O dicionário 'esquecido' da Ditadura Militar que associava maconha a conspirações comunistas

BBC News Brasil encontrou glossário dos anos 70 que "ensina" policiais a identificar usuários de drogas e traficantes; Polícia Federal não possuía documento em seu acervo.

15 jan 2025 - 06h55
(atualizado às 08h16)
Glossário foi encontrado pela BBC News Brasil em acervo pessoal de funcionária da Universidade de Cambridge. Documento não constava de acervo oficial da Polícia Federal nem do Ministério da Justiça e Segurança Pública
Glossário foi encontrado pela BBC News Brasil em acervo pessoal de funcionária da Universidade de Cambridge. Documento não constava de acervo oficial da Polícia Federal nem do Ministério da Justiça e Segurança Pública
Foto: Reprodução/Arquivo pessoal / BBC News Brasil

O que significam estas frases abaixo?

"Acabei de castigar a coisa e fiquei de zonzeira."

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"O tesoureiro apareceu com a coisa agora."

"Nega de dar um finório ao pivete".

"Olha estas pintas, tudo acertado".

Acertou quem as relacionou, de alguma forma, à maconha.

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As frases estariam relacionadas ao consumo da droga e ao seu comércio ilegal e seriam usadas por traficantes e usuários na década de 70 no Brasil.

Assim anotou um inspetor da Polícia Federal no Glossário de Entorpecentes e Drogas Afins, livro atribuído ao Serviço de Repressão a Tóxicos e Entorpecentes, organização parte da estrutura da Polícia Federal responsável pela doutrina do tema na época, criado em 1964.

Dizer frases como essas já seria suficiente para que alguém pudesse ficar sob suspeita das autoridades.

O documento esquecido, encontrado pela BBC News Brasil, é um registro histórico do pensamento que guiou a atividade policial no início dos anos 70, em plena ditadura militar, durante a ascensão do fenômeno internacional da guerra às drogas.

O livro tentava organizar termos e conceitos que poderiam ser usados para identificar supostos criminosos e reflete um momento em que pouco se sabia na instituição sobre as drogas, seja sob o ponto de vista científico, seja no sentido de repressão ao tráfico. Um jornal chegou a chamar a obra de "a mais recente inovação no combate à onda de alucinógenos", em 1971.

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Jornais da época mostravam um cenário de ascensão do uso e comércio dessas substâncias, que preocupava autoridades na polícia e no governo. A interpretação de parte delas — inclusive do chefe do órgão de repressão às drogas que escreveu o glossário, segundo estes jornais — é que este fenômeno estava ligado a uma estratégia internacional do comunismo de "estímulo ao vício".

Trechos do documento seriam reproduzidos por outras autoridades policiais por pelo menos uma década depois da publicação — a reportagem encontrou, por exemplo, uma versão semelhante do glossário em um relatório sobre drogas produzido pela Polícia Militar de São Paulo nos anos 80.

Como chegamos ao glossário

Exemplar do glossário está em acervo pessoal
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

A reportagem teve acesso ao livro a partir do acervo pessoal de uma funcionária aposentada da Universidade de Cambridge (na Inglaterra), que pediu para não ser identificada. A origem da cópia é desconhecida.

O glossário não aparece no arquivo oficial da Polícia Federal, que não respondeu perguntas sobre o documento, como quantos exemplares foram produzidos, por não tê-lo encontrado no acervo.

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"Foi feita uma busca no acervo da biblioteca da Diretoria de Ensino da Academia Nacional de Polícia, bem como em seu arquivo depositário e não foi identificada a referida obra", disse a PF, em nota. A instituição não quis comentar o teor da obra.

O glossário também não foi encontrado no acervo documental do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Uma menção ao documento aparece no catálogo da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), mas o Ministério da Saúde diz que parte de seu acervo foi danificado e que este material se perdeu.

"Infelizmente, essa publicação estava nesse acervo. Apesar de ter sido catalogada, não há registros de como chegou ou quem doou", disse o órgão, em nota.

