Constituição Federal de 1988 identifica o "terrorismo" como uma prática inafiançável, mas o tipifica como crime específico, tampouco determina-lhe pena específica. De acordo com o código penal, o homicício qualificado atinge um máximo de 30 anos de reclusão |
Dispositivos legais atuais
Atualmente, a Justiça já procede perante os casos de crimes constatados durante os protestos e conflitos com base nos textos legais em vigor que dispõem sobre a matéria, mas, na prática, estas novas leis poderiam facilitar a tipificação do “terrorismo” e da “desordem”, bem como a implantação de penas maiores.
O terrorismo é previsto na Constituição Federal (1988) como uma prática inafiançável. “A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”, diz o parágrafo XLIII do artigo 5º do capítulo II da seção dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Mas é uma lei anterior, de 1983, que determina a pena de reclusão de até 30 anos para caso de morte ligada ao terrorismo. “Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar (sic), manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas”, determina o artigo 20 da lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983.
A mesma lei prevê pena de reclusão de três a dez anos para atos de terrorismo. No caso de lesões corporais graves, a pena dobra. No caso de morte, triplica.
Projeto de lei Anti-Terrorismo |
O projeto de lei que se propõe a tipificar o crime de terrorismo tenta defini-lo como prática específica. Em caso de morte resultante de ato terrorista com agravante, a pena pode chegar a 40 anos de reclusão |
O projeto de lei anti-terrorismo
O projeto da lei anti-terror “define crimes de terrorismo” como o ato de “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”.
A pena prevista é de 15 a 30 anos. Em caso de morte, a pena varia entre 24 e 30 anos. Os agravantes (emprego de explosivos, armas, “em meio de transporte coletivo” ou locais de aglomeração popular) aumenta a pena em um terço, o que resulta numa condenação máxima de 40 anos.
Além do ato puro do terrorismo, a lei também tipifica o “financiamento do terrorismo”, com pena de 15 a 30 anos de prisão; o “terrorismo contra coisa”, com pena de 8 a 20 anos de prisão; a “incitação ao terrorismo” e o “favorecimento pessoal no terrorismo”, ambos com pena de três a oito anos de prisão; a associação “grupo terrorista”, de cinco a 15 anos de prisão.
Proposta de lei contra a desordem |
Na prática, a proposta entregue pelo governo do Rio de Janeiro ao Senado se propõe a regulamentar algumas condutas de manifestantes, como proibir o uso de máscaras e exigir aviso da mobilização. A justificativa é, com isso, justamente garantir que manifestações pacíficas sigam ocorrendo |
A proposta da lei contra a desordem
A proposta apresentada pelo secretário de Segurança do Rio de Janeiro se propõe a estabelecer “procedimentos a serem observados pelos órgãos públicos e pelos cidadãos, para o pleno exercício dos direitos constitucionais” previstos na lei em vigor.
Para isso, sugere que manifestações sejam obrigatoriamente avisadas às autoridades policiais e de trânsito com uma antecedência mínima de 48 horas, bem como fica proibido o porte de armas ou máscaras nos protestos. O resultado disso seria a revisão dos artigos 287-A e 288-B do Código Penal e a determinação para crime de desordem com pena de dois a seis anos de prisão.
Similarmente ao projeto anti-terror, a pena ao crime de desordem acarretaria agravante em caso de emprego de explosivos ou substâncias inflamáveis, de saques ou roubos, de danos ao patrimônio comum, aumentando a pena para mínimo de três e máximo de oito anos. No caso de lesão corporal grave, a pena é de quatro a dez anos de detenção. No caso de morte, a pena sobre para mínimo de seis e máximo de 12 anos de prisão. No caso de associação para realização do crime de desordem, a pena é de três a seis anos.
Justificativas e reações
"O projeto (da lei anti-terrorismo) preenche lacuna grave de nosso ordenamento jurídico, permite o cumprimento de nossas obrigações internacionais e constrói instrumento jurídico para repressão penal de conduta odiosa", argumenta o texto do projeto de lei anti-terror do Senado.
"Eu acho que o Brasil necessita uma lei, uma abordagem sobre o terrorismo, mas o que nós estamos falando ali (projeto de lei que tipifica a desordem) é algo muito específico com relação às consequências que determinadas manifestações, determinados grupos estão trazendo à sociedade brasileira", afirmou a jornalistas a Beltrame ao término da reunião nesta quarta-feira.
O procurador de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro Marcos André Schultz, um dos quatro juristas convidados por Beltrame para elaborar o projeto de lei, afirmou não haver o risco de um uso político da proposta como uma forma de reprimir as manifestações populares. Ele afirmou que o objetivo da proposta era estabelecer uma lei que desse respaldo à ação da polícia em manifestações violentas.
"O projeto não tem nenhum cunho no sentido de impedir um direito constitucional. Nós estamos cientes de que existem garantias individuais. Mas violar o direito à livre manifestação, fazer com que uma manifestação que era legítima se torne ilegítima com violência, quebra-quebra, ultrapassa o direito constitucional à manifestação", afirmou.
O projeto da lei anti-terror, que voltou à tona após a morte do cinegrafista da Rede Bandeirantes Santiago Andrade, é especialmente polêmico, e o Planalto trabalha para evitar que se acabe criminalizando as manifestações populares.
"A orientação do Palácio do Planalto é que nós possamos dar resposta a essa questão (da tipificação do crime de terrorismo) e que essa resposta de forma alguma represente de forma alguma objetivo de restrição à liberdade", disse o líder do PT no Senado, Humberto Costa (PE), nessa terça. "Nós achamos que ele deixa muito em aberto e subjetivo a caracterização do terrorismo. Há ali muitas coisas livres do pensamento que ficariam limitadas", explicou o senador.