Às vésperas da última votação no Senado do Projeto de Emenda Constitucional, PEC 55, que irá limitar os gastos públicos pelos próximos 20 anos, organizações internacionais se pronunciaram contra a mudança na base da legislação brasileira e afirmam que ela resultará em atraso no desenvolvimento econômico do país, aumentando a desigualdade social.
O projeto, cuja última votação no Senado ocorre hoje, prevê que os gastos com políticas sociais, em especial educação e saúde, sejam apenas corrigidos pela inflação do ano anterior dentro das próximas duas décadas, não recebendo aumento conforme previsto no texto de 1988.
Em entrevista à BBC Brasil, um especialista da UNCTAD, agencia das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento, disse que a emenda é "radical" e seria uma "camisa de força", que comprometeria a flexibilidade necessária para responder às mudanças que mercados enfrentam.
O economista e pesquisador da organização, Ricardo Gottschalk, reconhece que é necessário se aplicar um controle às contas públicas, mas questiona se a desigualdade social gerada pela medida fará sentido.
"O objetivo da PEC 55 é sinalizar aos mercados que o Brasil está levando a sério a austeridade fiscal e que a dívida nacional não vai ficar fora de controle nos próximos anos. Entretanto, aprovar uma medida que congela os gastos públicos em termos reais pelos próximos 20 anos é bastante radical", afirmou Gottschalk.
"Isso vai retirar a flexibilidade das políticas econômicas. Os gastos fiscais estarão amarrados por uma camisa de força, o que a UNCTAD não acredita que seja o melhor para qualquer país, seja ele desenvolvido ou em desenvolvimento. A política fiscal precisa ser flexível e ser aplicada de forma anticíclica, especialmente em tempos de recessão", explica o especialista.
Longo Prazo
Gottschalk argumenta que o problema está no longo prazo, pois a PEC 55 "afetará uma geração inteira de brasileiros, com consequências cada vez mais negativas à medida em que os anos passam".
"A longo prazo, as implicações serão de que os gastos públicos em proporção do PIB, Produto Interno Bruto, irão decair cada vez mais a cada ano em termos reais. Isso, naturalmente, vai afetar a capacidade de se investir em infraestruturas econômicas e atender demandas sociais, como investimentos em programas de bem-estar social, saúde e educação."
O engessamento do Brasil nesse rumo, sem a possibilidade de reavaliação de rota, é uma escolha com impactos estratégicos que preocupa Gottschalk, pois afetará toda a dinâmica da estrutura de investimento do governo e a capacidade da sociedade se desenvolver.
"Haverá implicações enormes para a composição do gasto público total", prevê. Segundo o economista, a alocação dos recursos públicos se dará pela manipulação da influência do lobby, de modo que setores frágeis, como o das políticas sociais, sairão perdendo.
O governo contra-argumenta com a previsão de que somente com a implementação da PEC 55 será possível obter um saldo positivo entre arrecadação e gastos da ordem de 2,5% do PIB em 2026.
Desafio
Essencialmente, o desafio do governo é colocar as contas em equilíbrio, cortando gastos e aumentando arrecadação, para sanear a dívida pública. O Ministério da Fazenda estima que em 2016 o déficit fiscal será de 2,7% do Produto Interno Bruto.
Em declaração dada à BBC Brasil, o Ministério da Fazenda defendeu a PEC 55 como "necessária para a recuperação econômica", pois "o Brasil enfrenta a pior crise desde o começo do século 20, em que em dois anos o PIB per capita despencou 10%".
O Ministério ainda afirmou que a preocupação urgente com o corte de gastos é garantir estabilidade, para que se possa reduzir no futuro o pagamento de juros, o que consome cerca de 8% de toda a riqueza produzida pelo país a cada ano. "Uma vez que o controle sobre gastos públicos reduzir o desequilíbrio fiscal, os juros irão cair. Como resultado, haverá mais dinheiro disponível para gastos em políticas sociais".
Gottschalk, concorda que há a necessidade de um ajuste fiscal, mas questiona se a PEC 55 foi bem calibrada, adotando elementos que correspondam aos interesses da maioria da sociedade e não pesando apenas sobre os mais pobres.
"As consequências para os segmentos mais vulneráveis da população podem ser bastante fortes e nocivos (…) a sociedade brasileira não teve a chance de debater a PEC 55 ou propor alternativas. Isso é lamentável, porque é perfeitamente possível se desenhar um caminho central para o equilíbrio dos gastos públicos (e dívida pública), que esteja ao mesmo tempo de acordo com as necessidades sociais e econômicas do Brasil e que seja sustentável ao longo do tempo".
Declarações x estudos do FMI
Procurado pela reportagem, o Ministério da Fazenda ressaltou que "a política de austeridade fiscal está sendo implementada com a preservação das políticas de proteção social." E ressaltou que "a PEC recebeu apoio expresso do FMI em nota divulgada pela diretora-geral Christine Lagarde em outubro, na qual foi destacada a importância da proposta para a volta do crescimento inclusivo e sustentável".