A reportagem buscou, então, confirmar a autenticidade do documento de duas formas: primeiro, por meio de notícias publicadas no início da década de 70, que citavam a criação do glossário e seu autor, o inspetor José Guimarães Alves.

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Depois, procurou cópias em outros acervos até encontrar outra edição do mesmo glossário, com um título diferente, mas com teor idêntico, na Biblioteca Embaixador Antonio Francisco Azeredo da Silveira, do Ministério das Relações Exteriores. Por fim, foi possível encontrar também uma outra edição na biblioteca da Câmara dos Deputados.

O historiador Jonatas Carvalho, doutor em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador na mesma instituição, diz que o glossário tem valor histórico importante.

Ele lembra que os documentos produzidos pelo Serviço de Repressão aos Tóxicos e Entorpecentes estão, na maior parte, desaparecidos, mas que o glossário provavelmente foi fruto de uma campanha nacional de combate às drogas, iniciativa do governo do presidente Emilio Garrastazu Médici (1969-1974).

"O glossário, sem dúvida, é um achado", diz Carvalho.

O termo "Assembléia" é descrito como uma reunião de "fumadores de maconha"
Foto: Reprodução/Arquivo pessoal / BBC News Brasil

'Assembleia', 'new left', 'cultura pop' e combate ao comunismo

Diversos termos do glossário fazem menção a um vocabulário político, sem relação direta com drogas.

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É o caso de "Assembleia", catalogado como "grupo de fumadores de maconha, meeting de viciados em maconha ou diamba", ou "contestação", que significaria, segundo o documento "protesto jovem, de conotação tóxica".

Há ainda outros exemplos: "ele é da política" significaria "da onda do fumo, linguagem de meliantes, tóxicos". Ou ainda "new left", traduzido como "nova esquerda, da pregação tóxica".

Outros termos são expressões usadas por jovens, também sem uma relação específica com uso ou comércio de drogas.

Alguns exemplos são a expressão estar de bobeira ("estar sob os efeitos de tóxicos", segundo o documento), transa ou transar ("troca de objetos por tóxicos"), cultura pop ("subcultura lisérgica" ou "contra-cultura canábica") e até mesmo curtição ("pormenores do efeito, as loucuras, fumar, tragar")

"Em meados de 1970 se afunila a relação entre drogas e subversão", diz Carvalho, da UFF.

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O pesquisador estudou o proibicionismo no Brasil a partir da criação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, surgida no Itamaraty em 1936, e lembra que desde aquela época já eram produzidos documentos semelhantes sobre o tema, mas que não tinham um foco específico em guiar a repressão.

"Este glossário parece ter um foco maior na orientação das forças de segurança", interpretou.

Notícias da época mostram que policiais eram orientados a se camuflar para encontrar os traficantes. "Os policiais usarão roupas de garis, vassouras, perucas ou então macacões de empresas distribuidoras de cerveja, gás e cigarro. Isso tudo visa a pegar os traficantes de surpresa", dizia uma nota do Jornal do Brasil em março de 1971.

Segundo glossário, os termos "transa" ou "transar" estavam relacionados à venda ou troca de objetos por drogas.
Foto: Reprodução/Arquivo pessoal / BBC News Brasil

O professor e pesquisador Pedro Camargos, mestre e doutorando em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), ressalta como o glossário ajuda a ilustrar a confusão existente à época entre o que é segurança contra crimes comuns e perseguição aos grupos políticos de oposição.

"Cria-se a possibilidade de combater, ao mesmo tempo, a criminalidade, mas também de ir atrás de jovens que pudessem estar envolvidos com movimentos de dissidência política, sob argumento de que eles estariam com drogas".

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Esta relação entre consumo de drogas e comunismo era estabelecida de forma explícita pelo próprio governo. O organizador do glossário, José Guimarães Alves, chegou a divulgar durante o seu mandato um folheto chamado "Os Tóxicos no Contexto da Guerra Revolucionária", que defendia que o comunismo internacional estimularia a juventude a se viciar em drogas, segundo jornais da época.

