Mandetta deixa Ministério da Saúde após um mês de conflito com Bolsonaro: relembre os principais choques

Entrevista concedida pelo ministro no domingo (12/04) teria sido a gota d'água; presidente e ministro divergem publicamente sobre isolamento social e uso da cloroquina.

16 abr 2020 - 16h36
(atualizado às 16h44)

O médico e ex-deputado federal Luiz Henrique Mandetta não é mais o ministro da Saúde. A demissão foi anunciada pelo próprio ministro, no Twitter, nesta quinta-feira (16/04).

"Acabo de ouvir do presidente Jair Bolsonaro o aviso da minha demissão do Ministério da Saúde. Quero agradecer a oportunidade que me foi dada, de ser gerente do nosso SUS, de pôr de pé o projeto de melhoria da saúde dos brasileiros e de planejar o enfrentamento da pandemia do coronavírus, o grande desafio que o nosso sistema de saúde está por enfrentar", disse ele na rede social.

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Em outro tuíte, ele agradeceu à equipe com que trabalhou no ministério e desejou êxito ao sucessor.

Mandetta deixa o cargo depois de passar um mês sendo alvo da "fritura" do presidente da República.

No jargão de Brasília, o termo se refere a um conjunto de gestos (neste caso, do chefe do Executivo) que têm por objetivo sinalizar o desapreço ou desconfiança em um subordinado.

A relação entre o presidente e o agora ex-ministro já estava ruim, mas, segundo interlocutores de ambos, se tornou insustentável no domingo (12).

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Em entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo, Mandetta disse que esperava que ele e o presidente da República pudessem ter "uma fala única, unificada".

Depois da entrevista ao Fantástico, Mandetta deixou de contar com o apoio da ala militar do Palácio do Planalto, que até então vinha sendo a fiadora da sua permanência no cargo.

"Isso (a divergência entre ele e Bolsonaro) leva para o brasileiro uma dubiedade: ele não sabe se escuta o ministro da Saúde, se ele escuta o presidente (da República), quem é que ele escuta", disse Mandetta, referindo-se às falas do presidente contra as medidas de isolamento social, defendidas pelo Ministério e por ele.

Esvaziamento e tensão

Além do isolamento, os dois também divergem em outro assunto: o uso da cloroquina para o tratamento da doença provocada pelo novo coronavírus.

O presidente da República vem defendendo, inclusive em pronunciamentos em rede nacional, que a droga seja usada desde os primeiros sintomas da covid-19. Já o protocolo atual do Ministério da Saúde é de que a droga só seja usada em casos graves e de pacientes internados.

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Bolsonaro e Mandetta se conhecem há anos - os dois foram contemporâneos na Câmara dos Deputados desde 2011, e seus gabinetes ficavam a poucos metros um do outro. Mas, desde o início da crise do novo coronavírus, Bolsonaro vem trabalhando para esvaziar politicamente o trabalho do ministro.

As altercações entre os dois remontam a meados do mês de março. No dia 15, um domingo, Bolsonaro decidiu interromper o isolamento no qual se encontrava após uma viagem aos Estados Unidos, para cumprimentar manifestantes em frente ao palácio da Alvorada - a própria realização do protesto já contrariava as orientações do Ministério da Saúde, que já desaconselhava aglomerações.

Naquele momento, Bolsonaro já confidenciava a auxiliares que estava incomodado com o protagonismo de Mandetta diante da crise provocada pela chegada do novo coronavírus ao Brasil.

Naquela semana, o ministro concedeu uma entrevista a jornalistas ao lado do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), adversário político de Bolsonaro - e o gesto irritou profundamente o ocupante do Planalto.

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O chefe do Executivo também teria demandado de Mandetta que adotasse um discurso político e mais afinado com o Palácio do Planalto. A recusa do ministro em fazê-lo contribuiu para aumentar o descontentamento de Bolsonaro.

A BBC News Brasil preparou uma retrospectiva dos principais momentos da "fritura" de Mandetta.

Abaixo, uma cronologia, a partir da demissão, dos principais lances na contenda entre o presidente e ministro.

Abril

Quinta-feira (16): Bolsonaro recebe um dos candidatos a substituto de Mandetta, o médico oncologista Nelson Teich. É o primeiro encontro do presidente com um possível substituto para o cargo.

Além dele, também estão cotados para a posição outros médicos. É o caso do cardiologista Otávio Berwanger (do Hospital Israelita Albert Einstein); de Claudio Lottenberg, presidente do Conselho do Einstein; e de Ludhmila Hajjar, cardiologista.

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Quarta-feira (15): Mandetta admite pela primeira vez que deverá ser demitido em breve. A confissão foi feita durante uma reunião com deputados que integram uma comissão externa da Câmara, voltada para o acompanhamento da pandemia de covid-19.

