Cinquenta anos após o golpe militar que instaurou uma ditadura no Brasil, hoje é possível saber melhor como funcionou o aparelho repressivo do regime e os abusos cometidos graças às investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e de dezenas de instituições parceiras, como comissões estaduais e municipais criadas nos últimos dois anos.
Desde 2012, quando a CNV foi criada, foram ouvidas cerca de 600 pessoas - em sua maioria vítimas do regime, mas também agentes da repressão. O relatório final com as conclusões dos trabalhos será apresentado em dezembro.
A CNV investiga graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, mas o foco principal está nos delitos da ditadura militar.
Mais quais as principais descobertas e realizações alcançadas até agora? A BBC Brasil conversou com algumas pessoas envolvidas no trabalho da CNV e das comissões do Rio de Janeiro e São Paulo para responder essa pergunta.
Os trabalhos estão centrados em desmontar falsas versões oficias do regime militar sobre mortos e desaparecidos políticos. Entre os principais feitos das comissões estão a retificação de atestados de óbitos e a obtenção de confissões de agentes da ditadura sobre a prática de tortura.
Mas o trabalho da CNV não está isento de críticas. O vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic, aponta falhas no trabalho da comissão na apuração de abusos contra grupos indígenas durante a ditadura militar, expostos no Relatório Figueiredo (saiba mais abaixo).
O próprio presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, Wadih Damous, reconhece outra limitação dos trabalhos das comissões. "Não é possível saber se os depoimentos são verdadeiros", diz. Para Damous, é importante agora que "o Estado brasileiro venha a público" esclarecer os abusos cometidos. "É óbvio que eles (as Forças Armadas) sabem o que aconteceu".
Damous acredita que a Presidência, inclusive nos governos anteriores ao de Dilma Rousseff, sempre teve medo de bater de frente com os militares. "Há um temor reverencial, medo. Temor, por exemplo, de que as Forças Armadas não atuem na repressão às manifestações durante a Copa".
O presidente da Comissão da Verdade de São Paulo, Adriano Diogo, reforça a crítica: "Como aqui no Brasil não se abrem os arquivos (militares), é como se estivéssemos olhando pelo buraco da fechadura".
Ainda assim, muitos detalhes novos foram revelados nos últimos dois anos. Confira abaixo as principais realizações das comissões até agora.
Novos atestados de óbitos
A Justiça de São Paulo determinou a mudança dos atestados de óbito do jornalista Vladimir Herzog e do estudante Alexandre Vannucchi Leme, após solicitação da CNV. Ficou oficializado, assim, que ambos foram mortos pelo regime militar, depois de serem torturados. A versão original dos militares era de que os dois haviam se suicidado, Herzog enforcado na prisão e Vanucchi atropelado por um caminhão.
No caso de Herzog, a causa mortis foi modificada de "asfixia mecânica" para morte em decorrência "de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército - SP (Doi-Codi)". O jornalista foi assassinado em 1975, aos 38 anos.
Vannucchi, que era estudante de geologia da Universidade de São Paulo (USP) e militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi preso e morto em março de 1973, aos 22 anos. O regime militar divulgou na época que ele teria se jogado contra um caminhão, tendo constado no atestado de óbito morte por "lesão traumática crânio-encefálica". Agora, foi estabelecido que a morte ocorreu pior "lesões decorrentes de tortura e maus-tratos".
A expectativa da CNV é que as decisões judiciais sirvam de precedente para que outras famílias solicitem a mudança do atestado de óbito de seus parentes mortos pela ditadura. O registro da morte de João Batista Franco Drummond já foi modificado por solicitação de sua família.
Acordo da Comissão da Verdade de São Paulo com a Defensoria Pública, o Ministério Público e a Justiça de São Paulo vai viabilizar a retificação de cerca de 150 registros de óbitos de pessoas cuja morte pela ditadura militar já foi reconhecida pelo governo federal.
Confissões de tortura
Três pessoas que participaram da estrutura repressiva do regime militar admitiram que torturaram ou viram outros agentes torturando presos, em audiências realizadas pelas comissões. Esses depoimentos são relevantes porque contrariam o discurso oficial dos militares, que ora negam que houvesse tortura, ora afirmam que eram casos isolados.
O relato mais importante foi o do coronel reformado do Exército Paulo Malhães. Não só ele confessou que torturou, matou e ocultou cadáveres de presos políticos, como também contou que as práticas eram de conhecimento dos altos escalões das Forças Armadas.
