Morte de filho de doméstica obriga Brasil a repensar racismo

5 jun 2020 - 16h41
(atualizado às 17h34)

O menino Miguel, de 5 anos, caiu do nono andar quando estava sob a guarda da empregadora de sua mãe. Tragédia causa indignação, mas também ceticismo de que haverá justiça contra patrões ricos e influentes de Pernambuco."Enquanto as redes estavam subindo as tags "blacklivesmatter", perdemos mais uma criança negra para o racismo enraizado neste país, para a desumanização de pessoas negras", comenta a historiadora Larissa Ibúmi sobre a morte de Miguel Otávio Santana da Silva. "[São] as mesmas estruturas coloniais, aquelas que mantêm mulheres negras a serviço da elite branca, as sinhás."

Vista do Recife a partir de Olinda
Vista do Recife a partir de Olinda
Foto: DW / Deutsche Welle

O trágico incidente ocorreu em 3 de junho no Recife, capital de Pernambuco. A doméstica Mirtes Renata Souza apareceu para trabalhar num luxuoso condomínio. Como as creches estão fechadas devido à pandemia de coivd-19, ela trouxera junto o filho Miguel, de cinco anos de idade.

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A mando da patroa, Sarí Gaspar Côrte Real, Mirtes levou a cadela da família para passear, deixando o filho no apartamento. Quando esse pediu para estar com a mãe, Sari o deixou pegar sozinho o elevador. As câmeras do circuito interno do edifício registram como o menino sobe até o nono andar e escala uma grade do corredor. Pouco minutos mais tarde, ele cai de uma altura de 35 metros para a morte.

A empregadora foi acusada de homicídio culposo, mas se encontra em liberdade após pagar fiança de R$ 20 mil. Em entrevista à TV Globo, Mirtes desabafou: "Ela confiava os filhos dela a mim e à minha mãe. No momento em que confiei meu filho a ela, infelizmente ela não teve paciência para cuidar, para tirar [do elevador]."

Miguel era o único filho da doméstica. Após a morte, expressaram-se nas redes sociais luto, consternação, mas também ódio e cólera. Sob o hashtag #JusticaPorMiguel, políticos e ativistas de todo o país se manifestaram. Uma petição online reuniu mais de 680 mil assinaturas em menos de 24 horas.

Herança maldita

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A rapper, autora e professora de história Joyce Fernandes escreveu no Facebook e Instagram: "Uma vida novinha foi interrompida pelo ranço dessa branquitude elitista maldita, que compra tudo com essa merda de dinheiro herdado pelos seus vermes antepassados que escravizaram meu povo".

Até 2009, ela própria trabalhava como doméstica. Sob o pseudônimo artístico Preta-Rara, ela é adorada por milhares de afro-brasileiros. No Facebook, criou a página "Eu, empregada doméstica", e lançou um livro homônimo. Atualmente a ativista se apresenta em diversos programas de televisão.

Em comunicado, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas frisou a negligência da empregadora Sarí Côrte Real: "Que tipo de pessoa deixa uma criança aflita, chamando pela sua mãe, subir qualquer andar de um prédio? O mesmo de tipo de pessoa que acha mais importante ter sua unha pintada e seus cachorros passeados do que preservar a vida das mulheres contratadas para realizar tal serviço."

"Nos não aceitamos que a vida dos cachorros de dona Sari e o brilho das suas unhas valham mais do que a vida de um menino negro e de sua mãe trabalhadora doméstica!", diz o comunicado.

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Equiparação no papel

Há apenas cinco anos, em 2º de junho de 2015, entrou em vigor no país a PEC das Empregadas Domésticas, pela primeira vez equiparando-as a outros trabalhadores. Até então, elas eram tratadas como mão-de-obra de segunda classe, incapazes de exigir, por exemplo, pagamento de horas extras ou seguro-desemprego.

Apesar da equiparação perante a lei, mantém-se a prática de discriminação das domésticas no Brasil. Isso se evidencia especialmente na crise do coronavírus: a primeira vítima da covid-19 no Rio de Janeiro foi justamente uma empregada.

Cleonice Gonçalves, de 63 anos, diabética, se contaminou com sua empregadora, que passara férias na Itália em março. Esta se submeteu ao exame de coronavírus ao retornar, mas não comunicou o resultado à criada. Cleonice morreu em 19 de março num hospital do município de Miguel Pereira, a duas horas do Rio, onde morava com o filho.

Também os patrões de Mirtes Renata Souza estavam infectados com o coronavírus. Num vídeo feito por ele mesmo em 22 de abril, Sérgio Hacker, marido de Sarí e prefeito de Tamandaré, explicava que seus testes de covid-19 haviam sido positivos. Apesar disso, a doméstica não foi dispensada.

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Muitos brasileiros duvidam que o casal venha a ser realmente responsabilizado pela morte do pequeno Miguel. "Se iludem os que acham que a #JustiçaPorMiguel será feita com facilidade", escreveu no Twitter o deputado Túlio Gadêlha (PDT-PE). "As famílias Corte Real e Hacker são famílias tradicionais da política pernambucana com muito poder e influencia nas instituições. Vcs verão que Pernambuco ainda vive sob o comando de oligarquias familiares."

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