No fim da tarde, Mandetta concedeu entrevista a jornalistas em tom de despedida. "Ele (Bolsonaro) claramente externa que quer outro tipo de posição do Ministério da Saúde. Eu, baseado em ciência, tenho esse caminho para oferecer. Fora desse caminho, tem que achar alternativas", disse.

No mesmo dia, o então secretário de Vigilância em Saúde do Ministério, Wanderson de Oliveira, chegou a pedir demissão - mas o pedido foi recusado por Mandetta.

Domingo (12): Em entrevista ao programa dominical Fantástico, da TV Globo, Mandetta disse que as diferenças de posicionamento entre ele e Bolsonaro estavam prejudicando o enfrentamento à pandemia.

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A população estaria diante de uma "dubiedade" do governo, sem saber quais orientações seguir: as do Ministério da Saúde ou as do presidente da República.

"Ela (relação com Bolsonaro) preocupa porque a população olha e fala assim: 'olha, vem cá, será que o ministro da Saúde é contra o presidente, né?'. E não há ninguém contra ou a favor de nada. É o que eu digo, nosso inimigo, nosso adversário, quem a gente tem que ter foco para falar 'esse aqui é o nosso problema', é o coronavírus", disse Mandetta ao Fantástico.

A entrevista ao programa da Globo foi concedida do Palácio das Esmeraldas, sede do governo do Estado de Goiás - o governador do Estado, Ronaldo Caiado (DEM), rompeu publicamente com Bolsonaro por conta das posições do presidente diante da pandemia.

Sexta (10): Bolsonaro volta a dar um passeio por Brasília - provocando inclusive uma aglomeração de seus apoiadores, o que contraria as diretrizes do Ministério da Saúde. Naquele dia, o presidente da República foi ao Hospital das Forças Armadas (HFA); depois a uma farmácia no bairro Sudoeste de Brasília. Terminou o passeio com uma visita ao filho Jair Renan, que mora em um prédio residencial no mesmo bairro.

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Quinta (09): O ex-ministro Osmar Terra "vazou" uma conversa telefônica sua, na qual ele conversa com o ministro Onyx Lorenzoni (Cidadania) sobre a substituição de Mandetta.

A conversa foi divulgada porque Terra aceitou uma ligação do repórter Caio Junqueira, da CNN Brasil, e aparentemente esqueceu o telefone ligado enquanto conversava com Onyx em outra linha.

No diálogo, Terra parece oferecer ajuda a Onyx para remover Mandetta do posto. "Eu ajudo, Onyx. E não precisa ser eu, o ministro. Tem mais gente que pode ser", diz Terra num trecho da conversa.

Em outro momento, os dois comentam sobre uma reunião na qual Mandetta discutiu com Bolsonaro naquela semana. "O que aconteceu na reunião eu não teria segurado, eu teria cortado a cabeça dele (Mandetta)", diz Onyx.

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Quarta (08): Bolsonaro usa um pronunciamento em rede nacional de Rádio e TV para voltar a defender o uso da cloroquina desde o começo do tratamento das pessoas infectadas. O presidente também voltou a criticar as medidas de distanciamento social defendidas pelo Ministério da Saúde.

Na fala, Bolsonaro disse que as medidas de distanciamento social eram de responsabilidade "exclusiva dos governadores", e que a União não foi consultada.

Segunda (06): A tensão entre o presidente da República e o ministro continuou a crescer. O jornal O Globo chegou a dizer que Bolsonaro demitiria o ministro naquele dia - o que todavia não se concretizou. Em pronunciamento à imprensa por volta das 20h30, Mandetta confidenciou que servidores do Ministério da Saúde já tinham "limpado as gavetas", inclusive as dele, para deixar o trabalho.

Naquela tarde, vários servidores do ministério deixaram o trabalho e foram para a frente do prédio onde a pasta funciona no centro de Brasília, pedindo a permanência do ministro.

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Mais cedo naquele dia, Bolsonaro realizou um almoço no Palácio do Planalto com o deputado federal e ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB-RS) - e sem a presença de Mandetta. À época, Terra era mencionado como um possível substituto para Mandetta. Assim como o presidente, o deputado (que foi ministro da Cidadania de Bolsonaro até 13 de fevereiro deste ano) defende que medidas de distanciamento social são inócuas.

Domingo (05): Bolsonaro diz que "algo subiu à cabeça" de alguns de seus ministros, e faz ameaça velada a Mandetta.

"A hora deles vai chegar", disse Bolsonaro a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada, a residência oficial do presidente da República. "A minha caneta funciona", disse Bolsonaro.

"Algumas pessoas no meu governo, algo subiu a cabeça deles. Estão se achando. Eram pessoas normais, mas de repente viraram estrelas. Falam pelos cotovelos. Tem provocações. Mas a hora deles não chegou ainda não. Vai chegar a hora deles. A minha caneta funciona. Não tenho medo de usar a caneta nem pavor. E ela vai ser usada para o bem do Brasil", disse o presidente.

