O economista Javier Milei, do movimento A Liberdade Avança, venceu as eleições presidenciais na Argentina neste domingo (19/11). Ele venceu o ministro da Economia, o peronista Sergio Massa, que admitiu a derrota, mesmo antes dos resultados oficiais.
A vitória é considerada histórica tanto por se tratar de um triunfo sobre a tradicional corrente peronista quanto por levar ao poder um candidato com propostas e declarações vistas como radicais.
No Brasil, Milei se notabilizou não apenas por propostas como a de dolarização da economia argentina e o fechamento do Banco Central do país. Por aqui, o presidente eleito argentino também ganhou notoriedade por suas críticas ao atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - a quem chamou de "presidiário" -, ao Mercosul e à China.
Mas, a despeito do que tenha dito sobre Lula ou a respeito das relações com o Brasil, Milei vai assumir uma Argentina com uma economia extremamente conectada à brasileira.
Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) do Brasil mostram que a Argentina é, há anos, o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas da China (1º) e os Estados Unidos (2º).
Em 2022, por exemplo, o Brasil exportou US$ 15,3 bilhões em produtos ao país vizinho. Isso é o equivalente a 4,5% de todas as exportações brasileiras.
No mesmo ano, o Brasil importou US$ 13,09 bilhões, o que gerou um saldo positivo para a balança comercial nacional de US$ 2,21 bilhões.
Além disso, a Argentina é um dos membros fundadores do Mercosul, junto com Brasil, Uruguai e Paraguai.
Impactos para o Brasil
As declarações de Milei sobre como seriam as relações entre Argentina e Brasil caso ele vencesse as eleições são vistas com ceticismo e preocupação por analistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Em entrevista ao jornalista norte-americano Tucker Carlson, em setembro deste ano, Milei disse que Lula não entraria no grupo de "defensores da liberdade".
"Eu sou um defensor da liberdade, da paz e da democracia. Os comunistas não entram aí. Os chineses não entram aí. [Vladimir] Putin não entra aí. Lula não entra aí. Nós queremos ser o farol moral do continente. Os defensores da liberdade, democracia e diversidade e da paz. Nós do Estados não vamos promover nenhum tipo de ação com comunistas e nem socialistas", disse o então candidato.
Em agosto deste ano, Milei disse em entrevista à plataforma Bloomberg Linea que acredita ser necessário "eliminar" o Mercosul.
"De fato, acho que temos que eliminar o Mercosul porque é uma união aduaneira defeituosa que prejudica os argentinos de bem. É um comércio administrado por estados para favorecer empresários", disse Milei à época.
As críticas de Milei ao governo Lula aumentaram na reta final da campanha, especialmente depois de uma reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo que disse que a gestão do petista havia se empenhado pela liberação de um empréstimo internacional à Argentina como forma de favorecer a campanha de Sergio Massa. O Palácio do Planalto negou interferência do governo com o objetivo de interferir nas eleições argentinas.
Nesse contexto de tensão, analistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que seria importante não levar ao pé da letra algumas das declarações de Milei e que ele, na presidência, se verá obrigado a adotar uma postura mais pragmática e menos ideológica.
"Todos sabemos que nas campanhas muito polarizadas [...] os candidatos tendem a ir aos extremos [...] O que se fala na campanha não é necessariamente o que será efetivamente implementado", disse o diretor-presidente da Câmara de Comércio Brasil-Argentina, Federico Servideo, à BBC News Brasil.
Para Silvio Campos Neto, economista e sócio da consultoria Tendências, apesar da retórica de Milei, o Brasil pode obter ganhos com a sua vitória.
"Um ponto positivo talvez seja a possibilidade deles [argentinos] experimentarem uma mudança nos rumos na condução da economia que, ao longo de várias décadas, na verdade tem seguido uma linha na direção de um uso muito grande de mecanismos de Estado para dar impulso econômico", disse Campos Neto à BBC News Brasil.
A tese é a de que, se o receituário de Milei der certo e a Argentina superar a crise econômica, isso poderá ter efeitos positivos na economia brasileira, já que o Brasil é um grande exportador de produtos para o país.
"Se a macroeconomia Argentina se estabiliza, o Brasil ganha um mercado importante para as exportações de produtos industrializados. Lembremos que a Argentina é e tem sido o principal destinatário de produtos industrializados exportados pelo Brasil", disse Federico Servideo.
Os especialistas apontam que até mesmo uma das propostas consideradas mais radicais de Milei, a dolarização total da economia argentina, poderia ter efeitos positivos para o Brasil, se implementada com sucesso.
Eles ponderam, no entanto, que a medida é complexa e dificilmente poderia ser feita de forma imediata porque, atualmente, a Argentina não tem reservas cambiais em dólares em volume suficiente.
"Se essa implementação for bem sucedida, isso seria algo bem-vindo porque facilitaria as transações comerciais da Argentina com o resto do mundo, uma vez que ela passaria a utilizar uma moeda mundialmente aceita", disse Silvio Campos Neto.
"Se houvesse a dolarização, teríamos só uma cotação [do dólar] e isso facilitaria tremendamente a relação comercial entre os países", disse Federico Servideo.
Os analistas, no entanto, avaliam a gestão de Milei também poderia resultar em perdas para o Brasil.
A maior parte delas, eles ressaltam, seriam no campo político.
Eles temem que o desalinhamento ideológico entre Milei, que é de direita, e Lula, de esquerda, possa atrapalhar planos do governo brasileiro.
Um dos planos brasileiros que Milei pode atrapalhar seria o ingresso da Argentina nos Brics, grupo inicialmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Em agosto deste ano, o grupo anunciou o ingresso de seis novos membros, entre eles a Argentina, em um movimento que teve o Brasil como principal articulador.
Em declarações à imprensa, no entanto, Milei e a candidata que ficou em terceiro no primeiro turno, Patrícia Bullrich, disseram que retirariam a Argentina dos Brics caso fossem eleitos. Ela declarou apoio a Milei no segundo turno das eleições.
Para o professor de Política da América Latina na Universidade de Buenos Aires Ariel Goldstein, a incorporação da Argentina aos Brics é uma parte central da estratégia do presidente brasileiro para a sua liderança na América do Sul e na América Latina, e, por isso, "Lula também está tão preocupado".
Outra possível perda do Brasil seria uma demora ou até mesmo a inviabilidade do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, negociado desde 1999.
Em 2019, o acordo foi fechado entre os dois blocos, mas ainda precisava passar por um processo de revisão jurídica.
Neste ano, o bloco europeu enviou uma carta com exigências na esfera ambiental ao Mercosul que bloquearam o andamento dessa etapa.
Como o acordo vem sendo negociado pelos quatro países do Mercosul em conjunto, se Milei retirar a Argentina do bloco, como prometeu, isso poderia ter impactos no seu andamento.
"O acordo está com muitas dificuldades [...] Mas é fato é que uma fragilização do Mercosul colocaria em xeque esse acordo. Poderia atrasar ou mesmo eliminar qualquer possibilidade nesse sentido", disse Silvio Campos Neto.
"Minha principal preocupação é que esse desalinhamento ideológico prejudique o relacionamento comercial e que, inclusive, possa vir a prejudicar a convalidação do acordo entre Mercosul e União Europeia e isso pode vir a acontecer", disse Federico Servideo.