Segundo noticiou o Estadão em agosto de 1970, o Itamaraty elogiou a atuação de Guimarães e da PF e considerou "interessante" a tese do inspetor de que "o comunismo esgotou todos os tipos de guerras convencionais e parte agora para a guerra neurotoxicológica."

Recorte do Estadão, em 20 de agosto de 1970
Foto: Acervo Estadão/Estadão Conteúdo / BBC News Brasil

Cigarros de maconha: fininho, normal e bomba

Júlio Delmanto, doutor em história social pela USP e autor de Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil, afirma que o material lembra uma peça de humor, com teor pseudocientífico. "Ele procura informar, com um conteúdo altamente duvidoso, tanto sobre as propriedades das substâncias quanto sobre a sua cultura".

Ele cita, como exemplos, os termos "caquético canábico" (traduzido como "o fácies do vício canábico; apodrecimento dos pêlos, senilidade precoce e perda de simetria") e "bomba de alegria" (que é traduzido para "gás lisérgico").

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Delmanto destaca a tentativa do autor do glossário de passar a imagem de precisão, como se tentasse produzir uma obra técnica. Um exemplo é quando se diferencia o tamanho dos cigarros de maconha: fininho (uma grama), normal (1,7 grama) ou bomba (2,5 gramas).

"Sendo um policial, obviamente ele o faz (a descrição técnica e cultural das drogas) de forma absolutamente incompetente. Isso não deixa de ser muito representativo dos diversos fenômenos históricos e culturais que se entrecruzavam naquele momento (e até hoje) no consumo e na proibição de certas drogas."

Delmanto lembra ainda que, quando Guimarães ocupava o cargo e possivelmente publicou o glossário pela primeira vez (entre 1970 e 1971), a guerra às drogas ainda não estava plenamente configurada no Brasil.

"Esse material me parece simbólico desse momento, de uma repressão ainda meio raiz, meio Sargento Pincel (famoso personagem da série de TV Os Trapalhões). O que não exclui sua crueldade."

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Trecho do glossário com destaque ao termo "bomba"
Foto: Reprodução/Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Mestre em história pela Universidade de Brasília (UnB), Luiz Brandão pesquisou a relação entre drogas e política em sua dissertação de mestrado, cujo título é "Tóxico-subversão: anticomunismo e proibicionismo na construção do inimigo interno durante a Ditadura Militar no Brasil".

Ele vê uma tentativa, no glossário, de passar uma imagem de objetividade.

"É um material que vai circular apresentando-se como algo neutro, que vai apontar a política de drogas, não um material político. É uma autoridade da polícia que estudou o tema. Essa tentativa de sistematizar um léxico, além de apresentar um discurso que se pretende imparcial, acaba também estruturando a linguagem, oferecendo uma gramática para o debate."

Ele cita, como exemplo, o termo "Assembleia", classificado como um encontro para fumar maconha pelo glossário. "Circunscreve o debate dentro do léxico que os autores tentam apresentar. Se o seu filho ou filha está num curso na universidade e o chamam para uma assembleia, isso quer dizer (segundo a obra) que lá vai ter jovens fumando maconha, se entorpecendo, usando tóxicos."

Relatório da década de 80 produzido pela Polícia Militar do Estado de São Paulo traz citação ao glossário com gírias usadas por "usuários e traficantes de drogas"
Foto: Arquivo Nacional / BBC News Brasil

Falta de conhecimento entre os policiais

Guimarães Alves, organizador do glossário e chefe do setor responsável por drogas na PF naquela época, se queixava publicamente da falta de informação e de preparo dos policiais sobre o tema. "É lamentável a insipiência de nossos homens no tocante ao mínimo de conhecimento dos toxicômanos", disse ele, segundo notícia veiculada no Jornal do Brasil em maio de 1970.

