Operação da PF contra bolsonaristas acirra debate jurídico sobre validade do inquérito das fake news

A mando do STF, Polícia Federal apreendeu objetos de empresários, políticos e ativistas bolsonaristas em inquérito que apura disseminação de ofensas, ataques e ameaças contra ministros da corte e seus familiares.

27 mai 2020 - 19h35
(atualizado às 19h45)

A operação da Polícia Federal (PF) que realizou busca e apreensão em residências e escritórios de empresários, políticos e ativistas bolsonaristas nesta quarta-feira (27/05) dividiu juristas e acirrou as tensões entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e militantes pró-governo.

A ação foi determinada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes com base em um inquérito que apura a disseminação de ofensas, ataques e ameaças contra ministros da corte e seus familiares.

Publicidade

Foram cumpridos 29 mandados de busca e apreensão em endereços de pessoas suspeitas de participação nos atos, entre os quais os empresários Luciano Hang e Edgard Corona, a militante direitista Sara Winter, os blogueiros Winston Lima e Allan dos Santos, e o ex-deputado federal Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB.

As buscas e apreensões ocorreram um dia depois de uma outra operação da Polícia Federal mirar um dos principais adversários políticos de Bolsonaro, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC).

A residência oficial do governador e o escritório de sua esposa, Helena Witzel, tiveram objetos coletados em uma investigação sobre o possível desvio de recursos públicos em gastos para o combate ao coronavírus no Rio.

Novas ofensas

Alguns militantes bolsonaristas que elogiaram a ação da PF contra Witzel na terça-feira se disseram vítimas de censura por terem sido alvos da operação policial do dia seguinte.

Publicidade

"Moraes, seu covarde, você não vai me calar!!", tuitou Sara Winter nesta quarta-feira. Na terça, ao comentar a operação contra Witzel, ela criticou o governador: "Alguém saberia me informar como se carrega estrume em viatura?"

A operação contra militantes bolsonaristas desta quarta-feira se baseou em grande medida em depoimentos à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News.

À comissão, alguns depoentes - como os deputados federais Joice Hasselmann (PSL-SP) e Alexandre Frota (PSDB-SP) - acusaram dois filhos do presidente Jair Bolsonaro de participar do que chamam de um "gabinete do ódio" voltado a ataques virtuais.

Segundo Frota e Joice, o vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) estão entre os articuladores desse suposto grupo.

Publicidade

Nem Carlos nem Eduardo foram citados na operação desta quarta-feira, contudo.

Operação contra militantes bolsonaristas desta quarta-feira se baseou em grande medida em depoimentos à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News
Operação contra militantes bolsonaristas desta quarta-feira se baseou em grande medida em depoimentos à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Procedimento 'atípico'

O último ato do STF no inquérito sobre as fake news acirrou as divisões entre juristas, que debatem se a Corte não estaria extrapolando suas atribuições no processo.

Alguns especialistas questionam a legalidade da investigação desde sua abertura.

O inquérito foi instaurado em março de 2019 pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, sem provocação de outro órgão, o que é atípico.

Toffoli escolheu Alexandre de Moraes para conduzir o inquérito sem que houvesse sorteio entre todos os ministros, procedimento de praxe na Corte.

Ao instaurar o inquérito, o presidente do STF argumentou que o regimento interno da Corte prevê esse tipo de iniciativa.

Em seu Artigo 42, o regimento estabelece que, "ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro".

Publicidade

Toffoli afirmou que, embora os crimes ligados à disseminação de fake news não tenham sido praticados dentro do prédio do Supremo, os ministros, supostas vítimas das suspeitas investigadas, "são o tribunal".

Para Rubens Glezer, professor da FGV-Direito, o argumento é frágil.

Ele afirma que o artigo do regimento trata de uma situação "absolutamente excepcional", que envolva crimes que ocorram fisicamente dentro do STF, e não seria aplicável ao inquérito sobre as fake news, que trata de "possíveis crimes contra a honra dos ministros".

Ao permitir que o caso tramite fora das regras de um inquérito regular, diz Glezer, o tribunal "deu um cheque em branco para se investigar basicamente qualquer ato que seja ofensivo ao STF e seus ministros".

"Nesse caso, o STF é a vítima, o investigador e o juiz. Há um notável desequilíbrio do sistema", afirma.

Segundo o professor, nesse mesmo inquérito, Alexandre de Morais já tomou outras decisões questionáveis, como a censura a uma reportagem da revista Crusoé que apontava possíveis vínculos entre Dias Toffoli e a empreiteira Odebrecht, divulgada em abril de 2019.

Publicidade

Moraes revogou a própria decisão três dias depois.

Para Glezer, o STF pode ter recorrido à abertura do inquérito "como uma arma excepcional, para mostrar que tem poder de resposta e coação num contexto em que há muitas agressões ao tribunal".

O inquérito foi instaurado num momento em que militantes e políticos bolsonaristas se insurgem contra a corte e seus membros.

Em reunião ministerial recente, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a sugerir a prisão de integrantes da corte.

"Eu, por mim, colocava esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF", afirmou Weintraub. Posteriormente, afirmou que se referia a apenas "alguns" membros da Corte, e que havia se manifestado em uma reunião privada.

O vídeo veio à tona no bojo de outro inquérito no STF, que apura uma possível interferência do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal.

Publicidade
Operação contra militantes bolsonaristas divide juristas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Para Glezer, porém, mesmo que o tribunal esteja sob pressão, "é terrível que justamente a instituição que tem de zelar pelas regras do jogo constitucional e democrático se disponha a burlá-las, ainda que por um bom objetivo".

A condução do inquérito, segundo ele, "dá muita munição para que o tribunal seja tratado como mais político do que jurídico, o que acaba minando sua força e legitimidade".

'Circunstâncias excepcionais'

Já Estefânia Barboza, professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR), avalia que o regimento interno do STF dá margem para a instauração e o avanço do inquérito.

Segundo Barboza, há que se considerar as "circunstâncias excepcionais" em jogo. "Dentro de um contexto de normalidade, em que todas as instituições estivessem funcionando, com respeito às decisões de cada instituição, talvez não tivéssemos o STF instaurando o inquérito", afirma.

Publicidade

No entanto, diz ela, o Ministério Público Federal não tomou qualquer providência para investigar fake news contra ministros do STF - cenário que, segundo a professora, justifica a ação do tribunal.

Barboza diz que tem havido uma disseminação deliberada de mentiras para atacar a honra dos ministros e minar sua legitimidade, o que, segundo ela, põe a democracia brasileira em risco.

Ela afirma que os ataques integram uma ofensiva abrangente de caráter "fascista" contra instituições democráticas em vários países.

"O regime democrático precisa ter engrenagens de contenção que façam sua defesa. A Constituição não aceita ditadura, nem a desestruturação dos poderes", afirma.

BBC News Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização escrita da BBC News Brasil.
TAGS
Curtiu? Fique por dentro das principais notícias através do nosso ZAP
Inscreva-se