Lagarde realmente elogiou a medida e se disse "encorajada pelo foco e direção das reformas". No último relatório sobre o Brasil, publicado em novembro, o fundo afirma que a PEC é necessária e põe educação e saúde na mira dos cortes.
"A aprovação e rápida implementação de limites nos gastos poderia ajudar a melhorar a trajetória de longo-prazo do gasto público e permitir a estabilização e eventual redução da dívida pública em porcentagem do Produto Interno Bruto", diz o documento, acrescentando ser necessário "acabar com o pré-destinamento de verbas" para setores de saúde e educação.
Outros estudos econômicos do próprio Fundo Monetário Internacional, entretanto, mostram que pacotes de ajustes fiscais podem ter resultados adversos, dependendo das estratégias escolhidas na gestão pública. "Pacotes de cortes nos gastos públicos tendem a piorar mais significativamente a desigualdade social, do que pacotes de aumentos de impostos", afirma levantamento publicado em 2013 e assinado pelos especialistas Jaejoon Woo, Elva Bova, Tidiane Kinda e Y. Sophia Zhang.
A BBC Brasil contatou diretamente o FMI e os autores do estudo - para compreender se haveria alguma contradição entre esses posicionamentos- mas até a publicação dessa reportagem não houve resposta.
O documento de 2013 revisou políticas de ajuste fiscal executadas durante os últimos 30 anos por países desenvolvidos e em desenvolvimento. A conclusão foi de que o primeiro reflexo de cortes nos gastos públicos é um aumento do desemprego e consequente aumento da desigualdade social, indicador medido pelo índice Gini. Um coeficiente Gini 0 representa a plena igualdade, enquanto que 1 é o máximo de desigualdade.
Na média, um corte nos gastos da ordem de 1% do PIB gera aumento de 0.19 pontos percentuais no nível de desemprego durante o primeiro ano, enquanto que o aumento da desigualdade no índice Gini oscila de 0.4 a 0.7 porcento nos dois primeiros anos, afirma o estudo.
Em termos amplos, é o desemprego gerado pelo corte nos gastos o grande vilão. "De forma aproximada, cerca de 15% a 20% do aumento de desigualdade social por conta de pacotes fiscais ocorrem por causa do aumento de desemprego".
O levantamento afirma ainda que "um alto nível educacional reduz a diferença social", posição que parece contraditória em relação à recomendação recente do FMI para acabar com pré-destinamento de verbas a esse setor.
Em entrevista exclusiva à BBC Brasil, o relator da ONU pra Direitos Humanos e Extrema Pobreza, Philip Alston lamentou o impacto da PEC 55.
"Atualmente, o Brasil já não está investindo dinheiro suficiente em educação e, se ficar preso em um ciclo de diminuição de investimento, isso significará um revés não apenas para as crianças brasileiras, mas também para a competitividade global do país", disse.
Segundo dados compilados pela ONU, o Plano Nacional de Educação estima que são necessários investimentos anuais de R$37 bilhões para garantir a qualidade do ensino. A PEC 55, entretanto, irá reduzir os gastos em R$47 bilhões nos próximos oito anos. Isso dificultará ainda mais o futuro de 3,8 milhões de crianças carentes que atualmente já não vão à escola.
Cortes de gastos ou aumento de impostos
O mesmo estudo do FMI de 2013 destaca com relevância que o ajuste fiscal de um país não é feito somente de cortes, mas principalmente com aumento de arrecadação sobre os indivíduos com mais renda. No caso das economias mais avançadas, elas aplicaram no passado medidas de redistribuição, que diminuíram a desigualdade social.
"Em economias avançadas, políticas fiscais redistributivas desempenharam um papel significante na redução da desigualdade de renda, por meio de um sistema progressivo de impostos e transferências sociais", afirma o documento do FMI.
Um estudo do PNUD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, divulgado em março, revelou que o Brasil cobra quase tantos impostos quantos os países ricos, mas não o faz da mesma maneira. Ao invés de mirar nos indivíduos com maior poder aquisitivo, o Brasil onera a classe média.
Os "super-ricos" do Brasil, ou 0,05% da população, pagam proporcionalmente menos impostos do que pessoas de renda intermediária. Brasileiros com ganhos médios anuais de mais de R$ 4 milhões usufruem de isenções sobre lucros e dividendos, o que faz com que na prática paguem uma alíquota média de 7%, enquanto que cidadãos comuns pagam 12%.
Essa prática de desoneração privilegiada é diferente da realidade nas economias avançadas. Entre os membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, OCDE, a carga tributária recai maioritariamente sobre o patrimônio, enquanto que no Brasil os impostos recaem sobre bens e serviços.
"O que realmente é chocante para mim é que se você olhar a análise do Fundo Monetário Internacional (FMI) eles preveem que isso (o congelamento dos gastos) será problemático e eles não veem isso como uma solução necessariamente para os problemas do Brasil", concluiu Alston.