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Ele também afirmou que a orientação da PF naquele momento era de fazer um trabalho "mais profilático" do que "repressivo".

O inspetor acreditava que uma campanha nacional "alertaria a juventude e faria ela engajar-se na luta que a Polícia Federal vem travando contra as drogas."

A primeira menção ao Glossário de Entorpecentes de Drogas Afins, organizado por ele, aparece em uma notícia dentro de uma edição do Jornal do Brasil de janeiro de 1971.

O contexto era a divulgação oficial da saída de Guimarães do cargo.

Um inspetor de polícia chamado Carl Grobman assumiria o cargo nos próximos dias. "Até a sua posse continuará respondendo pelo cargo o sr. Guimarães Alves, que preparou para seu sucessor um glossário toxicológico que contará, inclusive, com o linguajar usado pelos viciados", diz a nota.

Segundo esta notícia, Guimarães também deixou preparado um plano de ações para o sucessor, "com o objetivo principal de alertar o brasileiro para os males causados pelo uso da droga."

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A estratégia envolvia a estruturação da Polícia Federal para o combate às drogas e divulgação do trabalho para a população, com a publicação de artigos da "escalada nacional de repressão aos entorpecentes" para estudantes, um plano de destruição do "polígono nordestino da maconha", a realização de um congresso nacional de entorpecentes e sistematização de arquivos sobre o tema.

Outra notícia, publicada na mesma semana, dizia que o glossário sobre drogas também foi encaminhado à censura e diz que os termos deveriam ter a divulgação proibida em músicas, filmes, programas de televisão e charges de jornais pois, "são palavras que inspiram e disseminam a toxicomania".

A reportagem dizia que o glossário "vasculhou o Brasil e também o estrangeiro para se organizar em index de demonologia". O texto, que não é assinado, termina com uma crítica, afirmando que o glossário "vai tumultuar ainda mais as atividades da censura", pois "vai dar ocupação aos que acham que as palavras e não coisas é que constituem crime."

O glossário seria usado como referência por policiais por muitos anos. A reportagem encontrou uma menção em um relatório da Polícia Militar do Estado de São Paulo, do fim dos anos 80.
Foto: Polícia Militar do Estado de São Paulo / BBC News Brasil

Organizador da obra acendeu cigarro de maconha em palestra e precisou se explicar

José Guimarães Alves deixaria também para seu sucessor, segundo a notícia, um "museu de tóxicos" com folhas de coca (matéria-prima da cocaína), cocaína em pó e em comprimidos, pés de maconha, maconha em folhas secas e em forma de cigarro, vidros com comprimidos de LSD, dentre outros itens.

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O inspetor tinha o costume, segundo notícias da época, de levar maletas "estilo 007" em suas palestras e apresentar drogas para o auditório. Chegou ao ponto de acender cigarros de maconha "para que o público sentisse o seu cheiro".

Em suas falas, Alves citava diversos números, sem esclarecer a fonte, bem como dava dicas de como identificar usuários de drogas.

Em uma palestra realizada na Universidade de Brasília, em 1970, ele afirmou que metade dos jovens de todo o mundo estavam usando drogas, especialmente os europeus, e que o problema "está estreitamente relacionado com as feiras de sexo que se realizam na Europa, onde existem até livros de culinária ensinando a fazer comida impregnada de drogas", segundo notícia veiculada no Jornal do Brasil.

Teria dito ainda que "95% das jovens que usam drogas não são virgens" e que "70% dos fumantes de maconha não mais trabalham", segundo divulgado na imprensa da época.

Uma dessas palestras causou controvérsia, quando ele "queimou um pouco de maconha e distribuiu-a aos 200 alunos e professores presentes", na UnB, e "pediu depois permissão ao reitor para que um voluntário fumasse um pouco da erva." No mesmo dia, ele teria dito que era favorável à liberação da maconha, mas não no Brasil, por não ser um país desenvolvido.