Já o ex-major do Corpo de Bombeiros Valter da Costa Jacarandá admitiu que presos políticos eram torturados, com métodos como choque elétrico e pau de arara, e que participou de sessões de tortura.
Já o ex-escrivão de polícia Manoel Aurélio Lopes admitiu que havia tortura no Dops e no Doi-Codi de São Paulo, locais onde trabalhou entre 1969-1978. No Dops, disse que viu a tortura em que o preso é forçado a se equilibrar, nas pontas dos pés, em latas de leite, com os braços abertos, técnica conhecida como "Cristo Redentor", assim como o uso da "cadeira do dragão", uma cadeira de ferro eletrificada.
Ocultação de corpos
O depoimento do coronel reformado do Exército Paulo Malhães também trouxe revelações inéditas sobre técnicas usadas pelo regime militar para sumir com corpos de presos assassinados.
Ele contou que, primeiro, eram retirados as arcadas dentárias e os dedos das mãos dos mortos - partes usadas na identificação dos corpos, numa época em que ainda não havia teste de DNA. Em seguida, o corpo era preparado para ser atirado em rios. O ventre da vítima era cortado para impedir que o corpo inchasse e emergisse. Depois, ele era embalado com pedras de peso calculado para evitar que descesse ao fundo do rio ou flutuasse.
A técnica foi usada, por exemplo, com as vítimas da Casa da Morte, centro de torturas clandestino que funcionou em Petrópolis (RJ). Entre mortes confirmadas e pessoas desaparecidas, mais de 20 presos teriam sido assassinados no local.
Caso Rubens Paiva
As investigações das comissões trouxeram importantes revelações sobre a morte de Rubens Paiva, deputado federal cassado logo após o golpe de 1964. Foi identificado um torturador e comprovado que Paiva de fato foi assassinado no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna) do Rio de Janeiro. Seu corpo foi jogado em um rio, segundo o coronel reformado do Exército Paulo Malhães, torturador confesso.
Um documento inédito, obtido após a morte do ex-comandante do Doi-Codi do Rio Júlio Miguel Molinas Dias, traz o registro da entrada de Paiva na prisão.
Em depoimento em novembro passado, o coronel da reserva Raymundo Ronaldo Campos confessou que participou da farsa para justificar o desaparecimento de Paiva - com mais dois agentes, metralhou e colocou fogo em um fusca no Alto da Boa Vista, para simular que militantes haviam atacado o carro.
Um depoente que falou sob condição de anonimato disse que viu o agente Hughes (Antônio Fernando Hughes de Carvalho, já falecido) torturando Paiva. Ele e outro depoente, o coronel Ronald Leão, disseram que alertaram o então diretor do DOI-Codi, major José Antônio Nogueira Belham, sobre o risco de morte de Paiva.
Belham alegou à CNV que estava de férias no período, mas documentos do Ministério do Exército mostram que ele interrompeu suas férias e recebeu diárias para realizar "deslocamento em caráter sigiloso" no dia da prisão de Paiva.
Relatório Figueiredo
O Relatório Figueiredo é um documento de 7 mil páginas que detalha tortura, morte e roubo de terras sofridos por indígenas durante o regime militar. Produzido em 1967 pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia, acreditava-se ter sido destruído.
O relatório foi encontrado pelo vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic, e funcionários do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em dezembo de 2012. Há cerca de um ano foi entregue e digitalizado para a CNV, mas a comissão ainda não apresentou nenhum resultado a partir de sua análise.
Para Zelic, o assunto foi relegado à segundo plano porque sua análise jogaria os holofotes sobre abusos que ainda hoje atingem esses grupos e contrariaria interesses de elites agrárias que o governo não quer desagradar.
Maria Rita Kehl, que coordena o grupo da CNV que investiga as violações aos direitos humanos no campo ou contra indígenas, diz que a demora ocorreu porque o trabalho focou primeiro a análise do capítulo sobre violações contra camponeses, que só agora foi finalizado. Além disso, argumenta que "o relatório tem 7.000 páginas. A leitura é demorada e o resumo é difícil de ser feito".
Outra crítica de Zelic é que um dos integrantes do grupo coordenado por Kehl é Inimá Simões, cujo pai, Itamar Simões, é citado no Relatório Figueiredo como um dos que praticaram abusos contra os índios.
