Lula na ONU: 4 recados ao mundo e silêncio sobre a Venezuela

Em Nova York, Lula envia recados, revisita discursos, mas não consegue evitar alguns constrangimentos

24 set 2024 - 15h43
(atualizado às 23h39)
O presidente Lula durante discurso na Assembleia Geral da ONU.
O presidente Lula durante discurso na Assembleia Geral da ONU.
Foto: Brendan McDermid/Reuters / BBC News Brasil

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cumpriu a tradição e abriu, mais uma vez, a série de discursos de chefes de Estado e de governo, nesta terça (24/9), na 79ª Assembleia Geral da ONU.

Vestindo sua já bem conhecida gravata com as cores da bandeira do Brasil, Lula discursou por quase 20 minutos e mesclou temas tradicionais da diplomacia brasileira, como o combate à fome e o apelo à reforma do Conselho de Segurança da ONU com novos tópicos, como a necessidade de regulação de redes sociais e as queimadas históricas no Pantanal e na Amazônia.

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Lula, porém, optou por silenciar sobre um assunto que tem dado trabalho ao governo: a delicada situação política na vizinha Venezuela.

Lula chegou ao plenário da Assembleia Geral da ONU poucos minutos antes das 9h da manhã e se sentou ao lado da primeira-dama Janja Lula da Silva, do chanceler Mauro Vieira, do assessor especial da presidência Celso Amorim e dos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira.

No mezanino da plenária, junto aos jornalistas, a atriz brasileira Fernanda Torres, cotada para o Oscar de melhor atriz por seu papel no filme Ainda estou aqui, surgiu para acompanhar o discurso do presidente.

Ela disse que era um "sonho" estar na Assembleia Geral e que pediu isso à primeira-dama Janja da Silva, que a ajudou a viabilizar um lugar na plateia.

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A seguir, ponto a ponto, os recados e os pontos fracos da fala do presidente em Nova York.

Acima da lei

Sem citar nominalmente nem a rede X nem o bilionário Elon Musk, Lula fez algumas referências à queda de braço de Musk com o Supremo Tribunal Federal (STF) que culminou com o bloqueio da plataforma aos usuários do Brasil, depois que o empresário se recusou a cumprir ordens judiciais para a retirada do ar de perfis e posts de notícias falsas e desistiu de manter representante legal no país.

Uma proposta de lei de regulação das redes sociais está atualmente parada na Câmara dos Deputados, cujo presidente, Arthur Lira, assistia ao petista do plenário da ONU.

"O futuro de nossa região passa, sobretudo, por construir um Estado sustentável, eficiente, inclusivo e que enfrenta todas as formas de discriminação. Que não se intimida ante indivíduos, corporações ou plataformas digitais que se julgam acima da lei", afirmou Lula.

O presidente brasileiro sugeriu ainda necessidade de uma regulação para plataformas não apenas no Brasil. "A liberdade é a primeira vítima de um mundo sem regras", afirmou o presidente.

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Um projeto de lei de regulação das redes sociais está atualmente parada na Câmara dos Deputados, cujo presidente, Arthur Lira, assistia ao petista do plenário da ONU.

O tema também foi tratado por Lula em um evento co-patrocinado com a Espanha, sobre extremismo digital da direita radical e democracia, na tarde desta terça.

"As redes digitais se tornaram um terreno fértil para os discursos de ódio misóginos, racistas, xenofóbicos que fazem vítimas todos os dias. Nossas sociedades estarão sob constante ameaça, enquanto não formos firmes na regulação das plataformas e do uso da inteligência artificial", disse Lula, a uma plateia que contava também com o líder chileno Gabriel Boric, com o francês Emmanuel Macron, além de Pedro Sanchez, da Espanha.

"Nenhuma empresa de tecnologia ou indivíduo, por mais ricos que sejam, podem se considerar acima da Lei", em nova alusão a Musk.

Para o brasilianista Brian Winter, editor da revista Americas Quartely, o fato de Lula ter dado tamanha importância ao assunto demonstra o quanto ele acredita que o bilionário possa ter afetado a reputação do Brasil internacionalmente, acusando o país de ferir "a liberdade de expressão" dos brasileiros.