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Alves teve de prestar esclarecimentos depois do evento, negando ter oferecido cigarros aos alunos. "O que o conferencista fez foi queimar maconha no auditório Dois Candangos (na UnB) para que os presentes sentissem o odor da erva e em qualquer ocasião pudessem eventualmente detectar o uso de maconha em ambientes fechados, como clubes e semelhantes", afirmou.

Chefe da área de combate às drogas na Polícia Federal ensina a detectar viciados em drogas. Reportagem no Estadão de 3 de dezembro de 1970
Foto: Acervo Estadão/Estadão Conteúdo / BBC News Brasil

Guimarães Alves também deu dicas sobre como identificar um usuário de drogas. O jornal O Estado de São Paulo registrou, em dezembro de 1970, uma notícia com uma lista de sinais, segundo o inspetor da PF, que incluíam, segundo o jornal publicou: não prestar atenção à aula, fazer deveres mal-feitos, ter aparência doentia, faces amarelas e órbitas abertas, fazer uso de óculos escuros em horas inadequadas e camisas de mangas compridas, pedir dinheiro emprestado aos colegas e roubar pequenos objetos, permanecer em lugares estranhos durante o dia, ficar irritado, com o nariz escorrendo e dormir na sala.

A mesma reportagem divulga um "levantamento feito em Brasília" apresentado por Guimarães Alves, que indicaria a porcentagem de uso de drogas por profissão, incluindo funcionários públicos, estudantes universitários, domésticas, prostitutas e outros.

A BBC News Brasil pediu à Polícia Federal, por meio da Lei de Acesso à Informação, o histórico funcional de Guimarães Alves, mas a instituição negou os dados sob alegação de que eles seriam "de cunho pessoal" , mesmo após mais de meio século depois de ele ter ocupado o cargo.

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Embora a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não resguarde informações profissionais de servidores públicos relacionadas aos cargos por eles ocupados na vida pública, a PF tem conseguido driblar a regra a partir de brechas legais diversas.

No portal da transparência há o registro de um único delegado da PF aposentado de nome José Guimarães Alves, com a informação de que ele faleceu em 2005 e deixou uma pensão de R$ 29,6 mil para a esposa. A família confirmou à reportagem que se trata da mesma pessoa (mais informações abaixo).

'Meu pai foi um pioneiro no país', diz filho de autor do glossário

Retrato do delegado José Guimarães Alves, autor do glossário, em conferência. A imagem é de 1971, segundo a família.
Foto: Arquivo Pessoal / BBC News Brasil

O empresário e consultor Disraelli Galvão, filho do delegado José Guimarães Alves, se surpreendeu ao saber, pela reportagem, sobre a repercussão que o glossário teve à época. Ele disse ter cópias do documento em casa, mas que não tinha conhecimento de sua influência.

"Nunca imaginei que esse livro tivesse sido sequer utilizado ou repercutido."

Galvão foi sócio-fundador da Seta Public Affairs Solutions, agência de relações públicas da FSB Holding, um dos maiores grupos do ramo no país, e hoje possui uma outra agência no mesmo setor.

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Ele defendeu a atuação do pai em entrevista à BBC News Brasil e acredita que o livro não tinha como objetivo fazer perseguição política. "Ele era uma pessoa muito integra e que nunca se dobrou aos comandos questionáveis dos generais da época da ditadura", disse.

Galvão diz que o pai tinha uma "missão única" de combater as drogas, como crença pessoal, que seria baseada em sua formação como teólogo, filósofo e advogado. "Foi um cara que se dedicou muito à igreja, um pastor adventista."

Para ele, o pai foi um pioneiro no combate às drogas no país. "Ele que idealizou e iniciou o combate organizado às drogas. A gente não via esse fenômeno de hoje, de crime organizado, com as facções presentes em todos os estados. Todo o início organizado de combate ao tráfico e drogas no Brasil se iniciou nesse movimento."