Segundo Kehl, o relatório não está sob responsabilidade de Inimá Simões, cujo comprometimento do pai nunca foi escondido. "Eu não tenho nenhuma suspeita da conduta dele em função disso", afirmou à BBC Brasil.
Perseguição a militares
Em termos absolutos, o grupo mais atingido pela repressão foi o dos próprios militares, apontam as investigações da CNV. Cerca de 7.500 sofreram algum tipo de repressão - foram perseguidos, presos, torturados ou expulsos das corporações. Houve, por exemplo, casos de pilotos proibidos de voar por portarias secretas e expulsos da corporação. Algumas esposas destes pilotos chegavam a receber pensões, como se fossem viúvas.
Os militares perseguidos trabalhavam na administração do presidente deposto, João Goulart, ou tinham ideologia comunista ou nacionalista, se opondo a interesses comerciais estrangeiros. Alguns deles, a maioria praças, mas também oficiais, optaram pela luta armada, integrando grupos de resistência ao regime militar.
Em depoimento à CNV, o ex-militar da Aeronáutica José Bezerra da Silva contou sobre a prática de tortura na base aérea do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, onde serviu entre os anos de 1971 e 1979. Ele mesmo foi torturado, relatou, após ter feito críticas às violências do regime contra seus opositores.
Outro depoente, o também ex-militar da Aeronáutica Belmiro Demétrio, de Canoas (RS), disse que foi preso após manifestar simpatia por João Goulart.
Exumações e laudos periciais
A CNV, em parceria com outros órgão e comissões, vem realizando exumações e laudos para investigar a morte de pessoas durante a ditadura.
Em novembro, o corpo do presidente João Goulart, deposto pelo golpe de 1964, foi retirado do cemitério de São Borja (RS) e levado para Brasília, onde foram coletadas amostras para o exame toxicológico, que será realizado em laboratórios do exterior. O objetivo é esclarecer se Goulart foi envenenado durante seu exílio na Argentina. A versão oficial do regime militar é que ele morreu devido a um ataque cardíaco. Os resultados ainda demoram a sair e podem ficar prontos após dezembro, quando a CNV apresenta seu relatório final.
Antes, está para sair o resultado do exame de DNA de um corpo exumado no cemitério de Brasília que acredita-se ser do líder camponês Epaminondas Gomes de Oliveira, desaparecido após ser preso e torturado.
Outra exumação já trouxe conclusões. Análise pericial dos restos mortais do militante Arnaldo Cardoso Rocha revelou que ele foi foi alvejado de cima para baixo quando já estava imobilizado após tortura, sem condições de oferecer resistência. A versão do regime militar era de que ele teria sido morto em um tiroteio, em 15 de março de 1973, em uma rua do bairro da Penha (São Paulo).
Mais dois militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) foram mortos na mesma ocasião, Francisco Emmanuel Penteado e Francisco Seiko Okama. Depoimento de outro preso político, Amílcar Baiardi, indica que Okama e mais uma pessoa que ele não conseguiu identificar chegaram vivos ao Doi-Codi, em São Paulo, onde foram mortos, contestando assim também que as mortes ocorreram em um tiroteio.
Caso Riocentro
Documentos obtidos pela CNV trazem detalhes inéditos sobre a ação dos militares para acobertar a autoria dos atentados à bomba que ocorreram em 1981 no Riocentro (um centro de convenções no Rio de Janeiro), durante a realização de um show para comemorar o Dia do Trabalhador.
O objetivo dos militares era fazer a população crer que os ataques partiram dos opositores do regime, justificando assim as ações de repressão. No entanto, uma das bombas explodiu dentro do carro dos militares, no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, matando-o e comprometendo a operação. Outra foi explodida para tentar cortar a luz do local, mas não houve sucesso.
Os documentos foram obtidos após a morte do ex-comandante do Doi-Codi do Rio, Júlio Miguel Molinas Dias. Ele registrou, passo a passo, as ações para acobertar os responsáveis pelas explosões, tais como envio de policiais do Exército à paisana para retirar o corpo do local e distribuição aos jornais de fotos de placas de trânsito que foram pixadas pelos militares com a sigla VPR, de Vanguarda Popular Revolucionária. Esse grupo de resistência armada à ditadura, porém, não existia mais desde o início dos anos 70.
O Ministério Público Federal do Rio de Janeiro também obteve esses documentos e utilizou-os na denúncia que apresentou em fevereiro deste ano pedindo a prisão de seis pessoas envolvidas no caso Riocentro que ainda estão vivas.