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Ainda segundo Winter, como os movimentos mais recentes de Musk foram recuos, Lula provavelmente vê a situação como uma vitória de seu governo.

Já para Garman, este foi o ponto mais frágil do discurso do presidente brasileiro.

"Me preocupa um pouco o tom nacionalista. Países como o Brasil precisam fazer parcerias com essas empresas, e esse foco de uma certa autossuficiência, nacionalismo, é infeliz", afirmou o analista.

"É um governo que vê oportunidades mas peca quando enxerga mais riscos do que oportunidades e isso pode dificultar parcerias com empresas de tecnologia de ponta."

A resistência das plataformas e a tensão política criada em torno do projeto de lei explica em parte porque a matéria segue emperrada no Congresso.

Gaza e Ucrânia

Lula chamou atenção para o conflito entre Israel e a Palestina, classificando o que está acontecendo em Gaza e na Cisjordânia como "uma das maiores crises humanitárias da história recente, e que agora se expande perigosamente para o Líbano."

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Em tom diplomático, o presidente afirmou que "o que começou como ação terrorista de fanáticos contra civis israelenses inocentes, tornou-se punição coletiva de todo o povo palestino."

"O direito de defesa transformou-se no direito de vingança, que impede um acordo para a liberação de reféns e adia o cessar-fogo."

O presidente, no entanto, evitou usar termos polêmicos como genocídio, Holocausto e crimes de guerra, que adotara anteriormente para qualificar a situação, gerando uma crise diplomática com Israel.

A delegação israelense não aplaudiu o discurso do brasileiro em nenhum momento.

Ainda sobre os conflitos internacionais, Lula afirmou que "o Brasil condenou de maneira firme a invasão do território ucraniano" e destacou que a essa altura da guerra, nenhum dos dois deverá conseguir ganho total por vias bélicas. Para Lula, Rússia e Ucrânia devem abrir uma negociação diplomática para encerrar o conflito.

A posição de Lula o afasta do presidente americano Joe Biden nesse tema, já que os Estados Unidos enviaram, secretamente, armamento para a defesa da Ucrânia.

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Por outro lado, o brasileiro se aproxima da China, lembrando que os dois países elaboraram seis pontos para que se instale um processo de diálogo e o fim das hostilidades na Ucrânia.

Reforma da ONU

O presidente trouxe, novamente, uma reivindicação histórica da diplomacia brasileira: a reforma da ONU e do Conselho de Segurança, no qual o país não tem um assento permanente.

"A exclusão da América Latina e da África de assentos permanentes no Conselho de Segurança é um eco inaceitável de práticas de dominação do passado colonial", afirmou o presidente.

Ele também lembrou que nunca na história da instituição uma mulher ocupou o cargo de secretária-geral. "Estamos chegando ao final do primeiro quarto do século XXI com as Nações Unidas cada vez mais esvaziadas e paralisadas", afirmou Lula.

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O Conselho de Segurança da ONU é formado por 15 membros, sendo que cinco deles são permanentes e detêm poder de veto: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia.

Já os demais membros são temporários, eleitos de dois em dois anos.

"Não tenho ilusões sobre a complexidade de uma reforma como essa, que enfrentará interesses cristalizados de manutenção do status quo. Exigirá enorme esforço de negociação. Mas essa é a nossa responsabilidade", afirmou Lula, em alusão aos cinco membros permanentes que, apesar de se dizerem favoráveis a mudanças, nunca efetivamente as realizam.

"Não podemos esperar por outra tragédia mundial, como a Segunda Grande Guerra, para só então construir sobre os seus escombros uma nova governança global. A vontade da maioria pode persuadir os que se apegam às expressões cruas dos mecanismos do poder", seguiu Lula.

Ao falar em "vontade da maioria", Lula alude à possibilidade de uma reforma via Assembleia Geral, evocando-se o artigo 109 da Carta das Nações Unidas. Para o professor de Relações Internacionais da UFMG, Dawisson Belém Lopes, o pleito não surpreende, é uma demanda histórica da diplomacia brasileira mas, à luz do direito internacional, o artigo 109 não seria uma solução efetiva para forçar uma reforma que superasse o veto de países como China, Rússia e Estados Unidos.

