“Engodo”, “discurso raso”, “estelionato”, “debate pouco qualificado de argumentos técnicos”. Não faltaram críticas nesta terça-feira, em São Paulo, à proposta de emenda à Constituição que pretende reduzir a maioridade penal no Brasil dos 18 para os 16 anos. O assunto foi tema de uma audiência pública promovida pelo Ministério Público estadual, durante todo o dia, no qual especialistas em segurança pública, promotores, médicos e defensores públicos apresentaram dados técnicos que colocariam por terra a PEC. A tramitação da proposta foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados no último dia 31.
A audiência pública organizada pelo MP paulista puxa uma ofensiva em cadeia que promete, nos próximos dias, apresentar argumentos e estudos técnicos contrários à redução. À noite, por exemplo, a PEC será tema de um ato público contra ela promovido pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); na próxima quinta-feira, o Núcleo de Estudos da Violência da USP recebe, também na capital paulista, ministros e ex-ministros dos governos Dilma, Lula e FHC, ligados aos direitos humanos, para manifestações contrárias à PEC e para as estratégias políticas diante da votação da medida no Congresso.
Hoje, no MP, estiveram na plateia e participaram do debate desde assistentes sociais e educadores de centros de ressocialização de adolescentes infratores a lideranças comunitárias de bairros da periferia da capital.
Pelo MP, promotores do Centro de Apoio da Infância e Juventude apresentaram dados do Departamento de Execuções da Infância e Juventude (DEIJ) da capital que mostram que crimes hediondos, como argumentam parlamentares defensores da PEC, representam a minoria as infrações cometidas por esse público.
Atos infracionais graves são minoria em SP
Os dados compilados pelo órgão englobam o período de agosto do ano passado ao fim de março deste ano e revelam, por exemplo, um forte contraste entre os atos infracionais hediondos (tais como estupro e homicídios) e os de natureza patrimonial (sobretudo tráfico, roubo e furto).
Entre janeiro de 2014 e março de 2015, por exemplo, de um total de 3.363 infrações que passaram pelo DEIJ, roubo circunstanciado (ou seja, com algum tipo de agravante) representou 53,2% dos casos, ou 1.790 ocorrências. Em segundo lugar aparece o tráfico de drogas, com 778 casos, ou 23,1% do total.
Entre as infrações de natureza hedionda, estupro teve três casos registrados – ou 0,1% –; estupro de vulnerável, 23 casos – 0,7% –, homicídio simples, 15 casos – 0,4% –, e homicídio qualificado, 13 casos – também 0,4%.
Por outro lado, os dados do DEIJ ( no qual atuam juízes e promotores) mostram também ser alta a taxa de reincidência entre os adolescentes infratores: ela ficou em pouco mais de 50% no período analisado.
“A grande maioria dos atos infracionais cometidos não são do tipo gravíssimos, que atentem contra a integridade corporal da vítima, mas são de natureza patrimonial ou tráfico de drogas. Esse é um indicativo de que precisamos pensar mais profundamente sobre as causas que levam a esses fatos; reduzir a maioridade penal atingirá quem praticou infrações menores”, observou o promotor Carlos Eduardo Brechani.
“A grande maioria desses adolescentes, com menor potencial infracional, sairia da esfera de aplicação do EC
A (Estatuto da Criança e do Adolescente) e iria para o caos que já é nosso sistema penitenciário. Onde vamos por mais presos? Vamos ampliar os benefícios aos que já estão no sistema, para liberar mais vagas?”, questionou. “Quando 50% são reincidentes, número muitíssimo alto, há um indício forte de que alguma coisa está errada. Isso, que deveria ser discutido, não está”, reclamou.
PEC é "estelionato", diz promotor
Também promotor de infância e juventude e ex-assessor técnico da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Eduardo de Souza Ferreira foi enfático: comparou o número 171 da PEC ao artigo 171 do Código de Processo Penal, que trata do crime de estelionato.
“A proposta de se reduzir a maioridade penal soa como estelionato, porque o que é vendido como uma vantagem, pura e simplesmente, não resolve nada. É algo que esconde o problema e adia o debate – que deveria ser feito, por exemplo, sobre como a Justiça lida com o uso e o tráfico de drogas, sobre as condições de trabalho humanas e materiais dos policiais, sobre a falta de detalhamento sobre ato infracional hediondo e tempo maior de internamento para esses tipos...”, enumerou Ferreira, para quem a ofensiva de setores da sociedade está a pleno vapor. “Acho que a sociedade pensante e que está na linha de frente e vivenciando essas questões, como a imprensa, está debatendo e mostrando dados que subsidiem, de fato, o debate”.
Defensoria Pública já admite ADI
Também presente à audiência, a defensora pública Mara Renata da Mota Ferreira, coordenadora do Núcleo Especializado de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, admitiu que, caso a PEC – que, por hora, teve apenas a tramitação aprovada – passe também no Senado, setores como o dela estudam entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal para impedir que a maioridade penal seja reduzida.
“Pelos anos de trabalho, o que tenho visto é um recrudescimento penal, com agravamentos de pena e da punições, sem que, contudo, haja uma redução da criminalidade”, opinou. “Acredito que nossa mobilização é importante, porque parlamentares têm dito que ‘90% da sociedade é favorável à redução da maioridade penal’, sem se dizer qual a base para isso. É preciso qualificar o debate e fazer as pessoas refletirem, e não querer fazer tudo de um dia para o outro”, concluiu.
Há "fetiche" sobre psicopatia, afirma psiquiatra do HC
Pela área médica, o coordenador do Núcleo de Psiquiatria Forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, Daniel Martins de Barros, classificou como “fetiches” a classificação de “psicopata” dada, volta e meia, a adolescentes que cometem infrações graves – argumento popular, por exemplo, entre os que defendem redução da maioridade.
“Há uma distorção da ideia do que é psicopatia – que é um transtorno de personalidade grave. Quando se entra na Fundação Casa e aplica os critérios de diagnóstico da psicopatia aplicados à população, por exemplo, nota que – ainda que em uma amostra pequena, de 40 adolescentes –, nenhum é psicopata”, destacou. “O crime não é sintoma de uma doença, pode ser um comportamento anormal. A gente tende ainda mais, nos debates sobre redução de maioridade penal, a equiparar anormal e patológico – e o crime não é sinônimo de sintoma de doença mental”, defendeu.