O fim do julgamento do massacre do Carandiru em primeira instância, decorridos quase 22 anos do episódio, é um marco na luta contra a impunidade, mas está longe de representar que novas tragédias do tipo voltem a acontecer em presídios brasileiros.
A análise foi feita pela diretora da Human Rights Watch no Brasil, Maria Laura Canineu, representante de uma das ONGs que, em 2000, denunciou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh) da Organização dos Estados Americanos (OEA) o caso que, até hoje, é um dos piores e mais violentos do sistema prisional no mundo. Ao todo, 111 presos foram assassinados em celas e corredores do pavilhão 9 do antigo complexo prisional, desativado pelo governo de São Paulo em dezembro de 2002.
Em um ano, foram quatro júris populares realizados em São Paulo de acordo com as ações de cada grupo de elite da PM em andares distintos do pavilhão 9. Ao todo, foram condenados 73 PMs pela morte de 77 detentos; as mortes de outros 34 deles ficaram sem responsabilização.
“O julgamento do caso representa um marco na luta contra a impunidade, e, mesmo que tardiamente, é importante que haja a responsabilização por esses crimes –porque não se trata apenas da condenação às penas de reclusão, mas também da perda de função pública”, destacou a diretora da HRW no Brasil.
Apesar de estabelecida em sentença nos quatro júris, a perda de função a quem ainda ocupa cargo público só acontece após o trânsito em julgado da decisão, ou seja, quando não houver mais a possibilidade de recursos. Já o cumprimento da pena em regime fechado é passível de recurso dos réus em liberdade.
“Essa é uma resposta que sinaliza ainda às forças de segurança que ninguém está acima da lei, mas, infelizmente, não significa que o sistema carcerário tenha melhorado – violência e superlotação ainda são realidade. Embora um avanço, portanto, (as condenações) não representam a garantia de que tragédias como essa não voltem a acontecer”, declarou Maria Laura.
Maioria das famílias ainda não foi indenizada
Conforme a diretora, boa parte das famílias dos presos assassinados até hoje não conseguiu a reparação judicial pelos crimes. Pelos cálculos da ONG, 60 famílias iniciaram processo de cobrança de indenização, mas, dessas, 34 obtiveram decisões favoráveis que, em boa parte, ainda não foram cumpridas.
Em 2000, um relatório da Cidh recomendou que o Brasil não apenas indenizasse as famílias das vítimas, como condenasse as autoridades envolvidas no massacre.
“Não dá para dizer que houve uma responsabilização completa”, concluiu a diretora. “Ainda há muito a ser feito”, declarou, referindo-se também a uma das recomendações feitas pela Cidh ao governo paulista, em 2000, para que essa responsabilização pelas 111 mortes fosse consumada. “Talvez essas condenações indiquem que essa primeira recomendação tenha sido parcialmente contemplada, mas indicam também que ainda há ações a serem resolvidas no plano macro – no sistema carcerário, como um todo”, definiu.
Relatório de ONG criticou situação de presídios
Em janeiro passado, a ONG divulgou seu relatório mundial de 2014 no qual apontou que a superlotação carcerária no Brasil ainda é fator de violação de direitos humanos no País. O estudo abordou a situação dos direitos humanos em outros dez países e sublinhou contradições na realidade brasileira, já que, simultaneamente às violações, o governo brasileiro tem se tornado “um interlocutor importante na defesa dos direitos humanos”.
Além da superlotação carcerária, no caso do Brasil o relatório ainda destacou que a violência policial e a impunidade persistem –nesta última, salientou o documento, inclusive a relacionada aos abusos cometidos durante a ditadura militar (1964-1985).
“A taxa de encarceramento no país aumentou quase 30% nos últimos cinco anos. A população carcerária adulta já ultrapassa meio milhão de pessoas, 43% mais do que a capacidade dos presídios. Um adicional de 20 mil menores cumprem atualmente penas de prisão. Atrasos do sistema de justiça contribuem para esta superlotação. Cerca de 200 mil detentos estão em prisão preventiva. No caso do Piauí , 66% dos detidos estão em prisão preventiva, a maior taxa no país", relatou trecho do documento da HRW.
A ONG milita na defesa dos direitos humanos em pelo menos 90 países e abriu este ano , na cidade de São Paulo, seu escritório na América Latina.