'Ofensivo', 'racista' e 'paranoico': a visão de líderes indígenas sobre discurso de Bolsonaro na ONU

Representantes das principais associações indígenas do país dizem que jovem levada por Bolsonaro à ONU não tem representatividade no movimento; presidente defendeu a exploração econômica de terras indígenas e disse que discurso ambiental oculta interesses estrangeiros em relação à Amazônia.

24 set 2019 - 15h21
(atualizado às 15h30)
Para O-é Kayapó, líder na Associação Floresta Protegida (AFP), no Pará, indígena levada por Bolsonaro à ONU 'só tem o apoio da própria família' entre comunidades do Xingu
Para O-é Kayapó, líder na Associação Floresta Protegida (AFP), no Pará, indígena levada por Bolsonaro à ONU 'só tem o apoio da própria família' entre comunidades do Xingu
Foto: BBC News Brasil

"Lamentável", "ofensivo", "racista" e "paranoico" foram alguns dos adjetivos com que lideranças de algumas das principais organizações indígenas brasileiras classificaram o discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU, nesta terça-feira (24/9).

A BBC News Brasil ouviu líderes da Associação do Território Indígena do Xingu (Atix), da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), da Associação Floresta Protegida (AFP) e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) — entidade que agrega associações de todas as regiões do país e representa os 305 povos indígenas brasileiros.

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Todos repudiaram o discurso de Bolsonaro, defenderam o cacique Raoni Metuktire de críticas feitas pelo presidente e afirmaram que Ysani Kalapalo — jovem indígena que integrou a comitiva presidencial na ONU — não tem representatividade no movimento indígena brasileiro.

Líderes indígenas brasileiros que estão em Nova York para a Cúpula Climática da ONU convocaram uma coletiva de imprensa para se pronunciar sobre a fala do presidente.

Bolsonaro se referiu várias vezes aos indígenas brasileiros ao defender as políticas de seu governo em relação à Amazônia e ao criticar o que ele considera uma ingerência indevida de estrangeiros na região.

Ele fez a primeira menção aos grupos ao se referir às queimadas na Amazônia, tema que ganhou o noticiário global nos últimos meses. Bolsonaro disse que "o clima seco e os ventos favorecem queimadas espontâneas e criminosas" nesta época do ano, e que "existem também queimadas praticadas por índios e populações locais, como parte de sua respectiva cultura e forma de sobrevivência".

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Coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara diz que comunidades nativas fazem, sim, pequenas queimadas para abrir roças, mas que "o incêndio florestal (de larga escala) não é uma cultura dos povos indígenas".

"Ele utiliza essa informação sobre nossas queimadas para esconder todo o desmonte da política ambiental autorizado por ele", afirma Guajajara, que foi candidata a vice-presidente na chapa liderada por Guilherme Boulos (PSOL) na eleição de 2018, vencida por Bolsonaro.

A maioria dos incêndios que consomem florestas brasileiras nos últimos meses tem ocorrido fora de terras indígenas. Por estarem mais preservadas, essas áreas retêm mais umidade e estão menos sujeitas a queimadas descontroladas.

Marivelton Baré, presidente da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), diz que fala de Bolsonaro na ONU é 'paranoica'
Foto: Arquivo Pessoal / BBC News Brasil

Dados imprecisos

Ao citar os indígenas brasileiros na ONU, Bolsonaro usou dados que destoam de informações de órgãos do governo. O presidente disse que existem no Brasil "225 povos indígenas, além de referências de 70 tribos vivendo em locais isolados". Segundo o IBGE, porém, há 305 povos indígenas no Brasil, e, segundo a Funai, há registros de 107 povos isolados.

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Bolsonaro disse ainda que "o Brasil não vai aumentar para 20% sua área já demarcada como terra indígena, como alguns chefes de Estados gostariam que acontecesse" — mas não citou quais líderes teriam esse interesse, nem disse de onde tirou a menção aos 20%.

Um dos trechos do discurso que causaram mais revolta entre os entrevistados foi a crítica que Bolsonaro fez ao cacique Raoni Metuktire, líder do povo caiapó reconhecido como um dos maiores ativistas da causa indígena no Brasil e no mundo.

Nas últimas semanas, um grupo de antropólogos, ambientalistas e indígenas brasileiros propôs a indicação de Raoni ao Prêmio Nobel da Paz por sua atuação em prol da defesa do meio ambiente e dos direitos dos povos indígenas.

Segundo Bolsonaro, porém, Raoni é um exemplo de líderes que são usados "como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia".

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"O discurso do presidente é uma ofensa muito grave aos povos indígenas. Ofende o reconhecimento e o trabalho que Raoni vem fazendo durante mais de 40 anos na defesa de direitos dos indígenas", rebate Yanukula Kaiabi Suiá, presidente da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix).