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Manifestantes protestam na Venezuela pela liberdade de presos políticos no país.
Foto: Ronald Pena R/EPA / BBC News Brasil

Os constrangimentos

O Brasil está há meses enfrentando estiagens severas e, mais recentemente, sufocado por queimadas, e o governo vem sendo criticado pela demora nas respostas. Segundo Garman, discursar sobre o tema sob o escrutínio de um organismo internacional é inevitavelmente "constrangedor". Mas, ao menos no discurso, ele foi feliz na maneira de tratar".

"O meu governo não terceiriza responsabilidades nem abdica da sua soberania. Já fizemos muito, mas sabemos que é preciso fazer mais", reconheceu o presidente, evitando se vitimizar. O presidente, no entanto, não se estendeu em descrever o cenário.

Lula citou ainda as enchentes no Rio Grande do Sul como um exemplo, junto aos incêndios, da necessidade de medidas mais urgentes e profundas dos líderes globais.

O que ele deseja é que os países ricos — e os maiores poluidores do mundo — se comprometam a remunerar aos emergentes pelos serviços de conservação florestal e pela redução de emissões de gases do efeito estufa.

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Embora trate o tema como prioritário em sua agenda internacional, Lula e seu governo vivem a contradição entre o apelo dos ambientalistas e a necessidade de garantir a renda da exploração dos combustíveis fósseis: a Petrobras tem aumentado sua produção de barris de petróleo, que atingirá o ápice em 2030.

Além disso, o presidente recebeu em reunião fora da agenda, em Nova York, dirigentes da petroleira Shell, que tem interesse em explorar poços na margem equatorial brasileira. O encontro foi revelado pela BBC News Brasil.

O silêncio

Já sobre América Latina, Lula disse que a região vive uma segunda década perdida e voltou a condenar o embargo unilateral dos EUA à Cuba, classificando como "injustificado", além de citar a grave situação do Haiti.

No entanto, o presidente se esquivou de falar sobre a Venezuela, que vive uma escalada de tensão depois de realizar eleições presidenciais cujo resultado anunciado pelo regime de Nicolás Maduro não foi reconhecido no cenário internacional, incluindo o Brasil.

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O tema gerou divisão entre os próprios diplomatas brasileiros: por um lado, alguns argumentavam que Lula deveria levantar o tema, até por querer liderar mediações para a solução. Por outro, auxiliares argumentavam que a plenária da ONU é polarizada demais e que qualquer citação ao assunto renderia críticas ao presidente.

Para Garman, "não falar sobre a Venezuela é um reconhecimento tácito que o brasil está numa posição muito difícil no assunto".

Já Brian Winter vê habilidade no presidente brasileiro ao saber quando se calar, já que, em suas palavras, Lula está em meio a um "jogo delicado de denunciar eleições fraudulentas sem romper relações com Caracas".

O tema foi trazido ao evento das Democracias que Lula co-patrocinou com a Espanha na tarde de terça. Quem o levantou foi o chileno Boric, que já criticou Lula por, em sua visão, não ser suficientemente crítico ao regime Maduro.

"Precisamos adotar uma única posição de paises progressista. Violação de Direitos Humanos não podem ser julgados conforme a cor do ditador de turno que o violar, ou presidente que os violar. Seja Netanyahu, em Israel, ou Maduro na Venezuela, Ortega, na Nicaragua ou Putin, na Rússia. Quer se autodefinam de esquerda ou direira, o que sejam. Nós progressistas precisamos ser capazes de defender princípios", disse Boric. Diplomatas brasileiros temiam que o assunto dominasse a reunião, já que o espanhol Sanchéz recentemente concedeu asilo ao presidenciável oposicionista Edmundo González.

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"Acho que as vezes fracassamos porque não usamos a mesma medida pra julgar aqueles que estão do nosso lado. Já aconteceu muitas vezes na América Latina e nos prejudicou muito, já conversei muito com Lula sobre isso, como a venezuelização da nossa política causou prejuizo pras esquerdas", finalizou Boric.

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