Na opinião de seis em cada dez brasileiros, "os direitos humanos apenas beneficiam pessoas que não os merecem, como criminosos e terroristas". O percentual de concordância com tal afirmação no Brasil é mais alto do que em outros países. Os dados são de uma pesquisa inédita do instituto Ipsos, obtidos com exclusividade pela BBC News Brasil.
A pesquisa "Human Rights in 2018 - Global Advisor" da Ipsos, foi feita em 28 países, incluindo o Brasil, com 23,2 mil entrevistados, entre os dias 25 de maio e 8 de junho. A margem de erro para o Brasil é de 3,1 pontos percentuais.
Ainda de acordo com o levantamento, 74% dos entrevistados acreditam que algumas pessoas tiram vantagem injusta sobre direitos humanos.
O levantamento foi feito online, o que limita sua representatividade à parcela da população que tem acesso à internet. Segundo dados do IBGE, em 2016 havia no Brasil 116 milhões de pessoas conectadas à rede, o equivalente a 64,7% da população com idade acima de dez anos.
No entanto, uma pesquisa sobre o mesmo assunto feita presencialmente em abril deste ano teve resultado similar. Ela mostrou que dois em cada três brasileiros acham que os direitos humanos defendem mais os criminosos que suas vítimas.
"Existe um ceticismo da amostra brasileira com relação aos direitos humanos", diz Rupak Patitunda, gerente de opinião pública na Ipsos.
Os brasileiros estão entre os que mais concordam com a frase "direitos humanos não significam nada no meu cotidiano" (28%), atrás apenas dos ouvidos na Arábia Saudita e na Índia.
Na definição da Organização das Nações Unidas (ONU), direitos humanos são aqueles aos quais todas as pessoas, sem distinção, deveriam ter acesso: direito à vida, à segurança, à liberdade, à saúde, à moradia, alimentação, liberdade de expressão.
Direitos devem ser protegidos
No entanto, a pesquisa indica também que os brasileiros reconhecem que é necessário defender esses direitos. Sessenta e nove por cento consideram que é importante que haja uma lei para protegê-los; três em cada dez entrevistados brasileiros (34%) concordam com a frase "todos no Brasil desfrutam dos mesmos direitos humanos básicos".
"A percepção é de que existe a necessidade de direitos humanos, mas as pessoas discordam da maneira como são aplicados. A pesquisa indica que as pessoas acham que eles não são aplicados às pessoas que os mereceriam e são aproveitados pelos que não merecem", completa Rupak.
A pesquisa avaliou a opinião das pessoas sobre quais direitos e quais grupos devem ser mais protegidos.
Crianças lideram o ranking global (56%) das que, na visão dos entrevistados, mereceriam a proteção dos direitos humanos. Em seguida estão pessoas com deficiência (48%), idosos (44%), mulheres (38%) e pessoas de baixa renda (30%).
Brasileiros também citaram, em primeiro lugar, as crianças (56%). Em seguida vêm idosos (55%), pessoas com deficiência (46%), mulheres (39%) e pessoas de baixa renda (38%).
Os direitos que merecem defesa mais citados globalmente: a liberdade de expressão (32%), direito à vida (31%), direito à liberdade (27%), direito à igualdade de tratamento perante a lei (26%) e direito de não ser discriminado (26%).
No Brasil, o retrato ficou diferente. Os ouvidos citaram o direito à segurança (38%), direito à vida (36%), direito das crianças à educação gratuita (32%), direito à liberdade da escravidão ou do trabalho forçado (29%) e direito de não ser discriminado (28%).
Direitos humanos são mais do que segurança pública
O sociólogo e professor da USP Sergio Adorno, afirma que há no Brasil um problema de compreensão do que são, exatamente, direitos humanos. Para ele, o conceito é mais associado à segurança pública, quando, na verdade, refere-se a diversas outras áreas com as quais os brasileiros se preocupam.
"Se as pessoas pensarem os direitos humanos de forma mais ampla - e mais correta - de modo a incluir aí direito à escola, emprego, habitação, saúde, elas poderão avaliar melhor o que elas consideram que está ou não sendo garantido. Direitos humanos é o direito à dignidade", diz ele.
O Brasil está mais ou menos no meio do ranking de países ouvidos na pesquisa quando a questão é conhecimento geral sobre direitos humanos, mas a proporção não é alta. Sessenta e um por cento disseram saber algo ou muito, e 30% disseram saber pouco ou nada sobre o assunto.
O sociólogo acha que há uma explicação histórica para essa visão restrita do que o conceito significa. "Quando houve a transição da ditadura para a democracia, houve um conflito entre aqueles que haviam lutado pela democracia e os que ficaram presos à herança da ditadura", diz. As pessoas que articularam a transição democrática também defendiam a luta pelos direitos humanos.
"Faço a autocrítica de que, naquele momento, nós, militantes dos direitos humanos, enfatizamos muito a questão da violência como herança da ditadura - a violência da polícia, das prisões, a ideia de que todo indivíduo, mesmo tendo cometido um crime tem direito a uma defesa."
"Nessa trajetória política e discursiva, aqueles que se identificavam com a ditadura articularam muito estrategicamente essa identidade entre direitos humanos e direitos de bandidos, como se estivéssemos dizendo 'estamos defendendo os bandidos contra o cidadão de bem'. Ficou muito difícil desarticular essa armadilha", diz ele.
Polarização e eleições
Ele avalia que, à medida que a democracia foi se consolidando, essa associação entre direitos humanos e a proteção a criminosos ficou mais discreta no imaginário da população, mas agora, com tanta polarização, ressurge. "O que estava soterrado na consciência coletiva reapareceu".
A dificuldade de "desmontar a armadilha" segue até hoje, diz. "É preciso repensar estratégias. O grande desafio é sobre como transformar direitos humanos em matéria de sensibilidade coletiva. [O conceito de] direitos humanos deveria pegar na pele das pessoas. Como vamos convencer governantes de que sem proteção de direitos humanos não se avança na democracia? Há também um desafio de comunicação. Continuamos com dificuldade de romper essa identificação de direitos humanos com direitos de bandidos. Está claro que a política atual de enfrentamento à violência está errada. É preciso deixar isso claro."
Adorno diz que essa situação pode afetar a decisão das pessoas na hora do voto. "Para uma pessoa que sofreu uma agressão, que foi vítima de alguma violência, a questão da segurança é muito sensível. Para ela, o governante tem que por uma polícia em cada porta. No entanto, a segurança não é a única preocupação. A maior é o desemprego. Numa situação de precarização, a família perde a capacidade de cuidar de seus filhos."