A morte da vereadora carioca Marielle Franco (Psol-RJ), alvejada na noite dessa quarta-feira após sair de um debate com mulheres negras no centro do Rio de Janeiro, é "definitivamente chocante", mas infelizmente não chega a surpreender quem acompanha as estatísticas de violência do Estado.
Quem afirma é o italiano Maurizio Giuliano, diretor do Centro de Informações da Organização das Nações Unidas para o Brasil, com sede no Rio de Janeiro.
"No Brasil, um jovem afrodescendente é morto a cada 21 minutos", disse Giuliano em entrevista à BBC Brasil, por telefone, na noite desta terça. "Apesar de chocante, e certamente chocar os seguidores de Marielle, muito infelizmente isso reflete as estatísticas."
A morte a tiros da quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro, eleita em 2016 com 46.502 votos, gerou uma onda de comentários e condolências que incluiu esferas federais, estaduais e municipais.
Em nota oficial, o Palácio do Planalto afirmou que acompanhará toda a apuração e que "o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, falou com o interventor federal no Estado, general Walter Braga Netto, e colocou a Polícia Federal à disposição para auxiliar em toda investigação".
Já a Secretaria de Segurança Pública do Estado informou que "determinou à Divisão de Homicídios ampla investigação sobre os assassinatos da vereadora Marielle Franco e de Anderson Pedro Gomes (motorista da vereadora), além da tentativa de homicídio da assessora que a acompanhava".
A Prefeitura do Rio de Janeiro decretou luto de três dias.
"A honradez, bravura e espírito público dessa atuante vereadora serão sempre um exemplo", escreveu o prefeito da cidade, Marcelo Crivella, pelo Twitter. "Não vamos deixar que sua trajetória seja esquecida, não permitiremos que esse crime fique impune."
O Psol, por sua vez, disse que "uma mulher, negra, mãe e defensora da igualdade, nascida e criada na Maré, foi tombada" e pediu "imediata apuração dos fatos" diante de "tamanha brutalidade".
Violência contra negros e negras
Informações preliminares da Polícia Militar do Rio apontam que Marielle teria sido atingida por pelo menos quatro tiros na cabeça. A principal linha de investigação é a hipótese de execução.
"Acreditamos que as autoridades brasileiras vão trazer à luz o que aconteceu e por quê. Mas, de forma ampla, em todo o mundo, nós estamos preocupados com os desafios e riscos que defensores dos direitos humanos enfrentam", disse o diretor da ONU à BBC Brasil.
Giuliano é o representante oficial no Brasil do secretário-geral da ONU, António Guterres, por quem foi nomeado em abril do ano passado. Antes do Rio de Janeiro, o italiano passou por escritórios humanitários das Nações Unidas em países como Afeganistão, Paquistão, República Democrática do Congo, Sudão e Timor Leste.
À BBC Brasil, o diretor lembrou que, com ou sem intervenção federal no Rio, a "violência no Rio de Janeiro infelizmente não é algo novo".
"Seja antes ou durante o comando da segurança no Rio pelas Forças Armadas, os níveis de violência na cidade e especialmente nas favelas são extremamente altos. E as pessoas afrodescendentes são quem vive o pior disso", avaliou.
Segundo o Atlas da Violência 2017, divulgado pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 71 a cada 100 vítimas de homicídios no Brasil são negras.
Mulheres como Marielle Franco vêm ganhando protagonismo neste triste cenário: os assassinatos de mulheres negras cresceram 22%, entre 2005 e 2015, ao mesmo tempo em que a mortalidade de não-negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4%.
Críticas à violência nas favelas
Marielle Franco cresceu no Complexo da Maré e morava na Tijuca, na Zona Norte do Rio.
Formada em Sociologia pela PUC-Rio e mestre em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF), ela tinha como principal bandeira a defesa aos direitos humanos, com atenção especial a moradores de favelas, mulheres e afrodescendentes.
Em 15 meses na Câmara de Vereadores, ela apresentou 16 projetos de lei. Dois deles foram aprovados como leis concretas: um sobre a regulação de mototáxis, importante meio de transporte em favelas, e outro sobre contratos da prefeitura com organizações sociais de saúde, alvos frequentes de investigações sobre corrupção.
No final de fevereiro, Marielle se tornou relatora de uma comissão de vereadores que acompanha o trabalho de militares na intervenção federal na área de segurança do Rio.
No último dia 10, ela criticou publicamente uma série de operações policiais na favela de Acari, região com altos índices de violência na cidade.
"Precisamos gritar para que todos saibam o está acontecendo em Acari nesse momento. O 41° Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro está aterrorizando e violentando moradores de Acari. Nessa semana, dois jovens foram mortos e jogados em um valão. Hoje a polícia andou pelas ruas ameaçando os moradores. Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior", escreveu a vereadora nas redes sociais.
Marielle também era presidente da Comissão de Defesa da Mulher na Câmara carioca. Ela tinha 39 anos e deixa uma filha.