Pouco depois, no começo da noite, Mandetta foi procurado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Ao repórter Mateus Vargas, o ministro disse que "estava dormindo" e não tinha visto as declarações de Bolsonaro em frente ao palácio. "Amanhã eu vejo, tá?", disse ele.

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Sábado (04): pesquisa Datafolha mostra melhora na avaliação do trabalho de Mandetta, e queda no de Bolsonaro.

A pesquisa foi publicada na edição de sábado do jornal Folha de S.Paulo. Segundo o levantamento, que foi às ruas entre 1º e 3 de abril, o desempenho de Mandetta à frente do Ministério da Saúde é apoiado hoje por 76% dos brasileiros - um aumento de mais de 20 pontos percentuais ante os dias 18 a 20 de março. Naquele momento, o desempenho de Mandetta era apoiado por 55%.

Já o desempenho de Bolsonaro em relação ao coronavírus era considerado ruim ou péssimo por 39% das pessoas - e ótimo ou bom por apenas 33%.

Governadores se tornaram os principais antagonistas de Bolsonaro no debate sobre a epidemia nas redes sociais
Governadores se tornaram os principais antagonistas de Bolsonaro no debate sobre a epidemia nas redes sociais
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Sexta-feira (03): Mandetta participa de entrevista com jornalistas e aconselha brasileiros a seguir orientações dos governos dos Estados - no mesmo dia em que Bolsonaro criticou as ações dos governadores no enfrentamento à crise.

"Nós recomendados que as pessoas, todas elas, atendam às recomendações dos governadores dos seus estados, que tem os melhores números, os melhores indicadores para propor as medidas. Que cada um faça aquilo que a sua consciência sobre a situação que está aí", disse Mandetta, à tarde.

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Nos últimos dias, os governadores se tornaram os principais antagonistas de Bolsonaro no debate sobre a epidemia nas redes sociais, conforme mostrou levantamento do Dapp-FGV.

Quinta-feira (02): Em entrevista à rádio Jovem Pan, Bolsonaro faz a primeira crítica direta a Mandetta. O presidente da República diz que "falta humildade" ao subordinado, e frisa que "existe uma hierarquia" entre ele e o ministro.

"O Mandetta já sabe que a gente está se bicando tem algum tempo. Eu não pretendo demiti-lo no meio da crise, não pretendo. Agora, ele é uma pessoa que em algum momento extrapolou. Ele sabe que tem uma hierarquia entre nós", disse o presidente.

Paciente com coronavírus devem ficar em quarentena
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Março

Segunda-feira (30): O governo determina que todas as entrevistas a jornalistas aconteçam no Palácio do Planalto - e não mais no Ministério da Saúde, como vinha sendo até então.

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A medida foi percebida por muitos na Esplanada como uma forma de restringir a autonomia do ministro.

Um ofício sobre o assunto foi distribuído pelo ministro chefe da Casa Civil, Braga Netto, determinando que "todas as coletivas de imprensa dos ministérios ou Agências Federais sobre o Covid-19 deverão ser realizadas no Salão Oeste do Palácio do Planalto".

"Toda nota à imprensa a ser divulgada pelas ascom (assessorias de comunicação) somente poderá ser publicada após coordenação com a Secom para que haja unificação da narrativa", diz ainda o ofício - divulgado pelo jornal O Globo.

Sábado (28): Em entrevista a jornalistas, Mandetta defendeu a necessidade do isolamento social, e enfatizou o assunto pelo menos três vezes. A fala representou uma mudança no discurso do ministro - dias antes, ele tinha dado declarações alinhadas ao Planalto, defendendo a política de isolamento somente para idosos e pessoas vulneráveis.

Naquele sábado, a entrevista foi precedida por uma reunião tensa no Palácio do Planalto envolvendo Mandetta, Bolsonaro e outros ministros, segundo registraram a agência de notícias Reuters e a colunista do site de notícias G1, Andreia Sadi.

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No encontro, Mandetta disse a Bolsonaro que parasse de minimizar a gravidade da epidemia, e reafirmou ao presidente que não defenderia mais o "isolamento vertical" - isto é, apenas de idosos e pessoas vulneráveis.

Domingo (15): Contrariando todas as recomendações feitas até então pelo Ministério da Saúde para conter a epidemia, Bolsonaro deixou o Palácio da Alvorada e foi à rua cumprimentar manifestantes.

O gesto veio após uma semana já tensa, quando esperava-se que o presidente desestimulasse seus apoiadores a sair às ruas naquele domingo - mas ele não o fez.

O protesto, originalmente contra o Supremo Tribunal Federal e contra o Congresso, tornou-se o primeiro símbolo mais concreto da divergência entre Bolsonaro e Mandetta.

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