Em júri, PM relata ameaças no caso Amarildo: 'bom cabrito não berra'

Soldado Alan Jardim, que cuidava do administrativo da UPP da Rocinha na época do desaparecimento do ajudante de pedreiro, disse em audiência que foi ameaçado pelas redes sociais por ser testemunha de acusação

12 mar 2014 - 19h22
(atualizado às 19h24)
Segunda sessão da audiência de instrução do caso Amarildo: de costas, os policiais acusados. Na primeira fileira, o primeiro da direita é o major Edson Santos, comandante da UPP da Rocinha na época
Segunda sessão da audiência de instrução do caso Amarildo: de costas, os policiais acusados. Na primeira fileira, o primeiro da direita é o major Edson Santos, comandante da UPP da Rocinha na época
Foto: André Naddeo / Terra

Na primeira oitiva da segunda sessão da audiência de instrução e julgamento dos 25 PMs acusados de envolvimento na tortura e morte presumida do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, em julho do ano passado, na favela da Rocinha, o soldado Alan Jardim relatou em juízo que sofreu ameaças por ter se tornado uma das 19 testemunhas de acusação arroladas para o caso pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ).  

Pelas redes sociais, Jardim, que cuidava da parte administrativa da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da comunidade da zona sul do Rio, disse ter recebido a seguinte mensagem: “bom cabrito não berra”. Ele refutou, no entanto, que tenha sofrido qualquer tipo de ameaça direta do major Edson Santos, comandante da unidade na época, tampouco de qualquer um dos réus do processo.  

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Mesmo afirmando que não tem medo de uma eventual soltura dos réus, ele confessou em depoimento que teve início às 14h50 desta quarta-feira que “eu temo que alguma coisa aconteça comigo”. Jardim explicou também que todos os policiais lotados na Rocinha “tinham muito respeito e medo do major”.  

O major Edson Santos era o comandante da UPP e suposto líder de um grupo que torturou não só Amarildo, mas outros cerca de 30 moradores da Rocinha. Ao lado dos outros 24 policiais militares, ele é acusado de tortura, ocultação de cadáver, fraude processual, omissão imprópria e formação de quadrilha. Dependendo da participação de cada um no caso, a pena pode somar 33 anos de reclusão em regime fechado.  

A imprensa não pode acompanhar a audiência por determinação do TJ-RJ, mas a assessoria de comunicação do tribunal informou que o soldado da PM narrou que recebeu ordem de deixar a base da unidade e se dirigir para policiamento externo na madrugada do dia 13 para 14 de julho do ano passado, data do desaparecimento de Amarildo. "Todos receberam esta ordem", disse, sem se lembrar se o direcionamento partiu do comandante da base.   

Pouco tempo depois, o soldado explicou que foi obrigado a entrar num contêiner ao lado da base da UPP, "e não sair mais". Ele teria sido impedido por um colega identificado como soldado Soares. Na sequência, conseguiu observar uma viatura da PM chegando com uma pessoa. Jardim afirmou ainda em depoimento que ouviu gritos, como: "você não vai falar?". As perguntas davam a entender que eram sobre armas e drogas. "Não falo", escutou da pessoa que, a partir deste momento, por 40 minutos, foi duramente torturada. 

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"Ouvi gritos de sufocamento e gemidos bem altos. Eram gritos terríveis, enlouquecedores", lembrou. Depois de ouvir barulhos de água como se alguém tivesse tentando acordar uma pessoa, ele explica que houve um silêncio precedido por gritos: "deu m…, deu m…". Posteriormente, recebeu a ordem para pegar uma capa de moto, e passou a ouvir barulhos de fita crepe e viu cinco policiais militares se dirigindo para uma mata fechada, com o que seria o corpo de uma pessoa.  

No dia seguinte, o soldado que cuidava do administrativo da UPP informou que recebeu ordens do tenente Luiz Medeiros, o braço-direito do major Edson Santos na Rocinha, de limpar a capa da moto, e se desfazer de uma mesa, ambos com manchas de sangue. No chão, gotas de sangue, assim como num balde d'água encontrado na base. Feito isso, ele participou de reuniões em que o major Edson Edson teria passado informações antes que todos prestassem depoimento na Divisão de Homicídios.  

Além do depoimento de Jardim, estão previstos outros quatro relatos para esta tarde e noite de quarta-feira, todos de acusação. A principal oitiva esperada é a da viúva de Amarildo, Elizabete Gomes da Silva, que, mesmo com o certificado de morte presumida dado pela Justiça, que substitui a necessidade de um atestado de óbito, falou com os jornalistas que quer saber onde os policiais deixaram a ossada do marido para “ter um enterro digno”. Se for escolhida pela juíza, será a primeira vez que Bete ficará cara a cara com os PMs acusados. Ela aguardava na sala de testemunhas da 35ª Vara Criminal do TJ-RJ.

Primeira audiência

A primeira testemunha a ser ouvida no julgamento, iniciado no mês passado, foi o delegado titular da Delegacia de Homicídios, Rivaldo Barbosa, que comandou a investigação. Segundo ele, a princípio o inquérito apontava que Amarildo foi morto por um traficante, mas depois o caso mudou de figura.  "A ação dos policiais foi manobra ardilosa para imputar a terceiros a tortura contra Amarildo", afirmou Rivaldo. 

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O delegado disse ainda que os depoimentos eram incongruentes, pois todos tinham a mesma versão. Segundo ele, a polícia percebeu que o major Edson Santos, comandante da UPP na época, pressionava os PMs a fazer isso. 

A Polícia Civil, segundo Rivaldo, precisou recorrer à Corregedoria da Polícia Militar para colher os depoimentos dos PMs, já que o major demorava muito a liberar os policiais para ir a delegacia. Segundo ele, era perceptível o medo que os policiais tinham de falar e a polícia descobriu que Amarildo havia sido torturado através de conversas informais. 

A segunda testemunha de acusação a ser ouvida na ocasião foi a delegada assistente da DH, Ellen Souto, que sustentou a versão de que os policiais da UPP da Rocinha envolvidos no caso compraram fraldas, deram dinheiro e chegaram até a prometer casas para que os moradores da comunidade sustentassem a versão de que Amarildo teria sido morto por traficantes que atuam na favela. 

Por fim, também foi ouvido o policial civil Rafael Rangel, que deu detalhes técnicos acerca do trabalho de perícia realizado pela corporação na investigação do sumiço de Amarildo. Após as testemunhas de acusação serem ouvidas (existe a expectativa de que algumas sejam dispensadas pela juíza, cujo nome o TJ não revelou), será a vez dos depoimentos de defesa e, posteriormente, dos próprios policiais militares. No total, 13 permanecem presos, enquanto outros 12 respondem ao processo em liberdade. Não há previsão para o término do julgamento.  

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O ajudante de pedreiro desapareceu após ser levado por policiais militares para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) entre os dias 13 e 14 de junho. O caso ganhou bastante repercussão, pois coincidiu com o período de eclosão das manifestações de rua em todo o País e, em especial, no Rio de Janeiro. 

De acordo com a denúncia apresentada pelo Ministério Público (MP), o tenente Luiz Medeiros, o sargento Reinaldo Gonçalves e os soldados Anderson Maia e Douglas Roberto Vital teriam torturado Amarildo depois de ele ter sido levado para a base da UPP. Ele não teria resistido às sessões e seu corpo, retirado numa capa de moto fornecida pelo próprio comandante da UPP da Rocinha, major Edson Santos.  

Fonte: Terra
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