As medidas sanitárias em vigor para conter a pandemia de coronavírus valem para todos, dizem juristas ouvidos pela BBC News Brasil, inclusive para o presidente da república Jair Bolsonaro — que anunciou nesta terça (7) ter sido diagnosticado com covid-19.
Em fevereiro, o próprio presidente assinou uma lei sobre as medidas que podem ser tomadas para enfrentamento da pandemia de coronavírus.
Assinada em conjunto com os então ministros Sergio Moro (Justiça) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde), a Lei 13.979, de 02/2020, determina, em seu artigo 3, que podem ser decretadas no combate à epidemia medidas como isolamento, quarentena e obrigatoriedade de exames médicos e testes laboratoriais.
"A lei foi assinada pelo próprio presidente da República e vale para todo mundo", explica o criminalista Rogério Cury, professor de direito penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Em março, depois da publicação de uma outra portaria do governo, o então secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Wanderson de Oliveira, afirmou que "o isolamento não é obrigatório, não vai ter ninguém controlando as ações das pessoas, ele é um ato de civilidade para proteção das outras pessoas".
Em casos concretos de desrespeito a normas sanitárias, o Ministério Público pode pedir à Justiça que determine o isolamento obrigatório — o MP chegou a pedir isso no caso de um paciente do DF, um dos primeiros contaminados pela doença, que mesmo doente queria sair de casa.
"São situações do direito civil, em que a pessoa tem uma obrigação de fazer, e em caso de desrespeito estão sujeitas à multas", explica o advogado André Damiani, especialista em direito penal. "Mas em casos extremos é possível se aplicar o direito penal também."
A orientação do Ministério da Saúde para pessoas com diagnóstico positivo para covid-19 é de que fiquem em isolamento domiciliar e utilizem máscaras o tempo todo.
Além disso, há determinações que variam de Estado para Estado. No Distrito Federal, onde vive e trabalha o presidente, um decreto de fevereiro determina que pacientes com suspeita de coronavírus sem indicação de internação hospitalar devem fazer isolamento em casa. E o uso de máscaras é obrigatório nas ruas para todos desde 11 de maio.
Na terça, o presidente deu a entrevista coletiva para anunciar seu diagnóstico próximo a diversos jornalistas e usando máscara, mas a retirou em determinado momento. Disse que a partir de agora pretende "trabalhar seguindo os protocolos, despachando por videoconferência, raramente recebendo uma ou outra pessoa para assinar um documento".
O deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ) afirmou que vai acionar o Ministério Público Federal "para que Bolsonaro responda por crime contra saúde pública". O deputado argumenta que "o presidente já sabia que estava contaminado quando retirou a máscara durante a entrevista, colocando deliberadamente a vida dos demais em risco".
Espalhar coronavírus pode ser crime
Em casos extremos de desrespeito às normas sanitárias, dizem os criminalistas, é possível que a atitude da pessoa com covid-19 possa até configurar crime.
O artigo 268 do código penal, por exemplo, estabelece pena de detenção de um mês a um ano para quem "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa".
Expor a vida ou a saúde de outros a perigo direto e iminente também é crime, estabelecido no artigo 132, com pena de detenção de três meses a um ano.
No entanto, explica o criminalista Rogério Cury, nesses casos só há crime se houver dolo, ou seja, intenção de expor as pessoas, ou pelo menos dolo eventual, quando a pessoa assume o risco de expor os outros.
"É quando a pessoa não quer expor os outros, mas se acontecer, ela não se importa", diz Cury.
Nesse caso, é preciso provar também que o perigo à saúde é direto e iminente, o que também é difícil diante das incertezas científicas sobre, por exemplo, a janela de contágio do coronavírus, afirma André Damiani.
No caso concreto do presidente da República, opinam os criminalistas, suas atitudes até agora não se enquadram em nenhum dos crimes.
Cury afirma, no entanto, que não é porque não há delito que uma conduta não pode ser considerada reprovável.
"No caso da conduta do presidente diante da pandemia até agora, é pior a questão ética, de mau exemplo para a população", afirma.
A análise é compartilhada por Damiani.
"Embora pessoalmente eu ache que estamos diante da falta de boa liderança, acho que existe um distância entre ações do presidente, como dar entrevista pessoalmente e receber pessoas, de uma conduta criminosa", diz Damiani. "Temos que ter cuidado com o direito penal, que é sempre uma medida extrema para casos extremos."
Em exemplo de situação extrema é o de alguém contaminado que de fato tente contaminar outra pessoa de propósito, como tossindo no rosto dela propositalmente. É um caso que poderia, diz Damiani, se encaixar no artigo 131 do Código Penal: "praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio".
No caso do presidente, o criminalista não vê, até agora, condutas que se encaixem como crime, mas diz que é possível que a Justiça determine, no direito civil, que ele cumpra as medidas para evitar espalhar a doença.
Crime de responsabilidade
Mesmo que condutas do presidente, incluindo eventual desrespeito ao isolamento, não sejam consideradas crimes comuns, analistas avaliam que sempre há possibilidade de que a Câmara dos Deputados considere que há indícios de um crime de responsabilidade, o que poderia dar início a um processo de impeachment.
Um crime de responsabilidade é muito diferente de um crime comum — ele é cometido quando o presidente age "de modo incompatível com a dignidade, com a honra, e com o decoro do cargo".
A lei sobre crime de responsabilidade é muito vaga e aberta a interpretações, explica Maurício Dieter, professor de criminologia crítica da USP.
"A lei dos crimes de responsabilidade tem toda uma história hermenêutica (um histórico de interpretações diferentes). Para caracterizar as pedaladas fiscais como crime de responsabilidade (que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff), por exemplo, foi feita toda uma ginástica interpretativa", opina Dieter.
Em última instância, a abertura de impeachment é um processo mais político que jurídico, e depende de quanto apoio o presidente tem no Congresso Nacional.