A associação representa os 16 povos indígenas que habitam o Território Indígena do Xingu (MT), entre as quais a etnia kalapalo, à qual pertence a indígena levada por Bolsonaro à ONU.

A presença de Ysani Kalapalo na comitiva presidencial foi duramente criticada pelo representante da Atix e pelos outros líderes entrevistados, que destacaram a falta de representatividade da convidada no movimento indígena brasileiro.

Em carta divulgada após o anúncio de que Ysani integraria a delegação presidencial, a Atix disse que "o governo brasileiro ofende as lideranças indígenas do Xingu e do Brasil ao dar destaque a uma indígena que vem atuando constantemente em redes sociais com objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil".

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Ysani, que nasceu no Território Indígena do Xingu e hoje passa a maior parte do tempo em São Paulo, ganhou notoriedade com um canal no YouTube no qual expõe visões políticas de direita e o apoio a posições de Bolsonaro.

O presidente citou diversas vezes a indígena em seu discurso, mas errou a pronúncia de seu nome: ele a chamou de Yzaní, embora o correto seja Yssâni.

Ao mencioná-la, Bolsonaro leu uma carta do Grupo de Indígenas Agricultores, única organização indígena a se manifestar publicamente em favor da presença de Ysani na comitiva.

O grupo disse que "o ambientalismo radical e o indigenismo ultrapassado e fora de sintonia com o que querem os povos indígenas representam o atraso, a marginalização e a completa ausência de cidadania".

A carta é assinada por supostos líderes de comunidades favoráveis a mudanças na legislação sobre terras indígenas e a abertura dos territórios para a exploração econômica em larga escala.

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Todos os líderes ouvidos pela BBC dizem que as posições chanceladas pelo Grupo de Indígenas Agricultores são minoritárias entre os povos indígenas brasileiros, a maioria dos quais defende a preservação da floresta e os modos de vida tradicionais dos grupos.

Para O-é Kayapó, representante da Associação Floresta Protegida (AFP), entre as dezenas de milhares que indígenas que vivem na bacia do Xingu, Ysani só tem o apoio de sua própria família.

"Ysani tem um pensamento muito ao contrário da maioria do povo que vive nas aldeias. Por ela ter crescido na cidade, acabou confundindo ou se perdendo entre as duas culturas branca e indígena", afirma.

Ela diz ainda que o Grupo de Indígenas Agricultores é desconhecido pela grande maioria das comunidades.

Ysani Kalapalo ganhou notoriedade com um canal no Youtube no qual expõe visões políticas de direita
Foto: Reprodução/Youtube / BBC News Brasil

'Homens das cavernas'

Em seu discurso, Bolsonaro disse ainda que "algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas".

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Para O-é Kayapó, ao se referir aos indígenas como "nossos índios", Bolsonaro assume a mesma postura de tutela que ele atribui às ONGs. "Nós não somos posse do presidente Bolsonaro."

Sônia Guajajara, da Apib, diz que a relação que Bolsonaro estabelece entre indígenas e homens das cavernas é "racista e revela seu desrespeito quanto aos diferentes modos de vida dos povos indígenas".

Para Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), entidade que representa 23 etnias no Amazonas, "é Bolsonaro quem ainda parece viver nas cavernas".

"Ele diz que nós queremos ingressar na sociedade, mas a gente já faz parte da sociedade, mas sem esquecer nossa cultura e sem buscar uma integração total. Nós lutamos pelo nosso modo de ser", afirma.

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ONGs e riquezas minerais

Ao criticar as ONGs, Bolsonaro exaltou os depósitos minerais que estão nas terras indígenas e disse que a demarcação dessas áreas atenderia a interesses estrangeiros por impedir o Brasil de explorar essas áreas.

Ele disse que "o índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas" e afirmou, sem citar fontes, que as terras indígenas Yanomami e Raposa/Serra do Sol são "as mais ricas do mundo".

"Isso demonstra que os que nos atacam não estão preocupados com o ser humano índio, mas sim com as riquezas minerais e a biodiversidade existentes nessas áreas", disse o presidente.

Para Baré, da FOIRN, o discurso do presidente é "paranoico". "As riquezas minerais sempre estiveram nos nossos territórios sagrados", afirma ele.

Marivelton diz ainda que as ONGs "são parceiros de trabalho que nos ajudam a desenvolver atividades e respeitam nossa forma de existência".

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"Bolsonaro deveria respeitar nossas escolhas sobre os grupos com quem queremos trabalhar. Ele só critica as organizações filantrópicas e não mostra nenhuma proposta alternativa para implementar políticas públicas para os povos indígenas", diz o representante dos povos indígenas rio-negrinos.

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