Ele acredita que o objetivo do pai com a produção do livro fosse técnica. "Nunca foi essa intenção (de uso contra um lado político), mas de identificar quais eram os termos, o vocabulário utilizado neste ambiente de consumo de drogas. Ele nunca se prestou a um papel de cumpridor cego de ordens para combate de quem quer que fosse."

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"Ele jamais se propôs a idealizar uma obra que fosse instrumentalizada para combater ideologias de um lado ou de outro. Esse não era o papel dele. Ele tinha uma formação intelectual muito sólida."

O filho diz que o pai teria, inclusive, se recusado a participar de invasões à UnB, por considerar o ato um "exagero". "Meu pai se indispôs, descumpriu algumas ordens, e a partir desse momento se iniciou o fim da carreira dele, por não se sujeitar de maneira cega às ordens que ele recebia."

Ele relata que, depois de aposentado, o pai trabalhou com a pecuária e o plantio de café em Goiás até falecer, em 2005, aos 75 anos.

O delegado que escreveu o livro, José Guimarães Alves, faleceu em 2005. Aposentado, ele passou a trabalhar com pecuária e plantio de café em Goiás
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Influência dos EUA

Na mesma época do lançamento do glossário começava a chamada "guerra às drogas" nos Estados Unidos, liderada pelo governo do presidente Richard Nixon.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A professora de relações internacionais da PUC-SP, Priscila Villela, lembra que a década de 70 foi o momento de desenvolvimento de uma política nacional de drogas. Em 1976 foi aprovada a lei dos tóxicos. "Foi a primeira lei autônoma a tratar do tema das drogas em todas as esferas, do cultivo ao consumo."

Não é coincidência, argumenta ela, que nesta mesma época estivesse acontecendo a chamada "guerra às drogas" nos Estados Unidos, liderada pelo governo do presidente Richard Nixon. "O proibicionismo não era uma novidade no Brasil, mas ele se moderniza incorporando as terminologias, práticas, normas e instituições internacionais."

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Ela cita, como exemplo dessa internacionalização, as três convenções das Nações Unidas sobre o controle de drogas, criadas entre 1961 e 1988, que depois seriam incorporadas na legislação brasileira.

Villela, que tem se dedicado a estudar a influência dos EUA no treinamento de autoridades policiais em diversos países, inclusive no Brasil, lembra que a criação de manuais sobre drogas era comum entre os americanos e sugere a possibilidade de que o glossário da Polícia Federal seja um reflexo dessa influência.

Há, de fato, menções em jornais a visitas e treinamentos feitos por autoridades dos EUA na mesma época, bem como uma preocupação com a ascensão do tráfico no Brasil.

Uma notícia em 1970 dizia que técnicos do departamento de narcóticos do governo americano iriam ao Brasil para instruir a Polícia Federal "na identificação dos tóxicos". Outra notícia diz que a Interpol acreditava que o Brasil se tornaria "um dos maiores centros de distribuição de entorpecentes do mundo, principalmente devido às dificuldades de policiamento de amplas áreas do território nacional."

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Os dispositivos legais criados nos anos 70 na guerra às drogas, e com forte inspiração nos EUA, ofereceram as estruturas para o que é aplicado ainda nos dias de hoje, segundo a especialista.

"Embora a Constituição de 1988 tenha trazido várias garantias de proteção aos direitos humanos, é interessante notar que, de forma contraditória, a pauta penal e criminal se endureceu muito desde então", diz. "Houve um agravamento das penalidades, com o tráfico sendo equiparado aos crimes hediondos."

Para ela, houve um redirecionamento do aparato repressivo do Estado da pauta de combate ao comunismo para o combate às drogas. "O que a gente faz com essa polícia toda, que tortura, que faz operação extrajudicial? A guerra às drogas caiu como uma luva para a polícia, que passa a ressignificar o seu trabalho. Tem um legado importante que vem desse período até hoje."

Para acessar a cópia integral do glossário, clique aqui.

Apreensão de drogas em novembro de 1972 no Rio de Janeiro
Foto: Arquivo Nacional / BBC News Brasil
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